🔓 Ideias fora de lugar

Mais um texto de Flávio Ricardo Vassoler escrito durante sua estadia em Chicago
10/12/2014

Chicago, 20 de novembro de 2014

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Ilustração: Eduardo Nasi

I. Tese
São Bernardo do Campo, 1999, durante o último ano do Ensino Médio — à época, o terceiro ano do colegial.

O professor Giuseppe, de Geometria, estava estudando Direito.

Muitas vezes, Pitágoras era preterido em prol de alguns relatos circunstanciados.

“Ontem, pessoal, eu acompanhei o depoimento de um réu. Um pai. O pai estuprara a própria filha — uma menininha de 9 anos. Sob a toga, o juiz não entendia” — Giuseppe faz uma pausa retórica, engatilha o olhar panorâmico e manuseia as palavras qual um orador —, “o juiz não aceitava!”

— Mas, senhor Raimundo, como foi que o senhor pôde estuprar a sua própria filha?!

Antes de relatar a resposta do “senhor Raimundo”, Giuseppe descreve o réu pardo para a classe (média) ultrajada:

“Calças laranjas; barba rala; cabisbaixo e ensimesmado. Havaianas azuis e gastas. Algemas”.

Assim falou o Senhor Raimundo em face da Lei:

— Ué, dotô, não foi eu que fiz a minha filha? Ela não saiu de mim? Então eu volto pra dentro dela.

Muitos (quase todos) riram.

Rostos transtornados traduziam o nojo.

Uma náusea de classe.

Apenas alguns alunos pensamos no senhor Raimundo.

O senhor Raimundo em face da Lei.

O senhor Raimundo e as ideias fora de lugar.

A lei do senhor Raimundo.

Ao fim e ao cabo, o professor Giuseppe relata que o juiz togado, diante da lei do senhor Raimundo, só fez vendar os olhos com as mãos ultrajadas.

Os alunos que pensamos no senhor Raimundo nos perguntamos:

“Mas e se nós retirarmos a venda da Justiça?”

Os alunos que pensamos no senhor Raimundo decidimos estudar Direito.

II. Antítese
São Paulo, 2002, primeiro ano do curso de Direito. Turma 111.

Da saída do metrô Sé à entrada do Largo São Francisco, é preciso serpentear por entre corpos estirados que ainda insistem em respirar.

Uma ciganinha mendiga ri da minha careca de calouro. [Com R$ 1,00 (um real) de piedade, se tanto, logo posso me esquecer de mais uma das filhas do senhor Raimundo.] Eu já estava atrasado para uma aula de Direito Civil.

Sob o tailleur, a Professora nos catequiza com a Doutrina da Sociedade Civil:

“Jamais se esqueçam de que a personalidade civil da pessoa data do nascimento com vida; no entanto, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

A controvérsia que se seguiu não poderia ter sido mais judiciosa.

De um lado, a bancada católica:

“Doutora, concordamos com a senhora. O zigoto prenuncia o que seremos. O abrigo da lei protege o nascituro desde a sua concepção mais tenra”.

De outro, os calouros jacobinos:

“Professora, como é possível que o nascituro já possua direitos? O feto é uma vida em potência, não em ato. O Direito não pode legislar sobre o processo cego da mitose!”

Se o senhor Raimundo soubesse ler e tivesse o que comer por mais de dois dias seguidos, talvez lhe viesse à mente, já como nascituro-sujeito-de-direitos, a ideia de utilizar um aforismo do bom e velho Arthur Schopenhauer para arrematar a discussão em questão. Assim falaria Raimundo Schopenhauer:

“Uma nação zomba da outra — e ambas têm razão”.

Algo incomodado com um fato que havia presenciado naquela manhã, acabo levantando a mão. A princípio, a Doutora Civilista, que me vira chegar atrasado, não se faz de rogada. No entanto, minha insistência de mão levantada torna patente o fato de que todos somos sujeitos de direito. Ao calouro, a palavra. “Pois não, doutor”.

— Há pouco, ao sair do metrô, me deparei com uma roda tutelada por alguns soldados da PM. Uma roda ao redor de uma lata de lixo. Me chamaram a atenção as muitas exclamações ultrajadas. Entre elas, uns grunhidos bem fraquinhos, agudos, raquíticos. Fui me esgueirando e me esgueirando, até que descobri o motivo da aglomeração: um bebezinho havia sido abandonado pela mãe e/ou pelo pai. Era nítido: todos se condoíam. Mas, quanto ao que fazer, a compaixão dá lugar ao alívio: “o filho não é meu”. Desde então, e não sei bem por quê, minha manhã se tornou menos acolhedora. Daí, já ciente de que discutiríamos os direitos do nascituro, não sei bem por que acabei me atrasando. Mas eis que, diante da nossa dialética do útero, Doutora, me vem à mente a seguinte questão: não seria mais eficaz, pragmático e judicioso se nosso Direito Civil, ao invés de abrigar os direitos do nascituro, se voltasse para os albergues dos natimortos? Se assim fosse, ao menos os pais saberiam onde escarrar os abortos paridos. Afinal de contas, o nascituro prenuncia o natimorto, ambos sujeitos de direito: da manjedoura à cova rasa sem cruz e sem número.

Caro leitor, cara leitora, os apupos da Civilista, dos girondinos e dos jacobinos foram tamanhos, que eu nem ao menos pude, por meio de meu defensor público, impetrar um habeas corpus.

A extrema-unção a meus natimortos estudos jurídicos foi ministrada pelo professor de TGE, isto é, Teoria Geral do Estado, o Prof. Dr. Alfonso Alcântara de Mello Filho e Neto, ou melhor, Prof. Dr. AAMFN — eis as iniciais de seu nome via de regra bordadas em suas camisas de seda:

“Se os senhores pretendem fazer Justiça, doutores, saibam, desde já, que se encontram no lugar errado”.

Ideias fora de lugar.

Abandonei o Direito, mas o senhor Raimundo sempre se insinuava.

A paz entre os escombros.

Decidi seguir e perseguir um caminho mais rente à minha vocação. No Brasil, estudos natimortos.

Literatura, filosofia, sociologia?

Ideias fora de lugar.

Mas, não sei bem por quê, sempre achei que devia isso à filhinha do senhor Raimundo, à ciganinha mendiga, àquele feto rodeado pela impotência e pela indiferença — o pai do senhor Raimundo.

III. Síntese
São Paulo, 2012, professor.

Dos alunos, muitas estórias chegam até mim.

Cara leitora, caro leitor: se não fosse pela literatura, não sei se o senhor Raimundo não se transformaria no algoz da minha insônia.

Caro leitor, cara leitora: julguem, por si mesmos, as ideias fora de lugar, ou pior, o lugar que torna as ideias forasteiras.

Em uma sala da 6ª série, um colega docente, professor de História, encontra um pedaço de papel com um questionário inusitado. (Questionário com muitas respostas…) Caligrafia eminentemente feminina. As alunas de 11 anos perguntam umas às outras. Eis as questões:

1) Você já foi ao motel?
2) Ele [grifo do senhor Raimundo] te obrigou?
3) Que gosto tem?

Não sei bem por quê, mas tive vontade de convidar o professor Giuseppe, o juiz togado, a Doutora Civilista, os girondinos e os jacobinos para um safari em uma escola na periferia de São Paulo.

“Mas não”, rosna o senhor Raimundo já trêbado, “eu quero ouvir mais uma estória!”

Seja feita a sua vontade, senhor Raimundo, assim no céu como na terra.

Um colega docente, professor de Matemática, me diz que se sentiu completamente ultrajado, há coisa de um ano, com um caso de estupro envolvendo uma aluna da 5ª série.

— 10 aninhos, Ricardo, 10 aninhos!

“Se tanto”, catarra o senhor Raimundo.

— Pois eu não aguentei, eu tenho filha, eu tenho irmã!

— Mas como você ficou sabendo?

— Ah, mas a menina não fez um desenho na aula de artes?! Um desenho de um tio com uma chave de fenda bem grande. Daí sai ketchup da sainha quadriculada da menininha da estória. Pergunta vem, pergunta vai, daí ela diz como toma banhinho com bastante espuma, tem até cobra de um olho só.

Em verdade, em verdade lhe pergunto, professor Giuseppe: onde está o juiz togado agora?

— Que foi que eu fiz? Ah, não pensei duas vezes: fui falar com a vó da menina, eu tinha que contar, eu queria denunciar!

— E aí, velho? Que foi que a vó te disse, que foi que ela fez?

Depois de esfregar o rosto com sofreguidão, o professor Diego — chamemo-lo assim — me relata o que a vó do senhor Raimundo lhe havia dito:

— A vó disse que a culpa era da menina, Ricardo, que a culpa era dela! E disse mais: disse que, ainda por cima, a menina era burra, burra e burra!

— Culpa dela? Meu Deus! Mas como burra, velho? Como assim? Que que ela quis dizer com isso?

Assim falou a vó do senhor Raimundo:

“Menina burra, professor. Vai lá o tio querendo abusar, tudo bem, normal, acontece. Mas por que não cobrou dele? Tinha que cobrar! Ô menina burra!”

(Talvez o juiz togado ficasse menos constrangido se o Direito Civil legitimasse a política velada de laqueaduras e vasectomias na periferia de São Paulo.)

Mas o Senhor Raimundo, desempregado a perder de vista, bebe — e sente desejo.

Mas o professor de Matemática, querendo trazer as ideias para aquele lugar, decide ir à delegacia de polícia do bairro. O delegado o escuta sob os óculos engordurados — e tarimbados:

— Doutor, me ajude, por favor, ajude aquela menininha! O tio a estuprou, a vó tá dizendo que a culpa foi dela, que ela ainda por cima deveria ter cobrado! Olha só, doutor, quem vai ajudar essa menina? Precisamos ir atrás do tio dela, você precisa prendê-lo, doutor!

O delegado ensina ao professor o devido lugar das ideias:

— Meu caro, que pode a polícia fazer por aqui? Você não sabe como a banda toca por essas bandas? Vá procurar o PCC. Se o Partido quiser, o tio não vai mais consolar a sobrinha…

O professor hesitou.

Jogar a lei contra a Lei?

Ora, que queremos: Talião ou a Justiça?

Assim sentenciou o senhor Raimundo: a justiça de Talião.

Ideias em seu devido lugar.

Não sei bem por que não consegui dar aulas naquela manhã. Afinal, a sobrinha já tinha voltado para a escola. Fora a própria tia, filha da vó e esposa do tio, quem a trouxera. A tia disse ao professor de Matemática que não se preocupasse. “Criança tem cada coisa na cabeça, professor, liga não… Ainda mais com o Big Brother”.

Naquele dia, o senhor Raimundo voltou para casa comigo.

A cicatriz da memória.

O senhor Raimundo não me deixava quieto, o senhor Raimundo queria falar com aquele tal de Arthur Schopenhauer.

O senhor Raimundo me insinuou, então, uma síntese incestuosa que pusesse as ideias em seu devido lugar.

Eis que nasceu uma nova personagem, o Civilista Raimundo Schopenhauer.

Da pena do jurista despontou o seguinte esboço, provavelmente natimorto, para um aforismo:

(1) Ideias fora de lugar;
(2) O peso do lugar para a vivência efetiva das idéias;
(3) Ideias em seu devido lugar;
(4) A Justiça;
(5) Talião;
(6) A justiça de Talião;
(7) Ora, não à toa a Justiça venda os olhos.

Rascunho