A revista literária Granta, em sua versão em língua portuguesa, volta a circular no Brasil a partir de outubro. A nona edição do periódico tem como tema a Rússia. A escolha do país, feita ainda em 2021, também precedeu a invasão da Ucrânia pelo exército de Putin.
No entanto, os editores não enxergam uma identificação entre os atos belicosos de Putin e a história e a força cultural do país. “A Rússia não se confunde com os regimes que têm em cada momento, ainda que as tentações imperiais e despóticas venham de longa data. Mas não vamos cancelar a Rússia, ao jeito dos pobres de espírito que interditam os romancistas, compositores e cineastas russos, ou até, quem sabe, as bonecas russas e a salada russa”, escreve o editor Pedro Mexia em seu texto de apresentação.
O editor brasileiro da revista aposta na literatura contemporânea como chave para conhecer a herança cultural russa. “A melhor representação desse legado, e também a prova de que ele continua ativo e em expansão, são duas das maiores escritoras russas vivas, inexplicavelmente pouco conhecidas pelos leitores lusófonos: Tatiana Tolstaya e Ludmila Ulitskaya.
Múltiplos perfis culturais e geracionais se misturam na seleção de autores: Elif Batuman, Camila Chaves, Hélia Correia, Clara Drummond, Reginaldo Pujol Filho, Masha Gessen, Ana Matoso, Pepetela, José Pacheco Pereira, António Pescada, André Sant’Anna, Colin Thubron e Amor Towles. Os ensaios fotográficos são de Mauro Restiffe e Mariana Viegas (responsável também pela imagem da capa).
Back in the U.S.S.R.
O continente literário russo é examinado na nova edição da Granta por lentes multifocais: ficção, literatura de viagem, jornalismo, ensaio de crítica literária e história, e também a necessária voz das escritoras russas contemporâneas. Alguns dos textos reativam o longo e fértil diálogo entre a ficção russa e a literatura em língua portuguesa. Entre ficção e não ficção, ora com humor, ora em tom trágico, e muitas vezes numa mescla tipicamente russa entre os dois registros, a Granta mostra uma Rússia mais profunda que a que costumamos ver retratada no noticiário.
Um divertido paralelo entre o Brasil e a Rússia está no texto de André Sant’Anna, que se vale de sua prosa bem-humorada, repetitiva e muito brasileira para falar de uma cultura aparentemente antípoda, mas em muitos aspectos bem próxima da nossa. As repetições e os vícios que marcam a linguagem oral de André Sant’Anna deixam de lado, por um momento, o Brasil e seus tipos humanos, para examinar uma Rússia com olhos irônicos e desabusados.
O humor também é o tom de Elif Batuman em seu Quem matou Tolstói?, mescla de ensaio e reportagem publicada na revista The New Yorker que revelou a autora norte-americana de origem turca. Ainda nos tempos de graduação, ela visita a mítica propriedade de Tolstói em Iásnaia Poliana e encontra excêntricos seguidores do escritor, que além de influenciar milhares de autores de literatura inspirou inúmeros místicos e humanistas reunidos em seitas e igrejas na Rússia.
Da New Yorker também vem Masha Gessen, staff writer da revista que se dedica a cobrir a movimentada política russa e que desde 2019 se identifica com gênero não binário. Num texto que amalgama política e afetividade ao melhor estilo russo, Masha rememora em seu texto sua avó, que ela qualifica como “a censora”. Este e outros textos trazem o misto de nostalgia e horror que muitos russos dedicam aos anos de regime comunista.