Fui vê-la, pai

Conto de Pierre J. Mejlak
Ilustração: Bruno Schier
01/01/2013

Tradução: Valter Hugo Mãe

Inclinei-me, colocando as mãos por sobre os olhos, como toldando o sol, e murmurei-lhe, “Fui vê-la, pai. Fui vê-la”.

 ***

A última vez que o visitei, ele não parecia tão bem. A minha irmã mais nova tinha acabado de sair e, como de hábito, ela insitira muito sobre ele estar a piorar. Achei que devia manter as coisas agradáveis, por isso perguntei-lhe sobre as mulheres que o marcaram. Foi como acabamos a falar sobre a mulher espanhola.

Ele costumava gostar de falar sobre as mulheres que conheceu. Parecia que assim esquecia a dor, os seus olhos brilhavam e subitamente focavam. Porque desde que adoeceu e foi levado para o hospital, as mulheres que amou durante toda a vida tornaram-se para ele um álbum de fotografias que nunca se cansou de percorrer. E sob cada fotografia estavam mais cinqüenta escondidas. Nenhum pormenor escapava à sua memória. Por vezes eu achava que ele estava a inventar, mas quando, um ou dois meses mais tarde, ele repetia tudo exactamente com os mesmos detalhes, a mesma convicção, o mesmo olhar e sorriso, as minhas dúvidas dissipavam-se. “Graças a Deus que as tenho”, dizia-me quando estavamos sós. “Diz-me de que outro modo havia eu de atravessar estas noites intermináveis?”, e depois ele normalmente divagava, “às vezes ponho-me com isto, que pensam eles, esses outros velhos homens como eu — sós —, se não tiverem conhecido a excitação de amar uma mulher?”. E quando ele estava forte o suficiente para discutir, eu respondia que talvez pensassem sobre os países que visitaram, os velhos amigos que tiveram, as aventuras por que passaram, as histórias que ouviram, o trabalho que fizeram, os cães que ensinaram, os dias que passaram a nadar ao sol, momentos belos que partilharam. Então, ele detinha-me com um gesto de mão típico de alguém da sua idade, “Não, não, meu filho. Não é igual. Ai, a quantidade de trabalhos que tive na vida. Que lembro eu de tudo isso? Nada. E a quantidade de países que visitei e os passeios que dei…”.

“O quanto gostaria ela de te ver”, disse ele quando voltamos à mulher espanhola, “Ouve, promete-me visitá-la antes que eu morra?”. E continuou sem me dar a oportunidade de responder, “Vai contar-lhe tudo e traz-me notícias suas”.

Ele estava intransigente com a hipótese de eu ir e, quando notou que eu estava seriamente a brincar com a idéia, pediu-me encarecidamente que fosse.

“Vai falar-lhe, meu filho, antes que eu morra.”

Ele recordava-me de como eu era quando miúdo. De como costumava enviar à minha mãe mensagens sobre o que não tivera coragem de lhe dizer directamente. E ele guiou-me à sua casa no mesmo tom urgente de “presta atenção” que usara antes, quando nos meus dias de rapaz me explicava o caminho para os meus avós ou para a mercearia para comprar leite.

“Presta atenção. Quando chegares ao aeroporto de Alicante, aluga um carro”, diz entre lábios torcidos, a mão a tremer escondida na manga e um sorriso entre o maroto e o ligeiramente misterioso. “Sais do aeroporto e segues os sinais, escritos em grandes letras no topo, que dizem Murcia.”

Depois ele olha para mim e repara que não tomo notas. “Toma nota, raios partam!”

E eu tiro uma caneta do bolso do meu blazer e começo a escrever no primeiro pedaço de papel que vejo — o recibo dos biscoitos e da água que comprei para ele quando cheguei ao hospital.

“Conduz nessa direcção até a autoestrada se dividir em dois, e no lado de lá, verás novos sinais dizendo em grande Grenada Almeria. Dá pisca, toma cuidado com os carros que vêm atrás de ti, e atravessa para o outro lado. Toma cuidado.”

Eu sorrio mas ele não o vê, porque, entretanto, fechou os olhos e se perdeu a conduzir em direcção à sua mulher espanhola.

“Agora continuas em frente até veres o sinal a dizer Mazarron.”

Reparei na sua mão. Parece a seta no meu GPS.

“Segue para onde te manda. Nesta altura deves começar a ver os edifícios, apartamentos para alugar e para vender, e o mar está perto, mas ainda não o podes ver. Estás a entender?”

“Entendo.”

“Constantemente verás novas placas, e em cada uma poderás então ver Puerto de Mazarron. Segue em direcção ao porto e verás as primeiras setas que apontam para Aguilas.”

Ele abre os olhos e posso vê-los a brilhar e mais claros que nunca.

“E estás a tomar nota?”

“Sim, estou a escrever. Continue.”

“Se chegares a um ponto onde deixas de ver quilômetros de estufas cheias de tomates, então algures deves ter errado o caminho. Enquanto vires as estufas, não há problema. Segues sempre em frente até veres um cruzamento e, à direita, verás uma placa que diz Puntas de Calnegre. Desces por essa estrada estreita, desengatas o carro e deixa-o andar. Abre as janelas para sentires a briza do mar fresca no rosto… Quanta beleza.”

“Pai, corte a poesia. Concentra-te nas placas.”

Ele esfrega os olhos, sorri e volta a dar-me as direcções.

“Abranda. Tem cuidado com as crianças a atravessar a estrada. E dali deves ver — no fim da estrada — uma vila apartada das outras. Vai até lá. Estaciona. Sai do carro. Vai para o passeio, onde provavelmente encontrarás um gato a limpar o esqueleto de algum peixe, e toca à campainha.”

O meu pai estava a mandar-me ver a mulher que ele secretamente visitara durante dez anos. E eu não o faço para lhe agradar. Faço-o porque quero conhecer essa mulher que tanto o fez feliz. Vou porque quero agradecer-lhe sem palavras. Quero conhecer a mulher que sempre o encheu de alegria e o manteve resistindo por meses. Na altura, quando qualquer indício desse entusiasmo desaparecia, ele ia a Espanha pretensamente em negócios. E nós esperávamos que ele voltasse trazendo um tambor, um par de címbalos, um par de pratos, um saco de missangas de mil cores e um alegre sorriso de alguém profundamente satisfeito.

E com o recibo da cantina do hospital preso no volante do Ford Ka que aluguei, estou a conduzir e a sorrir. Efabulando com a memória do meu pai. Porque ainda que tivesse deixado a condução nas mãos de um macaco o carro teria à mesma chegado à vila sem se perder. E agora estou a descer a estrada para a vila, e desço a janela e rio-me como um idiota, porque a brisa é tão fresca no meu rosto… e ouço a excitação das crianças descalças correndo depois da bola na praia, e as suas mães resmungando com os merceeiros e os atabalhoados barulhos dos pais vindos do bar na outra ponta da estrada. E estou a pensar que, se não o tivesse apressado quando chegou a esta parte da viagem, ele teria acrescentado estes pormenores também.

Depois toquei a campainha e subitamente fui acometido de cem dúvidas. Talvez a mulher tivesse morrido, ou mudado para outro lugar, talvez se deite com outro homem e esqueceu completamente o meu pai, ou quer esquecer, talvez a casa estivesse agora desabitada, ou até tivesse sido comprada por alguém que desconhecia o meu pai e a sua história com a mulher espanhola, ou talvez fosse ela a abrir a porta mas eu não seria bem-vindo, quem sabe o filho dela me atendesse, o que lhe diria?

A porta abre e diante de mim eia a mulher espanhola do meu pai. Não tive dúvidas de que era ela. Ele havia pintado os olhos dela para mim. E tinha-o feito bem. Verdes. Com uma pitada de amarelo. Lindos. E o seu rosto! Uma mulher envelhecendo graciosamente.

“Quando ela abrir diz-lhe que és meu filho, e que ouviste muito falar sobre ela. Diz-lhe que estou a morrer mas que a tenho sempre no meu coração, fazendo-me companhia.”

“E ela vai convidar-te para entrar e perguntar-me mil coisas diferentes. Porque ela é assim — porque a cada palavra que disseres ela terá uma pergunta. E depois ela vai servir-te um pouco de45.”

“Conheço-te”, disse ela à porta. “Tens os olhos do teu pai. E não mudaste muito em relação às fotografias que me mostrou. Mas não fiques na soleira da porta. Entra. Vem para dentro.” E depois virou-se para um gato que me observava entre as suas pernas, “Desaparece! Temos visitas.”

E depois de termos comido numa cozinha cheia de malgas e panelas penduradas a toda a volta, eu mencionei o 45, e repentinamente os seus olhos encheram-se de lágrimas. Pediu-me que a seguisse. Descemos uma escada em caracol, e no interior fresco da cave ela mostrou-me, armazenadas, uma ao lado da outra — garrafa atrás de garrafa —, todas envergando o número 45 escrito à mão.

Ela assim as guardava, garrafa atrás de garrafa, desde o dia em que ele saíra e nunca mais voltara.

“Eu tinha a certeza de que ele voltaria, um dia. Não tinha sido a primeira vez em que me dissera partir para sempre. Disse-mo muitas vezes que deixaria de vir. Mas nunca acreditei nele porque — bem, sim — por vezes passavam-se meses, mas ele sempre voltava. E desde que por último o vi, continuei a ir ao jardim, colhendo os damascos, usando as mesmas luvas que usava ele quando os colhia.”

Tornara-se um ritual que ela seguia até aquele dia. Ela voltaria carregada com uma caixa cheia de damascos e despejava-os no enorme banco da cozinha. E com a mesma faca que ele usara, cortava-os a meio, um a um, e atirava-os para uma panela a ferver água. Deixava-os a boiar na água por um minuto, não fosse o caso de terem algum verme escondido dentro, que ela retiraria com cuidado com nunca estivera ali.

“Assim que desapareceu”, diz-me com um meio sorriso que deixa de lado qualquer indício de mágoa, “Nem uma carta. Um telefone. Nada. Era assim o teu pai. Ou uma fachada incrivelmente acesa e brilhante que te encandeia os olhos, ou nada.”

Numa larga concha, ela retirava os damascos molhados e quentes e punha-os em cinco litros de conhaque e assim os deixava durante um mês e meio. Quarenta e cinco dias. Nenhum mais, nenhum menos.

“Como ele costumava fazer.”

Quarenta e cinco dias que ela esperava que, quando fosse tempo de passar o conhaque pelo coador para o separar dos damascos, ele estivesse ali, ao seu lado, na sua cozinha, surpreso por ela ter continuado a fazer a sua bebida. Depois ela filtraria o conhaque para dentro de uma garrafa de vidro. Por fora ela colocaria um autocolante amarelo e, com uma caneta preta, escreveria 45 — como ele costumava —, por cada dia que tornou a bebida no que era. “Porque a bebida é como nós,” dizia ele, provavelmente no mesmo tom com que me deu as direcções de como chegar à escola. Depois — como ele fazia —, no canto inferior do autocolante amarelo, ela anotava a data.

“Gostas?”

“Muito.”

“Ninguém sai daqui sem o provar. E sempre fazemos um brinde, acho que a ele. Sabes… passei meses inteiros assim”, diz-mo agora com um copo de 45 na mão direita e com os olhos fixos nos damasqueiros lá fora. “Olho o jardim e penso nele, no que estará a fazer agora, se esqueceu tudo sobre mim e que memórias tem de mim. Se talvez o desapontei da última vez que veio. Se eu disse algo que não devia, ou talvez eu tenha dito algo que não entendi. Se pensa voltar um dia. Se ele tem esperança de que, de algum modo, o encontre outra vez. E se, um dia, a campainha que tocaste vai soar e eu abrirei a porta para o ver ali.”

Ela pára. Observa-me. Percebendo que eu não tenho nada para dizer, continua. “Levou-me muito tempo aceitar o facto de nunca mais voltar a ver o teu pai. Muito, muito tempo. Eu continuei a colher os damascos, caixas atrás de caixa, na esperança de que quando enchesse mais uma garrafa ele estivesse aqui comigo.

Eu gostava de dizer algo, mas não encontro nada por que valha a pena quebrar o silêncio.

“De início, quando percebi que não ia voltar, tentei sentir-me zangada com ele. Pensei talvez que a fúria poderia preencher o vazio no meu coração. Mas eu não podia estar zangada com alguém como ele. Não havia nada para desculpar. O teu pai nunca mentiu. As coisas foram claras desde que nos conhecemos no porto. Eu aceitei o acordo para o ver segundo a sua conveniência. Pensei que talvez o poderia ver e gozar da sua companhia sem lhe dar o coração. Mas ao tempo em que percebi que ele era o meu coração e que o meu coração era ele foi tarde de mais.”

Agora o gato veio e saltou ao seu colo.

“O teu pai ensinou-me muito. E fez-me sorrir muito. E amou-me. Tenho a certeza disso.”

O meu copo está vazio. Ela enche-o de novo. Depois olha-me.

“Vais ficar muito tempo?”

***

O meu pai morreu na madrugada do terceiro dia em que passei com ela. A minha irmã ligou-me cedo e deu-me a notícia. Ninguém esperava que ele partisse tão depressa.

E no meu caminho para Alicante chorei. E ela chorou comigo.

“Eu fui vê-la, pai. Eu fui vê-la”, murmurei, os meus olhos escondidos atrás das mãos pressionando o frio e brilhante mogno do caixão.

“Ela ainda me ama?”, perguntou-me ele.

“Ela é louca por ti, pai. Ela ainda é louca por ti. E adivinha quantas garrafas de 45 ela tem? Uma cave cheia, pai! Uma cave cheia!”

E ele sorri o seu característico sorriso.

“E eu trouxe-te algo, pai. Trouxe-te algo.”

“Uma garrafa de 45?”

“Não, não é uma garrafa de 45. É outra coisa. Espera um minuto. Em breve verás o que te trouxe… Ela está por aqui entre a multidão.”

Pierre J. Mejlak

Nasceu em Malta, em 1982. É autor de romances e contos, como Rih Isfel (Vento sul) e Dak li l-Lejl Ihallik Tghid (O que a noite te deixa dizer), traduzidos para o inglês, francês, espanhol, português, catalão, árabe e italiano.

Rascunho