🔓 Forasteiras de si

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06/01/2014

:: Por Arthur Tertuliano e Yasmin Taketani

 

“Não pego uma pessoa de carne e osso e jogo no papel. Até porque parte da graça está em construir o arco narrativo, reviravoltas, momentos epifânicos e tal, e isso é algo que você perde se ficar engessado na ‘experiência pessoal’ ou em ‘como as coisas aconteceram de fato’.”
Carol Bensimon, autora de Todos nós adorávamos caubóis

 

Carol Bensimon fez suas próprias viagens pelo Rio Grande do Sul como pesquisa para Todos nós adorávamos caubóis, road novel cujas protagonistas, Cora e Julia, percorrem não só o interior do estado, “uma ruína que se recusava a ir completamente ao chão”, mas realizam uma grande viagem pelo seu passado. O resultado são paisagens desertas e cidades caricatas que ganham descrições irônicas e bem-humoradas de Cora, a narradora, intercaladas com recordações de juventude e da história de amor entre elas.

Este relacionamento complicado, sem um ponto final, e as dúvidas de sua geração vão formando então o eixo central do romance: duas jovens com referências e valores globais, que enxergavam para si um milhão de possibilidades — escolher o jeito e o mundo que quisessem viver —, percebem que essa liberdade talvez fosse apenas ilusão: “É tudo muito volátil, sutil e imprevisível”, diz Carol Bensimon sobre a chamada “geração Y”. Para a autora, porém, mais do que as referências culturais que marcam a narrativa, importa a história em si, cujo interesse ultrapassa marcas geracionais.

Questões de gênero, identidade sexual, ser estrangeiro e relações familiares são alguns temas que rondam esta viagem de busca de identidade e período de transição, e é sobre eles que a escritora gaúcha, autora dos contos de Pó de parede (2008) e do romance Sinuca embaixo d’água (2009), fala nesta entrevista. 

Há quanto tempo surgiu a idéia para Todos nós adorávamos caubóis? Como surge a inspiração para um romance, na sua experiência?
As primeiras idéias daquilo que bem mais tarde iria se tornar o Caubóis surgiram em 2009, quando eu morava em Paris. Diferentemente dos meus dois livros anteriores, que nasceram muito mais de lugares ou situações específicas do que de personagens, o Caubóis teve a Cora, a narradora, como ponto de partida. Nos primeiros esboços, a história ia ser bem diferente, e a idéia era que ela se desenrolasse integralmente em Paris. Foi só um tempo depois, quando voltei pro Brasil, que ela virou um projeto de narrativa de estrada. De qualquer maneira, independentemente de como surge a idéia — se de um lugar, um esboço de personagem, uma notícia de jornal, um diálogo captado na rua —, acho que o que importa é que o processo que se segue acaba sendo sempre o mesmo: é um processo de aglutinação de elementos bem variados, cenas, lugares, frases, atmosferas, que então eu tento montar com alguma coerência.

Como foi escrever uma road novel com tantas fortes referências sobre road trips por aí? Em que medida incorporou e fugiu dos clichês do gênero?
Acho que esse é um subgênero como qualquer outro, se é que dá pra chamar de subgênero. Então, o que acontece é que o escritor trabalha com um certo modelo, mas obviamente precisa transgredir um pouco. No caso do Caubóis, se comparado a outras narrativas de estrada, me parece que o elemento mais “dissonante” é o fato de o passado ter tanto peso no romance. O passado joga a história pra frente tanto quanto a viagem que está em curso. Outra questão é o final. Nos road movies, é bem comum que os protagonistas morram no fim, porque a própria estrutura cria um impasse: você tem pessoas que saíram da zona de conforto e se colocaram numa situação nova, uma jornada em busca da liberdade, auto-conhecimento e todo esse blá blá blá — e daí, qual é o próximo passo? Fazer com que os personagens voltem à situação inicial teria um gosto amargo de conformismo, mas, ao mesmo tempo, eles não podem ficar viajando sem rumo pra sempre. Isso foi uma questão quando eu estava escrevendo o livro. A única certeza que eu tinha é que não ia matar as garotas de jeito nenhum, hehehe.

Questões de gênero, identidade sexual, condição de estrangeiro e novas configurações familiares são temas ao mesmo tempo antigos e atuais. No livro, eles não são investigados ou debatidos com profundidade, mas dialogam com uma questão central, de compreensão da identidade. O que a levou a pautar esses aspectos?
O foco não é nenhum desses temas que você citou, concordo, mas isso porque o foco é o conjunto, a soma desses temas. São eles que vão formar a identidade das personagens. E eu acho que, guardadas as individualidades, a Cora e a Julia são exemplares bem típicos da chamada geração Y. São garotas de vinte e poucos anos que acham que podem ser qualquer coisa que quiserem, em qualquer lugar do mundo. E que depois vão se dar conta de que não é bem assim, não dá pra ser qualquer coisa se às vezes você nem sabe o que quer ser, e as cidades mais incríveis do mundo talvez não sejam tão incríveis se, para morar nelas, você é obrigado a montar sanduíches para turistas americanos. O mesmo para a identidade sexual. É muito geração Y. Cada vez mais garotas experimentam ficar com outras garotas, algumas podem se envolver de fato, e isso não quer dizer que elas serão lésbicas a partir desse ponto e para sempre. É tudo muito volátil, sutil e imprevisível, então me pareceu um tema que precisava ser explorado.

Os problemas — relacionamentos familiares e amorosos; identidade sexual; traumas de infância — das personagens poderiam ser explorados como um grande drama ou algo mais diretamente intenso. Como chegou a uma voz narrativa e eventos na viagem que pendem mais para a sutileza?
Acho que toda minha obra pende mais pra sutileza. Mesmo no meu livro anterior, Sinuca embaixo d’água, que era basicamente uma história sobre luto, eu tive desde o início a preocupação de não pesar demais a mão. Não queria construir algo excessivamente dramático, ainda que o tema pudesse levar a isso com muita facilidade. Com Todos nós adorávamos caubóis, a intenção foi parecida. Você pode ler o livro como uma história de amor, claro, mas não como uma história de amor com tintas românticas. E isso tem menos a ver com o fato de serem duas meninas do que com uma simples intenção de tom (e que provavelmente deriva da minha visão de mundo).

A certa altura Cora pergunta a um amigo se ele ainda ama a ex-namorada cujo nome está tatuado em seu braço, e que ao invés de ter sido removido, foi retocado. “(…) sinto um enorme respeito pelo meu passado”, ele responde. Boa parte dos problemas de Cora e Julia diz respeito ao passado, e nessa viagem elas acabam a um só tempo fugindo deles e tendo que encará-los. O que seria um bom relacionamento com o passado?
O passado nunca fica exatamente para trás, porque ele faz com que você seja assim ou assado no presente. Não dá para se livrar dele. Ter um bom relacionamento com o passado é admitir isso, mas não ser dramático ou rancoroso em relação ao que já aconteceu.

Em uma entrevista, você disse que optou por duas garotas como personagens centrais porque “elas são artigo raro nesse tipo de narrativa”, para “romper com essa lógica”. Para além das road trips e novels, as personagens — mulheres — estão bem representadas na literatura brasileira contemporânea?
Seria meio leviano eu dizer qualquer coisa sobre isso. Pra ter uma opinião de verdade, eu precisaria ler muito mais livros brasileiros contemporâneos. Ou quase todos. E pensar obsessivamente sobre a questão da “representação do feminino”.

Este é o problema da moda: você depende dos outros. Se eles não entenderem a mensagem, todos os seus esforços vão por água abaixo”, diz Cora. O mesmo acontece com a escrita, tendo em vista ainda as referências culturais e de geração que você emprega?
Sim, esse livro pode fazer mais sentido para aqueles que têm cerca de trinta anos, pois certamente essas pessoas vão se identificar com as referências de uma geração, e é muito provável que gostem de estarem ali “representadas”. Mas acho que essa é apenas uma camada das muitas que um romance deve apresentar ao leitor. Uma menina de vinte anos pode se identificar com a relação ambígüa das personagens, um homem de cinqüenta vai achar mais interessante o retrato que o livro faz do interior do Rio Grande do Sul porque ele cresceu numa pequena cidade do estado, etc. São experiências variadas e completamente pessoais. E, de qualquer modo, eu não acredito que toda relação com determinado livro parta necessariamente de um processo de identificação.

Recentemente, Luciana Villas-Boas questionou a falta de uma literatura brasileira voltada para o “leitor comum”: livros de qualidade e com grande público. É isso o que você busca ao atentar para o equilíbrio entre forma e um “enredo que possa interessar as pessoas”, como disse em uma entrevista ao Rascunho?
Exato, mas não com uma vontade deliberada de atingir esse ou aquele público. É o que me interessa, pessoalmente: contar uma história. 

Há preconceito quanto ao middlebrow? Que tipo de concessões você não faria para dialogar com o grande público?
Em primeiro lugar, não sei se há um consenso sobre o que é middlebrow e, como já disse em um texto que escrevi para o Blog da Companhia, eu sequer conhecia essa palavra alguns meses atrás. Dito isso, bem, se a gente considerar autores como Jeffrey Eugenides, Michael Cunningham e Steve Toltz como middlebrow, não posso imaginar de que modo ser preconceituoso em relação à obra desses caras, são escritores maravilhosos, e eu não me importaria nem um pouco de ser chamada de middlebrow se isso significasse estar junto com eles. Quanto às concessões, eu não pretendo fazer nenhuma. Posso fazer concessões quando estou escrevendo crônicas para jornal, vá lá, mas não com meus romances. Não faria sentido algum.

Muitos autores e leitores vêem a literatura como possibilidade de aprender algo sobre si mesmo, o outro e o mundo; e, ao mesmo tempo, como sinônimo de desestabilização. Que dúvidas e/ou aprendizados Todos nós adorávamos caubóis lhe trouxe?
Meu grande aprendizado foi ter conhecido parte do interior do Rio Grande do Sul. Antes de começar esse livro, eu tinha estado nos lugares óbvios e só. Gramado, Canela, litoral. Então me propus a fazer uma série de viagens como pesquisa. Em Bagé, me perguntaram: “O que tu tá fazendo aqui?”. “Passeando.” “Passeando? Em Bagé?” As pessoas achavam que não fazia sentido ir até aqueles lugares, não fosse, sei lá, para visitar um parente. Então eu me sinto realizada (ok, é brega usar essa palavra) em ter retratado esses lugares, que tem coisas interessantíssimas e raramente aparecem na literatura.

E o que seus dois livros anteriores te ensinaram que foi útil neste terceiro?
Do ponto de vista da técnica, me ensinaram muito. Quer dizer, eu olho pro meu primeiro livro, Pó de parede, e sei que vou encontrar ali frases que hoje eu não escreveria, mas, de maneira geral, acho que há um estilo, uma cadência, que se mantém. O encadeamento de diferentes tempos também foi uma coisa que aprendi a fazer (ou assim espero) no Sinuca embaixo d’água.

Como é o seu processo de transformação da realidade — ou sua experiência — em literatura?
Acho a realidade um pouco limitadora, e também me dá um certo constrangimento moral trabalhar me baseando nela. Não pego uma pessoa de carne e osso e jogo no papel. Até porque parte da graça está em construir o arco narrativo, reviravoltas, momentos epifânicos e tal, e isso é algo que você perde se ficar engessado na “experiência pessoal” ou em “como as coisas aconteceram de fato”.

Apesar de identidade ser um dos temas centrais de Todos nós adorávamos caubóis, não se trata da busca por uma identidade brasileira, e sim algo a nível pessoal, como em tantos livros recentes (e antigos). Suas personagens são jovens urbanas, com referências e experiências globais — que vão do Canadá à França, da música à moda. Não faz mais sentido discutir o que é ser brasileiro — com todas as questões econômicas, sociais e culturais que isso implica?
É muito difícil falar em “ser brasileiro” sem que isso seja redutor. Já se parte de um fracasso. Há diferenças regionais gritantes, e entre classes sociais, então, nem se fala. Mas acredito que Todos nós adorávamos caubóis está falando de uma das múltiplas identidades brasileiras, sim. O brasileiro que, como você disse, tem experiências globais e um monte de referências culturais estrangeiras. O brasileiro privilegiado. O brasileiro que não sabe sambar. O brasileiro desse Sul periférico tão não-brasileiro, ou que ao menos costuma negar, pra sua própria conveniência, a sua brasilidade. O brasileiro que, sobretudo quando está distante dos grandes centros urbanos, olha seu próprio país com estranhamento.

Quais características você mais preza em seus autores ou livros favoritos e busca trabalhar em sua própria literatura? As principais influências nela são literárias?
Hm, deixa eu pensar. Uma das coisas que prezo são personagens carismáticos. Também gosto de histórias que não poderiam se passar em outro lugar. Ouvi o Wim Wenders dizer isso em uma palestra: que ele construía narrativas que não poderiam se passar em um lugar que não fosse aquele, no sentido de que o lugar desenha a história e, por que não, os próprios personagens. Sempre levo isso em consideração. As principais influências são literárias, mas também cinematográficas, musicais. Uma foto pode ser influência. Vento na cara pode ser influência.

Um bom personagem não precisa ser boa pessoa ou alguém de quem desejamos ser amigos. O que é um bom personagem? O que você admira nas personagens que criou em Todos nós adorávamos caubóis, enquanto pessoas?
Um bom personagem é um personagem cativante, sedutor. E isso lhe dá o direito de irritar o leitor às vezes, ou porque o personagem decidiu fazer tal coisa, ou porque continua remoendo tal fato sem parar, etc. O leitor não precisa concordar com tudo que o personagem faz para se sentir atraído por ele. Não sei o que admiro na Cora e na Julia “enquanto pessoas”. Na verdade, o que mais admiro são esses momentos em que elas são percebidas “enquanto pessoas”. Já presenciei uma discussão inflamada entre duas leitoras, em que cada uma “defendia” uma das personagens e, por conseqüência, falava mal da outra. “A Cora é uma aproveitadora.” “Quê? A Julia é muito pior! Acabou com o namorado e vai correndo convidar a outra pra uma viagem. Conheço uns bofes assim.” Foi engraçado.

Um quarto livro já começou a se esboçar na sua mente ou ainda está sob a égide do terceiro?
O próximo livro vai ser, muito provavelmente, uma graphic novel. E também tenho um projeto de não-ficção. Vamos ver no que dá.

LEIA RESENHA DE TODOS NÓS ADORÁVAMOS CAUBÓIS.

Rascunho