Talvez os muitos anos roteirizando para o cinema e o jejum de mais de duas décadas sem publicar um romance tenham dado a A irmandade da uva um tempo próximo ao das histórias cinematográficas: o texto começa veloz e segue assim até o desfecho. John Fante, intencionalmente ou não, imprime na narração da história dos Molise — que como toda família é marcada por confusão — a velocidade da imagem visual, tornando-a assim quase um roteiro para o cinema.
O cerne desse drama é a relação entre pai e filho. Nick Molise, um italiano que emigrou para os Estados Unidos e ganhou a vida trabalhando como pedreiro na cidade de San Elmo, está com 76 anos e é um típico imigrante italiano caricatural, casca-dura e beberrão. Henry Molise, seu filho, é o escritor-narrador-personagem, alterego do eterno personagem Arturo Bandini, de Fante. O cenário de San Elmo, uma espécie de condado italiano, é quente. O calor sufocante da cidade faz referência ao amor igualmente sufocante que a mãe de Henry, Maria Molise, nutre por seu marido paesano. (Com relação aos termos em italiano que aparecem na obra, o tradutor diz que Fante errava muito na ortografia.)
Prelúdio
Se podemos afirmar que Henry é Bandini já consagrado como escritor, temos que dizer que neste livro John Fante é menos ingênuo do que em Pergunte ao pó e os diálogos estão mais aprimorados. Há pelo menos duas belas imagens dignas de nota: Henry, ao saborear a típica comida italiana, que há anos não comia, preparada por sua mãe, vai às lágrimas; e quando o pai, dormindo embriagado, chora, evocando a lembrança da mãe, e é consolado por seu filho.
Eis que Henry narra todo o tipo de “sorte” que passou, desde a saída da casa dos pais, até se consolidar como escritor. É uma narração grande, que a princípio podemos achar deslocada, como que um prelúdio desnecessário à história que realmente vale ser contada: o filho escritor de cinqüenta anos ajudando o velho pai a construir uma casa de pedra no alto da montanha.
Mas o prelúdio é importante: tudo o que Henry passou para se tornar escritor nada mais era do que uma fuga de um destino semelhante ao do pai. Três décadas depois, voltando à casa da família para impedir uma possível separação dos pais, se vê tendo que ajudar Nick na construção de um defumador: “Depois de trinta anos eu via a luz. Por fim, eu era um carregador de cocho de pedreiro”.
Talvez seja esse o grande sonho de todo escritor: trocar de pulsão, de desejo, de fruição. Roland Barthes escreve sobre isso em O prazer do texto: o escritor deve deixar de sê-lo para ser outra coisa — um ajudante de pedreiro, por exemplo. É provável que John Fante tivesse a mesma noção de Barthes.
Em busca do pai
Importante na recapitulação da trajetória de Henry como escritor é Dostoiévski. Não só para sua formação na área, mas também na relação com seu pai: “Dostoiévski estava morto e, no entanto, muito vivo no meu coração. Viera a mim como a graça de Deus, o clarão de um relâmpago que iluminou minha vida. Meu pai tinha aquela mesma iridescência, um halo ao meu redor, minha própria carne e sangue, um poeta afirmando sua vontade de viver”.
Pai e filho constroem o defumador bebendo muito vinho. A bebida era o que dava a eles a energia para erguerem as paredes de pedra. Terminado o trabalho, o pai adoece — neste momento é revelado que ele é diabético —, entra em coma e vai parar no hospital. Ainda que se recuperando sob os cuidados de uma enfermeira que em seus quarenta anos é muito atraente, o velho Nicholas foge e opta por morrer bebendo vinho com os seus amigos paesani.
Com sua morte, Henry fica sem rumo e, num ato de desatino, pede à tal enfermeira que transe com ele. Na casa dela, já despidos, ele descobre que trata-se de uma senhora de no mínimo sessenta anos, com a pele já flácida e de peruca.
Mais adiante, na biblioteca que fora construída pelo pai, o personagem volta a citar Dostoiévski: “Puxei o exemplar encadernado em couro de Os irmãos Karamazov. Segurei-o em minhas mãos, folheei as páginas, agarrei-o com força entre meus braços, minha vida, minha alegria, meu sublime Dostoiévski. Posso ter falhado com ele em meus atos, mas nunca em minha devoção. Meu querido Papa se fora, mas Fiodor Mikhailovich me acompanharia até o fim da vida”.
É um John Fante maduro, com domínio do que escrevia. Se Pergunte ao pó é um marco, a A irmandade da uva é uma obra-prima.