🔓 Especial Wilson Martins

Wilson Martins
04/01/2012

Chama acesa
Eu quase nunca concordava com o crítico Wilson Martins. Ao longo de muitos anos, talvez se contem nos dedos de uma mão as ocasiões em que terminei de ler uma resenha sua sem ter com ela alguma divergência grave, um ou mais pontos em que nossos credos estéticos pareciam água e óleo. O que demorei mais a descobrir foi que, por baixo de toda aquela discussão, havia uma concordância maior, um pacto sem a qual ela, a discussão, cairia no vazio. Martins ousava falar da literatura de dentro, seu pensamento era inteiramente feito de literatura. Ele não partia do livro para chegar a outro lugar, nem vinha de outro lugar para abordar o livro. Morava ali, e quando saía era para inspecionar a relação do livro com… outros livros. Avesso a sistemas, a “verdades” importadas de campos fora das letras, arriscava o pescoço a cada resenha. É o que torna sua História da inteligência brasileira tão caótica e tão interessante: o pulso de vida real. A literatura para Martins nunca era sintoma, era o que importava, como deve mesmo ser, se você tem a pretensão de se declarar crítico literário. Quando o relativismo cultural começou a tentar nos convencer — e como a universidade embarcou! — de que a qualidade literária é pura ideologia, pura balela, sobrou pouca gente para manter a chama acesa. Wilson Martins foi um desses. Foi quando seu famoso conservadorismo adquiriu uma certa aura de vanguarda. E eu descobri que pouco importava se, contando nos dedos, eu quase nunca concordava com ele.
Sérgio Rodrigues é escritor, jornalista e editor do blog Todoprosa. É autor dos livros As sementes de Flowerville e Elza, a garota, entre outros.

Fim de raça
Crítico rigoroso, sincero, honesto. Não cultivava o compadrio. Era fiel apenas a si mesmo e à literatura. Um dos intelectuais mais completos que este país já conheceu. Não teve receio de escrever uma obra tão vasta e ambiciosa como sua História da inteligência brasileira. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas através de bilhetes e de mensageiros que eram nossos amigos comuns. Nesses diálogos descontínuos, percebia-se o homem afável e generoso, que não hesitava em apontar defeitos em meus livros, mas que também sabia elogiar aquilo de que gostava. Pela imprensa, deu-me alguns epítetos elogiosos, escandalosamente exagerados, fato incompreensível para alguns dos meus colegas escritores — e também para mim, diga-se.
Wilson Martins cumpriu seu papel com elegância e conhecimento. Sem ele, a cultura de nosso país seria mais pobre. É possível que tenha sido uma espécie de fim de raça, isto é, da raça dos críticos que, mesmo conhecendo a teoria, sabem escrever da maneira que os leitores entendem.
Uma perda, reparável, por certo, mas não com a mesma qualidade e sabedoria.
Luiz Antonio Assis Brasil é romancista, ensaísta e cronista. É autor de livros como Videiras de cristal, Música perdida e O pintor de retratos, entre vários outros.

Herdeiros de seu exemplo
Todo grande pensador começa por dizer não ao convencional. Assim se deu com Wilson Martins, um dos nossos poucos autores de obra anticonvencional e revolucionária. Em entrevista a Miguel Sanches Neto, admitiu-se sem “talento suficiente para escrever um livro chamado Os brasileiros, assim como Luigi Barzini escreveu Os italianos”. Ao contrário do que imaginava, acabou por escrever esse livro em História da inteligência brasileira, ensaio-síntese que nos situa e define. Pouco dado a efusões, contundente em seus pontos de vista, Wilson Martins abordou seus temas frontalmente e sem preconceitos, apesar da imagem de aparente antipatia que lhe atribuíam opositores circunstanciais. Consultar seus livros tornou-se logo hábito nacional, embora nem sempre admitido e confessado. Em termos de intuição crítica, erudição e qualidade estilística, acompanham-no de perto muito poucos: Antonio Candido, Sergio Milliet, Fausto Cunha, Alfredo Bosi. Em tempo de serviço, no entanto, foi muito além, superando até mesmo alguns abnegados de obra extensa e importante como Temístocles Linhares, Massaud Moisés ou Otto Maria Carpeaux. Não há dúvida de que sua obra de crítico literário, crítico da cultura e historiador vai repercutir nas próximas décadas e provavelmente nos próximos séculos, enquanto existir esta estranha atividade que nos move — de ler e escrever, de sondar o mundo em que vivemos. Pode-se também dizer que a crítica de jornal terminou com Wilson Martins, isto é, a crítica sistemática e hebdomadária como ele a concebeu, paradigma de sua geração e cuja origem nos remete ao modelo francês, ou seja, ao século 19. Somos todos herdeiros de seu exemplo — este exemplo maior de amor ao Brasil e ao saber.
André Seffrin é crítico de literatura e artes plásticas, com passagem por diversos veículos da imprensa nacional. Organizou diversos livros, de autores como Rubem Braga, Lúcio Cardoso e Samuel Rawett, entre outros.

I walk alone
Wilson Martins é consultado na preparação das aulas, mas pouco discutido dentro delas, além de estar quase ausente das bancas universitárias. Acho que isso deve, em parte, à ruptura do pacto de cordialidade. Martins tinha mão pesada e gosto pela sova que dava em vários colegas de ofício, alguns com representação institucional importante. “I walk alone” — ele parecia dizer, com orgulho, a cada vez que desancava um deles.
Mas essa é apenas a hipótese mais imediata para o silêncio que pesa sobre o seu imenso trabalho. Penso que ele se explica mais profundamente não apenas pela exacerbação crítica, como pela sua erudição, tão distante do ramo atual em que se fazem as especializações: se entra com um autor no IC, se segue com o mesmo projeto no mestrado e será o mesmo, ampliado, o bojo do doutorado e do pós-doc. O que é, a rigor, um contra-senso: em humanidades, ou em literatura, quem sabe um não sabe nenhum. Erudição não se dispensa sem custo para a inteligência letrada. Wilson Martins não deixava que se esquecessem disso. Além disso, insistia em se manter na crítica de jornal, onde lia, ajuizava e palpitava muito, em vez de se concentrar no consensual, dentro de um nicho conquistado.
Enfim, dado que o jornalismo literário e autodidata praticamente desapareceu das redações, e que a própria literatura saiu de moda faz tempo nos departamentos universitários compreende-se que o achassem antiquado, de um e de outro lado da barricada. Ele sabia perfeitamente disso tudo, e mais ou menos se acomodou à imagem nostálgica de “último crítico”. Nunca o conheci pessoalmente, mas imagino que morreu tranqüilo consigo mesmo.
Alcir Pécora é crítico literário, professor de literatura na Unicamp e colaborador da Folha de S. Paulo. Também é autor de diversos livros, como Teatro do sacramento, Máquina de gêneros, As excelências do governador e Rudimentos da vida coletiva, entre outros.

 

PALAVRA CRÍTICA

Wilson Martins

RASCUNHO 19, novembro de 2001
O autodidatismo é o único método possível para aprender as coisas. Não acredito muito em cursos de literatura ou de crítica.

Os grandes escritores jamais fizeram cursos.

Eu não sou amigo de ninguém. Eu conheço meia dúzia de escritores.

Cada vez que uma minoria começa a reivindicar sua situação de minoria, ela confirma justamente aquilo que quer condenar, que é o gueto.

Se um sujeito disser que o Wilson Martins é uma besta, paciência, eu não posso fazer nada. Eu acho que não sou. Fica zero a zero.

Um crítico não erra nunca, simplesmente porque não há opiniões erradas. Há opiniões.

A cada artigo que escreve o crítico ganha quinze inimigos: o autor, a mulher do autor, os filhos do autor, os amigos do autor…

Dos 40 acadêmicos da ABL, há pelo menos 35 que eu não gostaria de freqüentar todas as semanas. Esse é o problema.

Não gosto de fazer profecias, mas acho que o que vai salvar a crítica, no que diz respeito ao espaço, é a internet.

RASCUNHO 72, abril de 2006
Os autores descontentes sempre acham que o crítico está errado. É normal. Nunca me incomodei muito com isso. Não perco o sono porque alguém não gostou da minha crítica. O leitor tem o direito tanto de concordar quanto de discordar comigo. O autor descontente tem o direito de estar descontente e de me dizer uma porção de desaforos.

Essa coisa vaga que nós chamamos de “cultura geral” talvez seja a ferramenta mais importante do crítico. Ele tem que ser um leitor onívoro. Incansável. Eu leio tudo, inclusive os livros ruins, ao contrário do que pensam os autores. Eu os leio do começo ao fim, morrendo de raiva, mas leio, porque é uma questão de honestidade intelectual.

Quem vê a novela das oito na tevê tem um conceito de literatura que é diferente do meu. O nível mental é outro. Não digo que seja inferior nem superior. É diferente. Tem outros parâmetros de julgamento.

O crítico literário, nos últimos 40 anos, viu seu espaço cada vez mais reduzido nos jornais. Eu sou de fato, como um animal em extinção, o último crítico daquela fornada, talvez pela persistência de continuar sistematicamente fazendo crítica, sem interrupção, desde 1946. Não quero ser, não gostaria de ser. Mas as coisas mudam.

A televisão substituiu de uma maneira espantosa a leitura no lar. Praticamente ninguém mais lê em casa. As famílias não lêem. Os filhos não vêem os pais lendo. Eles vêem os pais assistindo televisão. Não se lê mais, vê-se a imagem na tevê. A própria internet é uma espécie de substituição da leitura. É a leitura por imagem. Não se lê o texto na internet, está-se vendo o texto na internet.

A vida contemporânea é onipresente no espírito das pessoas. Essa obsessão pelo futebol… Temos um presidente da república cujo horizonte mental é o gol. Ele só pensa em metáforas futebolísticas e em exemplos tirados desse esporte.

Observe certos acontecimentos internacionais. Todas as televisões dizem a mesma coisa. Todos os jornais repetem as mesmas idéias. Tudo aquilo vem de uma fonte comum. Há alguns anos, na Unesco, as nações pequenas queriam suas próprias agências de notícias. Não conseguiram.

Imagino manter certa coerência intelectual. Não se trata de erro ou acerto. Trata-se de pontos de vista. Posso escrever sobre um autor ou sobre um livro algo sobre o que o resto da crítica discorde. Mas não é um erro. É uma opinião. Uma posição pessoal. Sempre cito a frase de um juiz da Suprema Corte americana: “Não há idéias erradas”. De fato, não há idéias erradas. Há idéias.

Muita gente reclama da globalização como se fosse possível evitá-la. Não é mais possível. É ser contra a chuva ou o vento.

A literatura e a poesia são isso: uma noção flutuante.

Rascunho