🔓 Entre a ficção e a realidade

Entrevista com Edney Silvestre, autor de "Vidas provisórias"
27/09/2013
Edney Silvestre, autor de Vidas provisórias
Edney Silvestre, autor de Vidas provisórias

Após os romances Se eu fechar os olhos agora (Record, 2009) e A felicidade é fácil (Record, 2011), o jornalista e escritor Edney Silvestre retoma a ficção com o recém-lançado Vidas provisórias (Intrínseca).

Na trama, seus personagens se interligam em quatro épocas da história brasileira, tecendo vulnerabilidades e certas frustrações existenciais. São imigrantes — exilados, como é o caso de Paulo, uma das vítimas da ditadura, ou espontâneos, como Bárbara, que persegue utópico “sonho americano” durante a era Collor. Silvestre apresenta vidas que, como o título aponta, são provisoriamente destituídas de sua nacionalidade e direcionadas a novos mundos, culturas e experiências.

Nesta entrevista, Edney Silvestre fala sobre este novo romance, o interesse pelos fatos históricos na ficção, a literatura como possibilidade de reflexão sobre o real e a construção de sua obra. 

 De onde surgiu o interesse em falar sobre alguns aspectos e fatos importantíssimos de nossa história, divididos em épocas distintas, como o exílio pela ditadura, a imigração na era Collor e a vida no estrangeiro?
Parece que nós, brasileiros, não gostamos de lembrar as partes sombrias de nosso passado. São fatos importantes, escondidos no armário. Os anos da ditadura militar — particularmente após o AI-5 de dezembro de 1968 — e os do governo de Fernando Collor foram terríveis para nós e estão escassamente refletidos na literatura de ficção. Quando lancei A felicidade é fácil, descobri que não havia nenhum outro romance situado nesse início dos anos 1990, expressamente mostrando os efeitos terríveis de políticas econômicas equivocadas ou perversas. Mas como, pensei então, como se explica isso? Não há explicação. E eu sentia que era essencial falar daqueles tempos, assim como da época dos governos militares, para podermos discutir quem somos, o que somos, porque assim somos, enfim, o país. Os anos Collor: essa é a época em que se inicia a grande diáspora brasileira, assim como a trama — a fuga do Brasil, em busca de uma ilusão dourada nos Estados Unidos — que envolve Bárbara, uma das duas personagens centrais de Vidas provisórias. A outra vertente do romance, onde começa a história de Paulo, é o período convulso, entre seqüestros, prisões, torturas, exílio e o ufanismo pela vitória na Copa do Mundo de 1970.

• Sua bagagem como jornalista ao longo de três décadas lhe ajudou na feitura de Vidas provisórias ou em sua literatura de modo geral? A geografia local e a história estão sempre interligadas no universo de suas personagens, e é o grande fio condutor de seus romances.
Minha ficção está profundamente enraizada no jornalismo. Na realidade da vida de todo dia. E a vida de todo dia começa como? A História, com H maiúsculo, decide nossos destinos. Seja um golpe militar que cerceia as liberdades, seja um atentado terrorista, seja a eleição democrática de um presidente, depois de duas décadas de regime de exceção, para ficar apenas com três exemplos. Estive em locais transformados pela História, como a Mesopotâmia, hoje parte deste país inventado pelo colonialismo britânico que é o Iraque, arrasada por inúmeras invasões, conflitos, guerras. Em meu primeiro romance, o contexto histórico é que formava as circunstâncias que levariam ao assassinato da personagem Anita, e que deslancha toda a trama. Paulo e Bárbara existem dentro do panorama histórico dos últimos quarenta anos do século 20. Balzac escrevia dentro do contexto histórico, Graciliano Ramos escrevia dentro do contexto histórico, Philip Roth escreve dentro do contexto histórico — por que diabos boa parte da literatura brasileira só pode existir para observar o próprio umbigo?

• Embora Vidas provisórias não seja exatamente uma continuidade de seu dois primeiros romances, como surgiu o interesse em colocar alguns personagens novamente na trama?
Paulo nunca foi embora, mesmo depois que encerrei Se eu fechar os olhos agora. Bárbara, de A felicidade é fácil, tampouco. Mesmo depois de fechar o texto de Vidas provisórias, percebo que a vida de Paulo ainda está em aberto. Assim como a de Sílvio e a de Antonio. Sinto o mesmo em relação a Mara, a ex-garota de programa de A felicidade é fácil, responsável pela denúncia que fará desmoronar a rede de corrupção que une membros do alto escalão do governo a agências de publicidade.

• A descoberta de seu lado escritor de ficção se deu antes ou depois do jornalismo? Pelas minhas pesquisas, parece que o senhor já havia escrito um conto ou uma novela na década de 1970, embora o renegue.
Sempre escrevi, desde que me lembro. Escrevia porque lia muito. Porque escrevia e conhecia a língua inglesa, comecei a traduzir. Traduzindo, (re)escrevia. Porque escrevia tornei-me redator, copidesque, repórter. Lá pelo final dos anos 1970, início dos anos 1980, tive alguns textos publicados aqui e ali, em revistas, algumas literárias. Continuei escrevendo. Nos anos 1990 tentei publicar um romance, sem sucesso. Tive de deixar para trás esse e outros textos quando me mudei para Nova York, levando apenas duas malas. Levei dois livros comigo: O encontro marcado, do Fernando Sabino, e As asas do desejo [de Peter Hadke].

• Seu primeiro livro venceu importantes prêmios literários (Prêmio Jabuti e Prêmio São Paulo de Literatura) e foi traduzido no exterior. Esse sucesso relacionado ao primeiro romance prejudicou de alguma forma suas produções ficcionais posteriores?
A reação da crítica e dos leitores a Se eu fechar os olhos agora foi muito, muito além do que eu esperava — a partir da crítica extremamente positiva de Manoel da Costa Pinto na Folha de S. Paulo. Eu tinha terminado de escrever meu primeiro romance no início de 2009, ele chegou às livrarias em novembro daquele mesmo ano. Quando ganhei o primeiro prêmio [São Paulo de Literatura], em junho de 2010, meu segundo romance, A felicidade é fácil, já estava quase completo. Quando ganhei o Jabuti de Melhor Romance, tinha iniciado há um bom tempo a edição e revisão de A felicidade, que tem tempos de ação muito precisos, em que segundos e minutos fazem diferença na ação e reação dos personagens. Em seguida, começaram a sair as edições internacionais de Se eu fechar os olhos agora (Sérvia , Portugal, Holanda) e a venda para outros países (França, Alemanha, Itália, Inglaterra). Não houve tempo de me ocupar (ou me preocupar) com a expectativa dos leitores, nem dos críticos. O mesmo aconteceu com Vidas provisórias: já tinha seu primeiro capítulo pronto quando entreguei os originais de A felicidade. Escrevo sempre. Neste momento, estou escrevendo mais uma peça de teatro e contos que reunirei em um livro a ser lançado dentro de uns dois anos. Minha peça Boa noite a todos foi lançada com uma leitura dramática de Christiane Torloni na Fliporto do ano passado. 

“Balzac escrevia dentro do contexto histórico, Graciliano Ramos escrevia dentro do contexto histórico, Philip Roth escreve dentro do contexto histórico, por que diabos boa parte da literatura brasileira só pode existir para observar o próprio umbigo?”

“Balzac escrevia dentro do contexto histórico, Graciliano Ramos escrevia dentro do contexto histórico, Philip Roth escreve dentro do contexto histórico, por que diabos boa parte da literatura brasileira só pode existir para observar o próprio umbigo?”

• E como se dá o processo de escrita de seus romances? Existe uma rotina diária? É um processo demorado?
Escrevo sempre que eu posso, o que não quer dizer diariamente. Sou jornalista, viajo muito, tenho horários incontroláveis — como incontroláveis são os horários dos acontecimentos. Mas consegui desenvolver grande capacidade de concentração, posso escrever em aviões, aeroportos, carros em movimento. Só não consigo escrever textos de ficção na redação. Nem sequer corrigir ou editar. É um outro mundo. Meu processo é longo, os personagens às vezes levam tempo para se mostrar, ou surgem no meio da trama, sem aviso, como aconteceu com Barbara em A felicidade é fácil. E ela acabou sendo uma das protagonistas no romance seguinte.

• A felicidade é fácil será adaptado para o cinema? O senhor tem tido algum contato com a produção, pretende participar do roteiro?
A produtora Mixer, de São Paulo, comprou os direitos de adaptação para o cinema. O filme será dirigido pelo premiadíssimo João Daniel Tikhomiroff (Besouro), que se apaixonou pelo livro. Ele pretende rodar em 2015 e quer um elenco internacional de astros para os papéis de Daniel (Javier Bardem) e Emiliano (Ricardo Darín). Talvez haja uma co-produção com a Argentina e a Espanha. As negociações estão em andamento, mas eu não as acompanho. Opinarei, se o João Daniel quiser, mas não interferirei em nada. Cinema é outro veículo, a adaptação seguramente terá que fazer cortes e mudanças na trama original do romance.

• Existe algum livro que marcou a sua vida? E por quê?
Vários, em épocas diferentes. Citarei apenas Memórias de Adriano, porque é uma obra de maturidade da autora, onde eu encontro uma profunda ligação com o que busco pessoal e literariamente, no reconhecimento e abraço do envelhecimento feito por Marguerite Yourcenar. 

• Seu terceiro e atual romance lhe conferiu certo amadurecimento e maior confiança em seu trabalho na ficção?
Desta vez levei três anos entre as primeiras notas para Vidas provisórias, as viagens (Suécia e Estados Unidos) para percorrer os locais onde viveram os personagens, as pesquisas sobre os acontecimentos históricos que marcaram suas vidas em quatro décadas, a composição dos capítulos, as revisões, as edições. Dois dos personagens centrais, Paulo e Barbara, eu já “conhecia” bastante bem, dos romances anteriores, e mesmo um terceiro, que o leitor descobre lá pela metade de Vidas provisórias. Comecei a ganhar confiança de que tinha o que dizer, e que era importante dizê-lo, a partir da crítica do Manoel da Costa Pinto, em 2009. E sempre contei, sempre, com o incentivo e opiniões lúcidas da Luciana Villas-Boas, primeiro como minha editora na Record, agora como minha agente.

Como definiria o momento atual da literatura brasileira, que se encontra em destaque aos olhos de fora?
Somos a nova grande literatura a ser descoberta pelo restante do mundo. Temos a vitalidade e a originalidade que a literatura norte-americana teve no início do século 20. Aqui, na literatura que se faz no Brasil, estão os novos Hemingways, Bellows, Fitzgeralds, Trumbos que podem encantar os leitores dos outros continentes. Temos uma diversidade e riqueza de temas, estilos e autores como nenhuma outra literatura no mundo neste momento. Alberto Mussa, Luiz Ruffato, Milton Hatoum: que outra literatura contemporânea pode começar citando obras da qualidade desses três autores, um carioca, um mineiro, um amazonense? O que precisamos é prosseguir com os programas de incentivo às traduções surgidos há pouco, aumentá-los, criar centros culturais de nossa língua no exterior, a exemplo do que os alemães fazem com o Instituto Goethe.

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