Do Manual de zoofilia

Conto de Wilson Bueno
01/08/2008

Leitores
Mal os percebemos os que nos lêem.

Noturnos em suas camas sozinhas, claros ao sol dos parques, curvos nas bibliotecas de Babel e da Cochinchina, nos reinventam os sonetos desesperados, redizem o dizer já dito mas com tal tamanha invenção que incendeiam, ah como incendeiam, os textos exangues — de heróica desesperança.

Não importa se de enlevo a tua cara branca no vidro da janela; ainda és, mesmo assim, a intangível margem dos livros fátuos, e os parágrafos mortos de medo.

Trêmulo me agarro a um decassílabo perfeito. Tonto de ternura, as mãos insones, vos adivinho e a vós me dedico com um luxo que decididamente não é meu nem me pertence. Animal de pequeno porte, uivo.

Examino a lombada dos livros eternos, gravadas a ouro e cristal; você cochicha na sala a canção que um dia foi minha. És assim, a reescrever o duas vezes lido porque escrito; o reescrito porque ainda outra vez lido.

E é de amor, sim, de indecifrável amor, o nosso enlace.

Pelicanos
Os pelicanos são como avis raras, e moram, em seu silencioso coração, as reticências.

Arcar com o severo pesadume do bico é, deles, dos pelicanos, uma insubstituível marca e, de certo modo, um glorioso acinte. Pudessem, não envergariam pela vida afora os bicos como trombas tristes e nem exibiriam as longas melancólicas canelas feito uma humilhação compulsória.

Ah, guardam, no escuro papo guardam uma esmeralda viva e sonham por nós o sonho oblíquo de que sendo sumamente feios, de físico e de feição, nós, os dois, neste lago merencório, alcancemos soar, quem diria?, perfeitamente escarlates.

Voar não podemos dada a complexidade do corpo contra a magra asa. Assim, jaburu, o nariz e a dilatada marca de teu lábio inchado.

Pombos
Que de alvoroço a azáfama de nosso amor gozoso!

Basta que uma apenas do pombal desamanheça para que instaure o suplício com que vimos construindo o árduo cio e o duro presto de amar-com-pressa. Tesos pescoços de arrepiadas plumas, túmidos bicos, quase uma fúria contra vossa pequena cabeça. Uma, duas, três, cinco mil vezes a submissão a que lhe obrigo, mal raie sanguínea e fresca a madrugada.

Asas contra asas, trêmulos, chilreantes, o baixo-grave de minhas gônadas chovendo dentro em vós a água, o sêmen, a destemperança.

Onde a paz do ríspido desenho com que, pombos, aviamos a nossa vida no escuro? E tecemos a vulgar inocência.

Ah, como quis te amar com as asas de um condor desassombrando a alta paineira.

Não, agudos olhos, doméstico pipilo, não passei, não passamos dos beirais com musgos. Alcachofras? Ou dormes já, de novo, nova vez, a inocente morte de agosto?

Vaga-lumes

Chegam pelas noites de verão — miríades deles num revôo de faíscas contra o azul profundo. Se um se ausenta, outro se assanha, abaixo, acima, de lado e a celacanto — assim tão sucessivamente que parece chovem sobre o quintal, entre os arbustos, os cactos e os eucaliptos.

Rever em vós o nítido contorno, a dura escorregadia couraça com que o corpo trincas (faíscas?) ao meio, a movimentos sincopados — o modo como escapas de meus dedos ávidos, e o sombrio gozo no coração do sinistro.

Desejar-vos a luminosa cola túrgida feito um veneno de iridescente apelo, e aprender à margem dos meus escombros de mim o quanto falhos fomos; e velhos em nossas luzes. Luzes?

Mais vale a alma sucinta do besouro para sempre condenado a uma morte de bruços, e cheia de pernas.

Perdoa o que fui de vosso látego e anátema; perdoa.

Então, amor, é que acendes, de inopino, toda uma floresta no escuro.

NOTA
Textos inéditos da futura reedição ampliada do livro Manual de zoofilia.

Wilson Bueno

É autor, entre inúmeros livros, do romance A copista de Kafka.

Rascunho