Understand yourself, accept yourself, but do not be yourself.
Luke Rhinehart
Em seu romance Mandrake, a bíblia e a bengala (Nova Fronteira, 2005), Rubem Fonseca faz uma citação, surpreendente, do filósofo francês Blaise Pascal acerca das paixões. Diz ele: “Nada é tão intolerável para um homem quanto um estado de completo descanso, sem paixões; então ele sente solidão, desemparo, vazio”.
Rubem Fonseca é, como o sabem seus leitores, um pesquisador das paixões humanas, sobretudo daquelas que arrebatam seus personagens, levando-os a cometerem os maiores desatinos para satisfazê-las. A cupidez, a ambição, a luxúria, estão entre os principais móveis desses agentes. Homens cheios de paixões vivem à beira do crime, parece nos dizer o meticuloso Mandrake, dando eco às ideias de seu criador.
Não seria ocioso dizer que o advogado criminalista Mandrake explora a paixão dos seus investigados como caminho certo para desvendar seus casos. É que as paixões costumam opor os homens entre si. Dando um passo adiante nesse raciocínio pascalino e rubem-fonsequino, Raduan Nassar chega ao requinte de suplementar às paixões humanas razões como que as justificando. Em outras palavras, para ele, a razão está a serviço das paixões, não o seu contrário, como já chegaram a pensar os iluministas e seus sucessores idealistas.
Lavoura arcaica (1975), romance, e Um copo de cólera (1978), novela, dois livros que deram nome e nomeada a Raduan Nassar, estão a merecer novas leituras, especialmente depois que o romancista ganhou o prêmio Camões, em 2016, conquistando, assim, o amplo mercado lusófono para sua curta, personalíssima obra, enriquecida, em 1997, com alguns textos curtos enfeixados sob o título de Menina a caminho.
Uma das leituras possíveis quer do romance, quer da novela, é justamente o predomínio das paixões sobre os personagens. O André de Lavoura arcaica arde de paixão pela irmã Ana, e parece ser correspondido nessa pulsão incestuosa, tema tabu que poucas literaturas ousam tratar às claras, que todas as grandes religiões interditam e que todas as sociedades modernas procuram prevenir. No caso de André, porém, morador de um não lugar (indeterminado), trata-se de uma paixão avassaladora para a qual ele não vislumbra qualquer alternativa afora vivê-la. Essa decisão ela confessa ao irmão mais velho que foi buscá-lo em seu covil, estratagema que se revelou inútil, como fica implícito na sua decisão de voltar para casa.
E é com paixão — uma paixão intensa — que Nassar relata o drama sem solução, de seu desvairado André, lavrador afeito às coisas do campo, filho de pais cristãos — mãe devota, pai severo, irmãos obedientes e comedidos. As referências que André faz ao avô revelam que os laços de família que os unem aos seus distam de muito longe, caracterizando sua família como uma família tradicional, obreira e temente a Deus.
Em Um copo de cólera, o narrador dirá, corroborando o que disse Pascal séculos atrás e que ecoa no Mandrake, de Rubem Fonseca: “a razão jamais é fria e sem paixão”. Mas, ressalta, “pra ver isso é preciso ser penetrante”.
A observação vale também para esse narrador porque, tal qual o André de Lavoura arcaica, ele é um instrumento da paixão — o acesso de cólera de que dá mostras nunca é totalmente cego, na medida em que seu agente o submete a cada nova etapa de seu ímpeto a uma análise fria e percuciente do seu próprio sentir.
Impulso cego
Daí que é fácil deduzir que há razões não só no amor (“razões que a razão desconhece”, disse-o Pascal), mas também na cólera, e cada um reage à sua própria maneira a um e a outro. Vivenciar a cólera em toda a sua intensidade pode ser uma delas. O mesmo se passa com o amor: se é impossível ignorá-lo, então a alternativa que resta é tentar vivê-lo a qualquer preço. Por isso, entende-se por que nada consegue refrear o impulso cego, lascivo, que impele André a buscar Ana, ou impedir que o narrador anônimo entorne o copo de cólera que lhe é servido por um pretexto banal. Em defesa de sua cólera, ele dirá que “alguém tinha que pagar, alguém sempre tem de pagar queira ou não, era esse o suporte espontâneo da cólera (quando não fosse o melhor alívio da culpa)”.
No caso de André, dá testemunho a sua decisão de voltar para casa — o que, nesse caso, equivale a voltar para Ana, a crer nas revelações que lhe faz o irmão mais velho acerca da transformação que se apoderou da irmã desde a fuga de André — o desespero a que este se entregou na tentativa de sufocar o impulso interdito, na certeza de ser um réprobo, até encontrar outro caminho e outro aposto. Antes, porém, ele confessa, no seu longo solilóquio, a título de autodefesa da culpa que confessará ao irmão Pedro, que sentiu “a força poderosa da família desabando sobre ele”.
Ressalte-se, ainda, que para uma narrativa que flui quase sempre em primeira pessoa, Lavoura arcaica se vale dos não lugares, dos ermos e sombras de uma linguagem onde sobressai a retórica do excesso, da reiteração que beira o desvario. A sua longa fala ao irmão Pedro é feita mais de perguntas do que de respostas, onde abundam insensatezes, metáforas obscuras, reiterações em profusão, em flagrante contraste com as lembranças desse mesmo narrador sobre sua convivência em família, nas quais avultam construções apuradas sobre o tempo graças à evocação dos sonorosos toques do sino da igreja local. Antes, o jovem André, dezessete anos, embalado pelas revelações que faz pouco a pouco ao irmão, chega enfim ao motivo fulcral dos seus desatinos, na abertura do capítulo 19. Diz ele: “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome”. E o capítulo não se encerrará sem que ele volte a esse tema, mas agora ancorado num preceito de ordem moral, quando refere ao “nome pervertido de Ana”.
Se nos voltarmos para os motivos que desencadeiam a violenta liça verbal travada em Um copo de cólera, não encontraremos terreno mais propício à razão, a menos que aceitemos que elas secundam as paixões.
Enfim, as torrentes da paixão que impregnam os dois livros de Raduan Nassar estão aí, desafiando o leitor de hoje, quarenta anos depois de sua escritura. Envelheceram na aposta da retórica da repetição e de outros efeitos retóricos na busca de persuadir, ainda que, ao entornar o copo de cólera ou a taça da cobiça terminem por ocultar o outro? Seria justo conceder a este só uma nuga de razão?
Voltemos, então, ao refazimento dos começos: Se a literatura permanece um jogo que só se pode jogar na quadra das palavras, os dois textos longos de Raduan Nassar permanecem como dois experimentos que se avizinham tão de perto dos limites autorizados pelo código verbal que, só por isso, mereceriam uma releitura, embora ofereçam muito mais. E se isso nos surpreende, não deveria, se lembrarmos de que a literatura, pertencendo ao sistema das artes liberais, é, antes de tudo, gratuidade.