Uma narrativa onírica combinada a paisagens fantasmagóricas, às vezes assustadoras, constrói o cenário mágico de O litoral das Sirtes, romance considerado unanimemente a obra-prima de Julien Gracq (1910-2007), um dos principais e mais discretos escritores franceses do século 20.
O lançamento da Carambaia, com tradução de Júlio Castañon Guimarães, traz de volta ao mercado editorial brasileiro um escritor há muito ausente, mesmo tendo, à sua época, chamado a atenção de leitores ilustres, como o crítico Antonio Candido. O litoral das Sirtes foi publicado na França em 1951, quando as tendências dominantes da literatura do país eram o existencialismo e o nouveau roman. A obra de Gracq, contudo, não guardava relação com essas correntes, aproximando-se da tradição surrealista.
O protagonista de O litoral das Sirtes é Aldo, filho de uma família aristocrática do país fictício de Orsenna, cidade-Estado governada por uma Senhoria, instância assemelhada a um conselho de notáveis. Orsenna, que vive um cotidiano de morosa decadência, se encontra há três séculos em guerra com uma nação vizinha, o Farghestão. De tão longo, o conflito estacionou em uma situação de paz virtual. No braço de mar que separa os dois estados, os barcos não ousam passar de uma linha imaginária a boa distância do inimigo.
Num importante ensaio intitulado Quatro esperas, Antonio Candido inclui O litoral das Sirtes num conjunto de obras de outros escritores (Dino Buzzati, Franz Kafka e Konstantinos Kaváfis) em que a estagnação é elemento central. Para o crítico, há nelas uma atmosfera de “expectativa de perigos iminentes, quase sempre com suspeita de catástrofe”.
Sobre o romance de Gracq em particular, Antonio Candido escreve que “a narrativa insinuante e opulenta, flutuando entre imagens carregadas de implicações, escorre como um líquido escuro e magnético no rumo de catástrofes possíveis, à vista de um horizonte selado pela morte”.
O litoral das Sirtes guarda ainda outra relação com o Brasil. Numa entrevista no fim da vida, Gracq revelou que uma das fontes de inspiração para o romance foi Os sertões, de Euclides da Cunha, para ele um livro “que é uma aplicação, avant la lettre, das potencialidades do surrealismo”. Além de Euclides, Gracq era admirador devoto de escritores inclinados ao gênero fantástico como Edgar Allan Poe, Jules Verne e J.R.R. Tolkien.
Julien Gracq era o pseudônimo de Louis Poirier, nascido em Saint-Florent-le-Vieil, no noroeste da França. A primeira obra publicada de Gracq foi o romance O castelo de Argol (1938), dedicado ao pai do surrealismo, André Breton, que viria a ser o tema de um livro inteiro de Gracq em 1948. Um ano antes de O litoral das Sirtes, Gracq publicou A literatura no estômago, uma dura crítica à ingerência de assuntos comerciais no mundo literário.
Apesar de seu apreço pela reclusão, Gracq provocou grande repercussão ao recusar o Goncourt, principal prêmio literário francês, por O litoral das Sirtes, em coerência com as críticas expostas em A literatura no estômago. Gracq deixou de escrever ficção depois de 1970, passando a publicar volumes de memórias, anotações e fragmentos.