🔓 Beijando dentes

09/01/2013

Caro Maurício,

Não sei se você sabe. Ano passado, publiquei no Rascunho cinco Cartas de um aprendiz. Gostava de escrevê-las, mas a reação feroz de alguns destinatários, que me leram como se eu fosse um juiz, ou um carrasco, me levou a desistir. A cegueira leva muitos escritores a achar que a crítica é uma condenação. Imaginei que jovens escritores escapassem disso. Que nada! Parece que a vocação literária começa não pelo impulso à escrita, não com o vício da palavra, mas como uma suspeita, ou uma perseguição.

Será que eu escapo disso? Provavelmente, não. Alguns dos desafetos que colecionei durante minha vida literária, quem sabe, são mais vítimas de minha sensibilidade, também ela às vezes irritável, do que meus algozes. Não estou aqui para me excluir de nada. O mundo literário é um tabuleiro de xadrez, no qual ocupamos lugares provisórios e onde nos submetemos a uma lógica que nos ultrapassa. Há um efeito danoso sobre nosso pobre mundo pessoal de que, de fato, ninguém escapa. Não seria eu.

Não sei se sou, na acepção rigorosa, um “crítico literário”. Sempre me vi, mais, como um leitor — alguém apaixonado pela leitura. Quando recebo uma correspondência endereçada “Ao crítico literário J. C.”, meu primeiro impulso é devolvê-la à portaria. Meus comentários não são especializados, são laicos. Não vejo isso como uma deficiência. Quando escrevo sobre o que leio, não consigo descartar meus sentimentos, devaneios, impulsos, fantasias. Conservo sempre o espírito do leitor atordoado, derrubado pelo que leu. Leu? Leio, ou o livro me lê? Ler é se deixar ler por um livro. A literatura não é o terreno de diagnósticos, balancetes e veredictos, mas da agitação e do assombro.

Depois de algumas reações ferozes às primeiras cartas, resolvi me proteger e encerrei a coluna. Por todo um ano, passei a escrever uma nova coluna, Folha de rosto, dedicada aos escritores consagrados, ou mortos. Contudo, muitos leitores jovens, alunos (alunos?) de minhas oficinas, escritores inéditos ou quase inéditos, me cobravam que voltasse com as cartas. Falar dos mortos, eles argumentavam, é fácil, no máximo eles te puxam as pernas. A obra pronta e também morta, porém, não se atinge mais. O difícil é falar dos vivos, sobretudo do que começam — e que por isso, trazem a sensibilidade em carne viva.

Sem floreios
De autores jovens como você, Maurício. Por prudência, decidi voltar às cartas com o seu Beijando dentes (vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007). Um livro que, sem dúvida, me empolgou. Um livro sem floreios, sem empáfia, escrito com força, livro de quem sabe o que deseja e o que busca. Um livro de escritor. Nele, um relato, em particular, me tocou. Ao redor da mesa (Fuga para quatro vozes), que está na página 27. É dele que venho falar.

Seu conto se baseia na idéia da fuga, não só o ato de fugir, mas também o gênero musical. Fala de algo que eu mesmo fiz quando resolvi, exausto, acabar com minhas Cartas de um aprendiz. Essa coincidência de posições me levou não só à idéia de recomeçar. Mas de recomeçar escrevendo sobre seu livro. É um relato que mescla quatro vozes — pai, mãe, filho e avó — que, em torno de uma mesa, falam da vontade de fugir. A síntese já está na primeira frase, dita pela mãe: “Vou embora”.

Toda relação, mesmo o amor incondicional, toca o insuportável. Inclui, de alguma forma, o desejo de fuga. Até amar demais dói. Somos seres inquietos, estamos sempre a trocar de pele (de sensibilidade) e de pensamentos (de sentido). O que hoje é bom, amanhã é péssimo. E disso trata seu conto: do insuportável como peça do humano. Os pequenos erros, os mal-entendidos, os desencontros, as incompreensões. Todos nos sentimos um pouco desgastados, mesmo nas horas mais calorosas. Todos nos cansamos, mesmo do melhor. Quantas vezes recebemos um elogio pela coisa errada? Quantas vezes, num equívoco doloroso, nos amam justamente pelo que temos de pior?

A fuga, o gênero musical, se caracteriza pela repetição (o tema é único), mas também pelo desencontro (pois dentro do mesmo, resiste sempre um outro). Nela, muitos sons (vozes, olhares) se misturam e se desafiam. Frases vindas de várias direções, perspectivas conflitantes, sons em luta — uma grande agitação que não exclui a repetição. Na fuga, a divergência se torna uma constante. A idéia de fugir é, na verdade, uma maneira de ficar. Tudo um grande lodaçal.

Força obscura
Esse gênero musical, em que a pluralidade fecha em vez de abrir, é a chave de seu belo conto. Um relato sobre a força obscura das certezas e da repetição. Um relato sobre a grande excitação que se esconde no coração das coisas imóveis. Nessa trança de movimentos que levam de volta sempre ao mesmo lugar, de repente, também eu me vi. E me assustei. O livro falava de minha própria fuga, que não parava de me perturbar. Falava de minha desistência, por cansaço, por um medo vago de errar, por desapontamento, das cartas que comecei a escrever. Seu livro, Maurício, me fez ver que eu precisava voltar a escrevê-las.

A literatura é uma sucessão de janelas e mais janelas que se abrem, a cada página, a cada linha, a cada palavra. Em seu Relatório da coisa, Clarice Lispector usou a marca de um relógio, Sveglia, para classificar as coisas do mundo. Sem ceder à publicidade, eu a imito e digo que a literatura tem um espírito em Windows. Ela destranca e areja o mundo abafado em que vivemos. Destrava a tampa do real, revelando seu interior em abismo. Janelas que despencam sobre janelas, portas e mais portas que se entreabrem, ventos e mais ventos a soprar, em uma voragem sem fim. Temos o espírito rígido, os bolsos cheios de certezas, a mente empedrada, sempre zelosos do realismo do chão. Mas, se abrimos um bom livro, nossas certezas desabam e nosso espírito ventila.

Você, Maurício, escreveu sobre aquilo de que a literatura mais foge: a repetição. Seu tema é, de certo modo, antiliterário. A conversa repetitiva entre os quatro parentes não leva a lugar algum, só traz de volta a si mesma. É um atoleiro, no qual a família se agita, sem se mover. Mas é em contraponto, como numa fuga de Bach, grande dança dos opostos, que você a manipula. Seu conto encena a potência da literatura. Como um casaco de dupla face, mesmo do pior, em um desdobramento, ela consegue arrancar o melhor. Basta pensar em Flaubert, que fez da pequena miséria humana a sua grandeza.

Seu conto me ajudou a pensar em minha fuga. Sem escrever, recusando-me a expor minhas perplexidades e dúvidas de leitor, eu me incluí naquela família, como um quinto e secreto comensal. Sempre digo que, mais importante que interpretar a literatura, é deixar que ela nos interprete. Assim são os grandes livros: eles nos agitam, deslocam nossas certezas, nos transformam. A leitura de seu livro me deu uma rasteira. Lendo seu livro, eu me li — ou melhor, ele me leu. Seu livro interpretou minha fuga e me ajudou a voltar às cartas. Por isso, Mauricio, muito obrigado.

De seu leitor, José Castello.

Rascunho