Leonardo Padura não tem partido nem religião. O que rege a densa obra do escritor cubano é uma ideologia própria que, sem ataduras institucionais, jura fidelidade apenas às verdades da história e à beleza das letras. Hereges, seu mais recente romance publicado no Brasil, mostra um pouco desta liberdade e, segundo o próprio autor, não é um livro histórico, nem filosófico, nem policial, porque é tudo isso ao mesmo tempo.
Lendo Emilio Salgari e Júlio Verne, o romancista entrou em contato com a literatura pela primeira vez ainda na adolescência. Não demorou muito para que fosse arrastado sem resistência para mais perto dos livros por meio do encontro com os clássicos. Aos 20 anos, tomou Hemingway como primeiro grande modelo e decidiu escrever também.
O caminho literário não foi uma rota fácil. Padura admite ter vencido limitações próprias e até enfrentado o desdém de quem um dia o subestimou. Mas tudo valeu a pena, não só para ele, mas também para nós, que temos em território latino-americano um dos mais importantes romancistas da literatura atual.
Padura não sabe quanto tempo ao certo se dedica ao ofício de escrever. Segundo ele, pensar como escritor e viver como escritor levam muitas horas do dia. Como se ser romancista fosse um estado de lampejo permanente. O que se sabe é que o cubano escreve todas as manhãs em que pode. E que desse processo todo está para nascer um novo romance no qual seu famoso personagem Mário Conde aparece como protagonista absoluto. “Estou trabalhando nele ainda”, adianta.
Nesta entrevista, Padura fala sobre liberdade, heresia, sonhos e ideologias. Também analisa a atual cena literária e reforça seu papel como escritor livre e comprometido em registrar a memória do seu país pelas letras, mas sem nenhum apego partidário.
• O fato de não se prender a rótulos religiosos ou partidários não o impede de ter convicções fortes. Pode nos falar um pouco sobre elas?
Sou uma pessoa que tem grande estima pela liberdade do homem. Para viver, decidir, dizer que sim ou que não. Creio que esta liberdade é essencial e quando alguém não a tem não é realmente completo. Isso ocorre com muita frequência no mundo, lamentavelmente. Também acredito que o homem pode melhorar o que é e lutar por isso, como meus personagens fazem. Eu, pessoalmente, creio na fraternidade e na ética e pratico estas duas coisas dedicando todos os meus esforços a meu trabalho e minha superação pessoal, sem utilizar as costas dos outros para qualquer ascensão. Quando comecei a escrever, ninguém apostava em mim. E o que eu fiz foi me esforçar, trabalhar, lutar contra minhas incapacidades, limitações, ignorâncias e tratar de vencê-las ou ao menos amenizá-las. E seguir trabalhando, trabalhando…
De todo modo, como não sou historiador, nem político, nem sociólogo, tenho toda a verdade: só a verdade do escritor e do cidadão que participa de seu canto da vida do país.
• As pessoas te questionam muito sobre Cuba. Você se incomoda quando o foco no Padura cubano atropela o foco no Padura escritor? Por que acha que isso acontece?
Sei que ser um escritor cubano e ter um reconhecimento fora da ilha me dá uma responsabilidade muito complicada e que assumo com disciplina, embora não com alegria. Sei que devo falar sobre Cuba, dar minhas opiniões, fazer minhas defesas e críticas ao país (sempre da minha perspectiva pessoal de cidadão e escritor que vive em Cuba), mas a verdade é que muitas vezes me interrogam como um guru da vida cubana e não como eu realmente sou: uma pessoa que escreve e que não tem poder de decisão política, nem qualquer outro poder que não seja puramente literário. Quem sabe, o problema esteja no fato de que as opiniões mais conhecidas sejam muito em preto e branco, e por isso me pedem que eu fale do tema. Ou são tão tendenciosas que beiram a falsidade e aí me buscam para falar. Porque muitos poderão estar ou não de acordo com as minhas opiniões sobre a realidade cubana, mas ninguém, ninguém pode dizer que eu tenha mentido ou exagerado quando me referi a qualquer fenômeno. De todo modo, como não sou historiador, nem político, nem sociólogo, tenho toda a verdade: só a verdade do escritor e do cidadão que participa de seu canto da vida do país.
• Que escritor cubano você indicaria a um bom amigo?
Recomendaria Abilio Estévez. Porque é um grande escritor e porque é um amigo fiel, legal, um homem trabalhador e um nadador contra correntes.
• Certa vez você disse que o Brasil se diferencia dos outros países latino-americanos sob vários aspectos. A literatura é um deles?
Sim e não. A literatura brasileira é, primeiro, brasileira, depois latino-americana e em seguida universal — a mesma lógica se aplica a todas as literaturas e artes. O Brasil divide com o resto da América Latina muitas condições e características históricas, culturais, raciais, econômicas, geográficas, mas cada uma destas cenas foi adaptada ao que é tipicamente brasileiro. Nisto incluo a literatura.
O mercado editorial vive um dos seus momentos menos felizes. A tendência da concentração de capitais e o surgimento de grandes grupos em detrimento das editoras medianas e pequenas subtraem a variedade e as possibilidades de edições e, portanto, de leituras.
• Como um dos poucos escritores do mundo que conseguem viver da literatura, de que forma avalia o atual mercado editorial?
O mercado editorial vive um dos seus momentos menos felizes. A tendência da concentração de capitais e o surgimento de grandes grupos em detrimento das editoras medianas e pequenas subtraem a variedade e as possibilidades de edições e, portanto, de leituras. Mas os meios digitais têm feito uma grande revolução no consumo da arte, inclusive na literatura e no mercado. De qualquer forma, acredito que o mercado seja um mal necessário porque graças a ele se comercializa a obra de arte, se promove (ou não) o criador e se criam categorias. O problema é que, em geral, o mais banal é o que mais vende e, se pensarmos bem, sempre foi assim. Agatha Christie vendeu muito mais livros que seu contemporâneo James Joyce.
• Você deixou um cargo importante na editoria de um grande veículo para se dedicar exclusivamente à literatura. O que o encorajou a abandonar o jornalismo?
Não deixei o jornalismo. Deixei de trabalhar como jornalista. Esta foi uma decisão necessária para poder realizar meu trabalho como escritor e foi sábia. Mas nunca rompi nem quebrei meus vínculos com o jornalismo, tanto que ainda atuo como colaborador de agências e jornais (aqui estão minhas colunas quinzenais na Folha de S. Paulo), porque o jornalismo é uma forma de expressão e de relação com a realidade que me complementa como romancista. Através do jornalismo, mesmo com a liberdade maior que tenho desde que deixei de trabalhar como jornalista, venho expressando em todos estes anos minhas opiniões sobre muitos aspectos da vida, em especial, da vida cubana. Deste trabalho, saíram antologias de crônicas e artigos, pois muita gente o considera um jornalismo que permanece através do tempo e que é um olhar diferente a respeito da realidade de Cuba, muitas vezes satanizada por uns jornais e santificada por outros, sem meias palavras.
• Mário Conde é um de seus melhores personagens e aparece várias vezes em sua obra. Como ele surgiu?
Escrevi um texto de umas doze páginas que intitulei “Um sopro divino” para contar como e quando nasceu Mário Conde e seu desenvolvimento em mais de vinte anos. Conde nasceu como protagonista de Passado perfeito (1991) e depois decidi que ele protagonizaria outros três romances (a série que chamei de As quatro estações), ao final dos quais deixa de ser policial. Mas o resgatei para outros romances, Adeus, Hemingway, A neblina do amanhã e, mais recentemente, Hereges, onde ele faz investigações, sem estar vinculado à polícia. Nos primeiros quatro romances, o ponto de vista de Conde é o único do livro e tudo o que é dito passa por sua perspectiva. Conde, antes e depois de deixar de ser policial, sempre teve suas próprias características: melancólico, nostálgico, muito vulnerável, com um grande sentido ético e de justiça e acredito que esses elementos, além da ironia, que é sua arma de defesa, fizeram dele um personagem querido para mim e para muitos leitores em muitas partes do mundo, pois seus romances estão traduzidos em mais de vinte idiomas.
O simples e o banal não geram arte. O complicado e provocador, sim, são alimentos para o artista, sobretudo se o intuito é conceber uma obra complicada e provocadora.
• Por que resolveu inseri-lo em Hereges?
Porque tinha que procurar uma história perdida e ninguém como Conde para encontrar coisas. Também porque queria escrever Hereges como um romance que não é histórico, nem policial, nem filosófico e ao mesmo tempo é histórico, policial e filosófico. Mário Conde se encarregou da parte policial.
• Uma das personagens centrais da obra é uma garota emo. Por que, entre tantas outras tribos jovens, escolheu justamente esta?
Porque me pareceu a tribo mais interessante, louca e provocadora pela sua filosofia. Isso a faz muito atraente do ponto de vista literário. O simples e o banal não geram arte. O complicado e provocador, sim, são alimentos para o artista, sobretudo se o intuito é conceber uma obra complicada e provocadora. E, em um romance em que falo dos conflitos do indivíduo com a sociedade por querer praticar sua liberdade individual, não poderia me dar ao luxo de ser trivial. Além disso, acredito que os emos e suas atitudes expressam bem o atual estado de uma importante parcela dos jovens que não quer ouvir falar de política, sacrifício, compromisso e busca suas próprias condições e expressões fora do establishment cubano.
• No contexto do livro, a heresia pode ser compreendida como um caminho de liberdade. O que é ser herege na literatura?
Não sei, mas posso tentar definir. E não sei, porque penso que a boa literatura, a literatura que provoca inquietação e faz pensar, tem um componente herético. O grande problema é que as palavras herege ou heresia estão carregadas de um sentido pejorativo a partir de seu caráter religioso. Mas um herege é um heterodoxo, um revolucionário em seu território e o escritor que não é complacente com as modas, o mercado e a banalidade o é. Um romance como Hereges rompe com os esquemas do romance policial e histórico: isso é heresia. Não é complacente com nenhuma religião ou ideologia dominante: isso é outra heresia. E não que eu queira me apresentar como um herege, não me vejo assim, mas sou um heterodoxo na medida em que me oponho às ortodoxias firmes porque a ortodoxia limita esta liberdade de que falei.