Às cegas

Narradora de "A chuva antes de cair", de Jonathan Coe, apaga as fronteiras entre o visual e o verbal
Jonathan Coe por Robson Vilalba
01/05/2010

Logo às primeiras páginas do romance A chuva antes de cair, de Jonathan Coe, vem-nos à mente a cena de abertura do filme Saraband, de Ingmar Bergman, em que a personagem Marianne (Liv Ullmann), dirigindo-se diretamente para a câmera, diante de uma mesa repleta de fotos, tenta ordenar e reavaliar memórias do passado, buscando nas imagens ali mostradas, índices do que, nesse momento de crepúsculo de sua vida, ainda estaria por vir. De modo análogo, a Marianne de Bergman, na obra de Coe, pode ser equiparada à velha tia Rosamond, que, precisando ajustar as contas com um passado misterioso, pouco antes de morrer, resolve abrir um baú de fotografias e, a partir delas, construir uma narrativa sinuosa e poética que pretende revelar um grave segredo.

Mais do que uma saga familiar, centrada especialmente nas figuras femininas de Rosamond, Beatrix, Thea, Imogen e Gill, que se sucedem em três gerações, calcada na premissa de que “toda família tem seus mistérios”, o eixo ficcional se sustenta na necessidade urgente de preencher, por meio do narrar, o vazio que a imagem, por si só, não dá conta de revelar. Em outras palavras, a pergunta crucial é a seguinte: o que haveria por trás das fotografias dos álbuns de família, o que é que elas não flagram, o que é que não conseguem mostrar?

Pois bem, é a velha tia Rosamond quem assume as rédeas do narrar, uma vez que, chegada a hora de partir, sente a obrigação, por desencargo de consciência, de fazer vir à luz uma verdade que, por muitos anos, buscou ocultar entre as quinquilharias do baú de fotos, lembranças e reminiscências familiares. Em resumo, o que ela decide fazer é gravar uma série de fitas, recontando à Imogen, jovem cega, neta de sua prima Beatrix e filha de Thea, a verdade sobre os reais motivos que a teriam levado à total incapacidade visual.

A cegueira de Imogen é o que justificaria, num primeiro momento, essa necessidade de Rosamond assumir a função, mais que de mera narradora, de voz narrativa — pois é literalmente a sua voz, registrada no gravador, que narra a história.

Jogo de signos
O que se estabelece, então, é um curioso jogo de signos, o visual e o verbal, que se imbricam, entrecruzando-se em camadas de superposição que coincidem, respectivamente, com os níveis do narrar. Importa observar, assim, o quanto a imagem fotográfica desencadeia uma verdadeira avalanche de palavras, que chegam ao limite da saturação descritiva, na obsessiva tentativa de traduzir, a quem não consegue ver, o que o olhar de quem vê alcança. Mas a relação imagem-palavra não é, em nenhum momento, unilateral, de causa e efeito ou de mera complementaridade.

O que surge é a dialética entre o sujeito que vê e o objeto visto, tal como analisado por Merleau-Ponty em suas reflexões fenomenológicas, uma vez que aquilo que vejo também me vê (é modificado por meio de meu olhar); uma vez que, como tão poeticamente esclarece Octavio Paz, em Transblanco: Me vejo no que vejo/ Como entrar por meu olhos/ Em um olho mais límpido/ Me olha o que eu olho/ É minha criação/ Isto que vejo.

Daí por que Rosamond se vê e vê os outros e as paisagens nas fotografias que escolhe, tal como sua percepção os apreende, num processo de recriação do visto e do vivido, por meio de um lembrar que assume, nos procedimentos do narrar, a força de memória ficcional.

O que temos, em conseqüência, como uma das marcas recorrentes no texto, é o apelo às descrições extenuantes do cenário, no recurso minimamente detalhista de seres, formas, cores e trajes, como se a palavra passasse a empunhar a câmera fotográfica, transmutando-se, ela mesma, de signo verbal em signo visual, em que a fotografia e o que ela representa entrassem em perfeita simbiose:

A cozinha da casa em Much Wenlock… Lembro-me por certo de que era apertada, mas mais do que isso, de acordo com a foto, tudo nela parece ter sido arranjado para enfatizar o enclausuramento e a falta de espaço. O assoalho é num padrão quadriculado em preto-e-branco, fazendo o chão parecer com um tabuleiro de xadrez. Um armário de mogno pesado e amplo ocupa a maior parte da parede, e a janela próxima a ele é minúscula. Essa janela dava para um pequeno jardim ao lado da casa e, para além dele, o quintal da casa vizinha. Para que a luz do quintal da própria Beatrix possa entrar, há uma janela na porta dos fundos, mas quando a foto foi tirada ela estava coberta por uma cortina de chita, com uma estampa floral em vermelho, amarelo e verde. Minha lembrança é de que essa cortina era mantida fechada quase permanentemente, de modo que a cozinha estava sempre na penumbra.

Poderíamos então notar, num primeiro plano, essa tentativa de narrar cada detalhe, a fim de aproximar ao máximo da situação descrita o destinatário que não a vê, como se o narrador quisesse emprestar-lhe olhos por meio das palavras.

Memória involuntária
Mas é o segundo plano de significação, que Proust e Beckett definiriam como o da memória involuntária, que, em termos estruturais, assume total relevância. É por meio das inferências que Rosamond vai acrescentando ao primeiro plano — no caso, o da minuciosa, objetiva descrição — que se cria a tensão entre o que está na superfície da imagem e o que ela esconde em toda sua profundidade.

Melhor dizendo, se a memória voluntária pode ser descrita como um álbum de fotografias em que as imagens do passado, personificadas em imagens corpóreas arquivadas, apenas desfilam diante de olhares desavisados, como um nostálgico passatempo de lembranças inofensivas, por outro lado, a partir do momento em que suscitam evocações e associações das mais diversas naturezas, elas passam, conseqüentemente, a puxar o fio do novelo das múltiplas significações.

O papel da memória involuntária, então, é o de sinestesicamente conferir vida aos fragmentos inertes que a memória voluntária reconstitui. Daí porque certos cheiros, por exemplo, acionem determinado tipo de recordação, mais forte do que a imagem em si. É o que acontece quando Rosamond descreve sua tia Ivy, avó de Imogen:

Enfim — o cheiro da tia Ivy… Não quero dizer de maneira alguma que ela fosse malcheirosa, nada disso. Era um cheiro forte, mas a seu modo atraente para mim. Acho que era uma mistura de um perfume qualquer que ela usava, e de cachorros (…)

Quanto mais olho para o rosto de tia Ivy nesta fotografia, mais ele me ajuda a lembrar, não de como ela se parecia, mas do seu cheiro, e do som da sua voz (…) A voz profunda e acolhedora, estendendo um “Olá” por umas cinco vezes a duração normal da palavra, de modo que ouvi-la era como ser tirada da água fria e enrolada num cobertor espesso; e ser então envolvida nos braços dela, embalada pelo seu adorável e perfumado cheiro canino.

Por isso é que Coe, em brilhante estratégia, funde imagem-palavra-memória e confere o poder criativo à sua Rosamond-Sherazade, que toma, apenas como pretexto, a primeira camada descritiva distanciada da fotografia, para afinal, induzir a destinatária Imogen/leitor a ouvir/ler, para muito além da imagem narrada, a ampla gama de significados ali ocultos:

Esta fotografia traz tudo de volta. E mesmo assim, às vezes, as imagens de que nos lembramos, aquelas que carregamos dentro da cabeça, podem ser mais vívidas do que qualquer coisa que uma câmera é capaz de preservar em película. Se abandono esta foto, agora, e fecho os olhos, o que imediatamente enxergo não são trevas, mas a memória de Beatrix.

Palavras e imagens
Assim, se em certa medida, o senso comum afirma que, muitas vezes, uma boa imagem vale por mais que mil palavras, como, por exemplo, demonstram as premiadas fotografias de Sebastião Salgado, em que o poder da câmera condensa uma rede de significados, capazes de dar conta de todo contexto ali representado. No revés da medalha, há infinitas situações em que só a imagem não basta.

Quase ao final do livro, a narradora confessa à Imogen a grande dificuldade que vinha enfrentando em casar as palavras com as imagens, a fim de encontrar frases que a ajudassem a imaginar cores, formas, prédios, paisagens, corpos, rostos.

No fundo, talvez aí resida um dos grandes trunfos da obra.

O enredo em que uma velha, que está prestes a morrer, deixa um pacote de fitas gravadas a uma destinatária cega a quem, afinal, pretende revelar um grave segredo seria, por si só, muito instigante. Mas esse artifício de conjugar a imagem ao verbo, fazendo com que se esmaeça a fronteira onde um começa e o outro termina, numa narrativa poeticamente articulada, é o que traduz a força literária desta obra-prima de Jonathan Coe.

Isso tudo, de certa forma, nos faz também pensar se os desafios do escritor de ficção não seriam semelhantes aos dos enfrentados por tia Rosamond, uma vez que ela concentra todos os seus esforços para acionar a imaginação de quem não consegue ver.

Além de Imogen, saímos ganhando nós, leitores, pois enquanto ouvintes atentos, capturados pela voz da dona da história, somos também conduzidos, tanto quanto os cegos, do reino das sombras ao da luz, em que só a palavra orienta e ilumina.

A chuva antes de cair
Jonathan Coe
Trad.: Christian Schwartz
Record
256 págs.
Jonathan Coe
Nasceu em Birmingham, em 1961. Publicou seis romances, entre os quais O legado da família Winshaw (vencedor do Prêmio Kohn Llewellyn Rhys, 1995), A casa do sono, Bem-vindo ao clube (Prêmio Bollinger Everyman Wodehouse) e O círculo fechado. Atualmente, vive em Londres, com a mulher e as duas filhas.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

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