Amor, morte e redenção

Com densidade lírica e rigor da linguagem, Mariana Ianelli constrói “O amor e depois” entre a esperança e a constatação do fim
Mariana Ianelli, autora de “O amor e depois”
01/05/2013

Autora de obras de relevo para a poesia contemporânea, como Passagens (2003), Fazer silêncio (2005) e Almádena (2007),Mariana Ianelli surge com mais um livro notável: O amor e depois, publicado também pela Iluminuras. A escritora, agora, enfeixa quarenta e um poemas que enriquecem o silêncio e põem a ventura do evento amoroso em suspensão reflexiva. Impressiona a tensão que cada texto encerra, deixando entrever um rigor de linguagem que, na sua pouca transparência, coloca um famoso aforismo de Paul Valéry em pura evidência: aqui, leitor e poeta constroem as cenas e imagens em inevitável, inescapável cumplicidade.

A instabilidade do sentido poético, aliás, não é menos que metáfora do mundo que os poemas elaboram. Se a elevação do júbilo, criada por todo amor luminoso, é a véspera do abismo que as decepções escavam, os motivos afluentes não poderiam ser mais afinados com o título do livro, no qual desembocam. O primeiro texto já antecipa: não se observa Neste lugar: “Nenhum traço de delicadeza,/ Só palavras ávidas/ E o tempo, / A devoração do tempo”. O espaço revela-se, de antemão, espinhoso e adverso, estendendo-se num tempo que se consome. Difícil não ecoar, ao percorrer linhas tão sombrias, o Eliot de The waste land, com toda a sua delicadeza devastada. Tendo por referente um cenário que se fecha e se defende, o poema o imita em suas formas e, qual Roseta nos desertos, se oferece apenas à decifração. Tudo isso, contudo, polvilhando uma beleza que se adivinha a cada verso preciso e sem excessos. Embora a coletânea guarde esse caráter sugestivo, O amor e depois é expressão que se pode traduzir com ênfase, na última estrofe do primeiro poema: “Um despenhadeiro, o céu/ E uma queda/ Sem alívio de esquecimento”.

O vôo da fênix
O abandono e a ruína serão temas permanentes no percurso da obra. O poema que intitula a antologia nos dá notícia da “passagem de uma hora branca,/ Entre outras tantas”: sem cores, tonalidades, namorada da morte. Aí, o coração manso “já nada espera nem recorda”, sinalizando uma desesperança refletida no descompromisso tanto com o futuro quanto com o passado — estátua do presente (presente imóvel e sem vida). Que se note, entretanto, uma singularidade essencial e que relativiza o ressentimento: o eu-lírico, ciente do fluxo do tempo e de suas mazelas, sublinha com sapiência e serenidade: “Como se o tempo não devorasse/ Também o desconsolo,/ E dele fizesse exsudar um leve perfume,/ Como se não arrastasse/ Cada corpo uma penumbra,/ Como se possível/ Em vida a paz dos mortos”. O personagem quase invisível, descrito pela voz poética, esquece, no auge da angústia, que o Tempo devora suas criaturas, inclusive a dor que ele um dia fabricou.

Por outro lado, é preciso aceitar a impossibilidade de, em vida, gozar da plena solaridade, o que Mariana Ianelli diz numa imagem notável: “Como se não arrastasse/ Cada corpo uma penumbra,/ Como se fosse possível/ Em vida a paz dos mortos”. A provisoriedade do círculo material reverbera, portanto, certa charada existencial. Do ponto de vista lingüístico, os efeitos de mistério ganham contornos na elipse do sujeito, nas catáforas, que oferecem alguma névoa homóloga ao fogo-fátuo que os versos evocam. E, neste aspecto, Ianelli é filha de seu tempo, ao preservar o tom enigmático que a poesia atual cultiva.

A dor das perdas que o amor germina vem acompanhada de certa resignação — que se vislumbra no peito experiente — e de alguma esperança digna de Sísifo. Mesmo se sabendo a impossibilidade da felicidade inteira, é preciso persegui-la e, após tantas vezes a pedra rolada ladeira abaixo, reerguê-la com o sonho de um “tempo de agora, sem castigo”. Drummond não diria outra coisa: “O primeiro amor passou./ O segundo amor passou./ O terceiro amor passou./ Mas o coração continua” (Consolo na praia). Essa recusa do aniquilamento ilustra-se na sublimação que todo ato criador comporta. Em Composição, por exemplo, a música é uma ação que se eleva sobre a pedra da carência: “A lenta e refinada arte/ De fazer nascer um adágio –// Extrair o peso a cada pedra/ E ver mais alto o edifício/ A cada coisa abandonada/ A cada rosto de si mesmo perdido –// Esse edifício transparente e musical/ Onde se vê um pássaro sobre ruínas”. O adágio encarna o andamento moderado, sem a aceleração ingênua da juventude e sem a lentidão excessiva dos derrotados. Trata-se de um equilíbrio que favorece o abandono de cada coisa, porque a vida também é a arte de perder — para se andar leve. Leveza, aliás, necessária para se erguer dos despojos um edifício sonoro, de tal modo que sobre as ruínas um pássaro-fênix possa, apesar de tudo, alçar algum vôo.

Poderoso ímã
O livro comove, malgré lui,pela delicadeza corrosiva de quem sabe que “vem de uma extinta batalha/ O calor dessa ternura/ Que é uma espécie de cansaço”. A Dádiva, aqui, significa a entrega de um eu enriquecido pelo saber das contendas. É quando Ícaro semelha menos Ares que Atena (a iconografia do declínio se revela em variada moldura no transcorrer da obra: a árvore ceifada, o navio submerso, as alturas em vertigem). Se atentarmos bem, flagramos nos poemas um movimento ondulante: a terra de cinzas exorta ao salto impávido que, por sua vez, se desiludirá em pura miragem de esplendor. Mas há sempre a desconfiança, o passo em retaguarda, a espera como quem desespera, uma pesca sem graúdas expectativas — beatitude sponvilliana ou, antes, o credo de Ricardo Reis: “Quer pouco, terás tudo; quer nada, serás livre”. A obsessão do naufrágio sinaliza: o amor permite viagens e, depois, afoga. Não obstante, a mesma sutileza é urgente, para que não se rompam os fios secretos do mundo. Isso porque, como Na madrugada descreve, após a dor e a angústia, as coisas suavizam e se deixam embaçar no tempo (“apenas neblina sobre as casas”). E, de fato, todas as vidas indispensáveis dissolvem-se no pó maciço do Indefinido.

A despeito da unidade estética, de cada verso ser um fio em tensão elevada, alguns textos certamente se destacam pela densidade lírica, pela exuberância de linguagem. O poema Os teus olhos, por exemplo, pertence a tal seleta, “rebrilhando em noite de geada”:

Que estejam vivos em algum lugar
Os teus olhos — 

Não importa onde se demorem,
Que coisas afaguem, que outras molestem,
Importa que estejam vivos e curiosos
Esses olhos

E olhem para dentro alguma vez
E o que vejam
Seja alguma força de sequóia
Presa à terra desde o império
De outros tempos

E seja ainda uma fonte de pedra,
Sejam águas correntes e o privilégio
De uma calma repleta
(O regozijo da sombra
Passado o terror das guerras)

Que dessa multidão, desse rubor de sumo
E segredo de floresta
Se encham os teus olhos,
E só então se esfumem, e só então se fechem.

A citação na íntegra justifica-se na impossibilidade de se retirar qualquer elemento de um texto tão expressivo, sem que o monumento se comprometa em suas fundações — exhibit poundiano. Ali, a atenção ao mundo é a primeira e necessária condição para uma revolução ética significativa: a percepção afetiva e efetiva do outro não pode ocorrer sem que o olhar esteja calibrado e disponível. Mariana Ianelli sabe-o bem, e pede que a morte seja antecedida pelo preenchimento interior de tudo. Os olhos, então, devem agir como ímãs poderosos, aos quais nada magnetizado de vida escapará.

Precisão e polimento
Uma das qualidades que um poeta pode cultivar é a de dar contornos plásticos ao pensamento abstrato: transfigurar o universal sem impacto sensível em particularidades radioativas. Ao se ver por dentro, que o ser encontre não uma força de vontade clichê, invisível aos olhos e refratária à perseguição da memória; que veja, antes, “alguma força de sequóia presa à terra desde o império de outros tempos”. Ao aproximar a lupa dos elementos circundantes, a voz enunciativa ensina a precisão do olhar com o próprio exemplo. Ponge alertava: o poeta deve estar atento ao mundo e à linguagem — lição que Ianelli seguiu à risca. Em rimas toantes e surpreendentes (pedra/repleta/guerra), observa que a serenidade emerge após os sismos e que a retina é uma arca de riquezas.

Outra pedra de toque dessa lavra recente, Desafio estampa imagens simples e primordiais, que fazem da memória um vitalício hospedeiro. Contra as espoliações com que a vida nos assalta, a alegria mínima é broquel, o fiel da balança no desafio metafísico:

“Provando o rumor dos interiores,/ As cores sóbrias, o lado gótico da vida,/ Pouco a pouco perdendo o fogo e o viço,/ O desafio é quanto pode durar o teu sorriso/ Contra toda a tua escória, as tuas derrotas,/ No fragor dos estilhaços, algum brilho.”

O verso derradeiro seria bastante para, metonimicamente, apresentar a poeticidade de Ianelli. O humour enquanto antídoto aos venenos da adversidade sai, mais uma vez, do campo impreciso do discurso lógico para, numa especialidade superior, dar-se a ver por uma imagem literalmente luminar. Se Fruto caído retoma o motivo do fracasso com o núcleo vocabular que identifica os textos (sombras, folhas, água, luz, frutas e cores), Nosso reino reafirma o movimento ondulante dos poemas, sugerindo que, no cenário das precariedades, no império dos ossos, toda tímida bonança é reino — chuva de ouro.

A composição que encerra o volume atomiza todo esse mundo que Mariana Ianelli arquitetou: “Aqui onde os caminhos se destrinçam/ Um mundo e a claridade do desejo/ De alguém que muito longe e muito antes,/ Recalcitrante entre os restos de uma guerra,/ Tentado a desistir, não desistiu”. O poeta Contador Borges, em seu certeiro e elegante posfácio, vê nessa atitude acima um modo de ir “domando a vida pelos chifres em sua luta desigual contra o tempo”. Ora, a própria arte, que guarda em si todas as razões para o silêncio e o provisório, subleva-se e impõe a Cronos a lança afiada da palavra que se quer eterna. O livro, como o leitor poderá notar, reservará a cada escrito uma folha inteira — o que é asseverado por poemas que ocupam a página oposta, quando necessário. E o detalhe é fundamental, porque se duas páginas são dedicadas a cada texto, a mudez também se agregará à fatura e ao sentido, como a pausa nos compassos musicais. À emissão da voz, que torna o homem participante da vida, segue-se a sabedoria do inaudível, porque é no enleio ondulatório entre o som e o silêncio que todo ritmo se elabora.

Em seu viés interpretativo, Contador Borges salienta: “depois do amor a poesia é tudo o que resta ao poeta”. E podemos dizer, sem medo de inflar o mérito, que os restos da vivência amorosa receberam de Ianelli um tratamento límpido de pedra polida. Se, em suas linhas, a cada derrota um valor mais alto se alevanta, no desafio contra o tempo sua poesia absolverá o amor efêmero e incansável.

O amor e depois
Mariana Ianelli
Iluminuras
112 págs.
Mariana Ianelli
Nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela editora Iluminuras. Como resenhista, colabora atualmente para os jornais O Globo e Rascunho. Escreveu crônicas para o site Vida Breve. Em 2008 recebeu o prêmio Fundação Bunge — Literatura, na categoria Juventude. Em 2011 obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) por Treva alvorada.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

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