“Abril em Paris” (3)

Por que continuar a jogar com olhos de atravessar os vidros mais opacos?
Ilustração: Marco Jacobsen
01/06/2011

“Quem acabou?” — a voz de Luiza, macia (para quem não conhecesse o acento determinado entre lábios ainda mais macios).

Eu respondi dando de ombros, sem o dólmã, enquanto sentava para beber mais do vinho morno. Ela também se sentou. E realmente queria saber:

“Quem foi que acabou?”

Eu fiz ecoar a pergunta, como havia cantarolando a porra de April in Paris:

“Quem foi que acabou?”

“É. Quem acabou. Foi ela?”

Balancei a cabeça, querendo significar: isso tem importância?

Ela fez uma expressão travessa (meninos difíceis são mais interessantes), em concordância com meu mudo comentário.

“Bom, pode não ter importância, mas você também podia me dizer.”

Podia, sim. E disse (quem podia resistir às perguntas de dona Luiza?), mas tentando trocar as bolas:

“Está bem. Foi ela, Diana.

“Diana acabou?”

(Duvidava, é claro.)

“É.”

Pareceu sorrir. (Ninguém enganava my mother.)

“E o motivo foi…”

Por que continuar a jogar com olhos de atravessar os vidros mais opacos? Eram dois grandes olhos de energia e sol, de preguiça e chuva, e podiam — sempre tinham podido — atravessar o filho como facas de uma atiradora cega a delinear um corpo girando numa gôndola. Atiradora nua e crua (quando queria ser).

“Adorei o seu cabelo, Luiza.”

“Não mude de assunto. — Dardejou um olhar “Luiza-Quer-Saber”. — Foi Diana mesmo?

Tive que sorrir. Quem podia com a minha Luizíssima?

“Não, não foi. Fui eu que acabei, ma cherie”. — e fiz uma jura militar, com a palma da mão levantada. Era a verdade, aliás.

“Ah, você, então, foi quem acabou…”

“Hum-hum.”

“E por quê?”

Voltei a dar de ombros:

“Por tudo. Por nada.”

Ela tomou seu gole, presa de cada vírgula imaginária nas minhas poucas frases lacônicas. Vindo um pouco mais perto, comentou (suave, mas olhos nos olhos):

“Por tudo e por nada não é uma razão muito masculina.”

Eu a adorava assim, começando a combater o bom combate, como uma gata pronta para arranhar um rebelde solitário numa ninhada. E lhe disse isso, com outras (poucas) palavras lacônicas:

“Escolha um motivo, e eu o adotarei retrospectivamente, Luiza Brentano.”

Ela riu:

“Meu amor! Meu doce amor, eu só estou pedindo que você responda, dois pontos (tentou engrossar a voz): bem, o motivo para ter acabado com Diana foi… o vestido que ela usou hoje. Que tal? Algo assim, claro e direto. Mas, sem invadir nada da privacidade dos dois noivinhos. Isto é, dos ex-noivinhos.”

Eu não respondi nada, e ela acrescentou:

“Bem, talvez não o vestido, pois eu nunca cheguei a ver Diana com um. Só com calças compridas. Então, você não gostou da cor da calça da moça, hoje?”…

“Vou pegar um balde de gelo” — eu disse, por fim, depois do silêncio que se seguiu ao negócio da calça, do vestido, aquelas coisas do seu divertimento com o prazer progressivo, a plena compreensão do que significa a notícia no fim de noite ou do começo da madrugada numa sala de atmosfera íntima, insensata, sensual se pode ser sensual…

Bem, eu me levantei, vendo que ela estava indo pôr o meu dolmã úmido na cadeira. Não calçara os sapatos. Pelo canto dos olhos, percebi que a roupa havia ficado dobrada como um tronco sobre a sela dourada da cavalaria das salas decoradas ao gosto confuso das Luizas: “Império” em cópias compradas em antiquários que lhe garantiam estar adquirindo autênticas peças napoleônicas trazidas para o Brasil.

“Lu, você é muito burra” — eu criticava, arranhando a pintura dourada, e ela ria como uma menina, ela ainda sabia rir assim, quando satisfeita como obviamente estava.

“Você está bem?”

A pergunta vinha da sala, lá do sofá de novo (a voz um pouquinho mais satisfeita, talvez? Quem poderia saber?).

Respondi “estou!” — no meio do som cristalino das pedrinhas de gelo caindo no balde. E resolvi também perguntar, alto, desafiador:

“E você, Luiza, está feliz? Gostou da notícia?”

Nenhuma resposta.

Voltei para a sala, com o gelo no balde de metal se nublando. Na passagem pelos interruptores, apaguei o lustre, e foi na sombra que rodeei o seu cabelo novo.

Ela não parecia ter se movido. Quando nos encaramos na sombra, foi no tom mais sério que perguntou:

“E como ela ficou?”

“Diana? Por que quer saber?”

Ela examinou as unhas, ao responder lentamente:

“Curiosidade malsã de uma mulher… má.”

Eu ri:

“Você nunca foi má. É bonita, e todas as mulheres bonitas são boas.”

Ela também riu.

Como ela ficou?”

Era melhor responder:

“Chorou. Ela chorou, é claro. Quer dizer, começou a chorar. Todas vocês choram. Mas se controlou.”

Na verdade, não se controlara nada. Nunca vi ninguém…

“E vocês… acabaram mesmo?”

Hein?

“Vocês. Realmente… acabaram?”

Pronto. A pergunta não propriamente hesitante, a indagação esperançosa de uma voz que não se trai no leve temor não inteiramente afastado por júbilo, a frágil modulação da voz naqueles “mesmo?”, “realmente?”, pedindo a confirmação, tremendo na água da dúvida — mereciam resposta? E aquilo era uma pergunta? Ou ela precisava ouvir (e avaliar) a certeza e a tristeza na confirmação de algum tom “definitivo”, ainda que o definitivo nem sempre seja definitivo?

“Acabamos. Diana sumiu da minha vida, e eu sumi da dela.”

Ela não suspirou, não moveu o olhar. Mas poderia ter suspirado, pelos lábios pintados não só desde a manhã — porque seu coração estava como naquela canção, e a minha certeza vinha de mim e não da Diana aturdida, que eu tentara poupar da crueldade feminina de Luiza, a de olhos secos pela antiga morte do marido (ela própria se descrevendo assim, numa carta — que não sabia que eu havia lido — para a irmã mais nova; a irmã que ajudara a me criar até certa tarde)…

Seja como for, estirou o braço, com o copo vazio. Queria, mesmo, comemorar?

“Não pense que eu fiquei feliz…”

Meu deus. Ela não vai querer ser hipócrita agora! — eu pensei, exclamei para mim, enquanto lhe servia mais do vinho ainda na mesma temperatura, ou quase.

“Você odiava Diana, Luiza.”

“Eu? Não senhor.

“Ah, odiava sim.”

Não sei se eu estava sorrindo. Talvez sorrisse o mais triste dos sorrisos na sombra, talvez isso a animasse a ser mais franca e menos temerosa, na noite cujo silêncio começava a beber da água miúda da chuva, enquanto eu esperava que viesse a espécie de confirmação que veio (e da qual ninguém precisava):

“Bem, digamos que eu nunca…”

Aguardei que ela conformasse a frase mais de acordo com o que gostaria de admitir, assim, meio a cru, o pezinho sobre a garganta de uma abandonada fulana no chão frio das despedidas numa sexta-feira prometendo um sábado e um domingo de dor de cabeça, telefonemas talvez não atendidos e o silêncio de uma casa onde dormem mãe e filho, numa quietude de túmulo pela manhã, amanhã — oh mão que repousa, agora, sobre a minha, num começo de carícia da unha pintada, um risco na pele eriçando lembranças a caminho de se descontrolarem, enquanto ainda há um pouco do resto de uma hostilidade breve nas palavras minimamente trocadas, em frases mais curtas do que os goles do vinho começando a esfriar enquanto aquece nossos corações — isto é poesia de beco, beleza manchada pelo que não é dito, ou que, então, estamos dizendo da forma cifrada que tange a verdade para baixo do tapete caro da sala, quando há visitas ou há necessidade de caminhar sobre o fio das coisas difíceis (como sua aceitação de Diana e de)…

Dói — também — ter deixado acontecer mais do que uma simples briga de pré-final de semana. Dói perceber que Diana ainda fizera um grande esforço para apagar o incêndio na ponta de um cigarro, como uma doente do pulmão transtornada pelas baforadas na sua cara: “onde há fumaça há fogo, você não acha?”

“Não, não acho, Diana. E não me trate como alguém crescido no feio vício do ópio”…

“Ópio? É engraçado que você fale disso assim, por imagens: estou lhe dizendo o que me disseram, falando de cinzas que não se apagam, para continuar com a imagem do não-fumante que você apregoa ser — escorregando a ponta do cigarro para dentro do posto de gasolina”…

Que imagens. Até enjoei um pouco, eu que sou alérgico a petróleo e derivados. Humor não adiantava. Ela havia dito da forma mais alusiva e delicada — eu é que fora brutal no corte do assunto, e, de certo modo, o confirmara e, depois, havia dito “adeus” daquele modo, sem dar margem a dúvidas.

Por fim, com um meio sorriso mais ou menos descarado, Luiza pensou e confessou:

“Digamos que eu não gostava muito daquela Diana.”

Daquela. Sua escolha da palavra projetava Diana para trás do passado imediato, como se ela fosse, já, um corpo queimado, um nome carbonizado na agenda de telefones do ano findo.

“Em outras palavras, você odiava Diana.”

Fez um gesto com o copo, equivalente a “é, isso mesmo: eu odiava, se você quiser”.

“Como você odiou Estela também.”

“Estela? Eu odiei Estela ‘também’? De onde você tirou isso? Logo ela?”…

Eu só fiz sorrir.

“De jeito nenhum eu poderia odiar alguém como a pobre Estela, meu querido. Só achava que era… burrinha demais. Um pouco chata, também. E esnobe.”

“Esnobe como você.”

“Você me acha esnobe?”

“Você é esnobe.”

“Sou não. Você sempre diz isso, mas eu não sou, não. Nunca fui.”

Okay.”

“É sério. Ou, então, não sei o que você quer dizer com esnobe.”

“Bem, você não g-o-s-t-a-v-a de Diana, nem de Estela. Ponto.”

Ela voltou a confirmar, de certa maneira, bebendo um gole. Tinha recolhido as pernas para sentar em cima, bem à vontade e relaxada como relaxava quando uma coisa a agradava. Ficava muito bem assim, estava começando a poder sentir-se satisfeita com a notícia inesperada, vinda para o meio da sala do seu descanso do serão solitário até antes da minha chegada. Eu quase podia ver o filme projetado na sua testa lisa: ele havia terminado com Diana, aquela mocinha sem graça (“ela não é para você, enfim”), sempre de calças compridas, bonitinha realmente, mas por que beleza é assim tão importante para os meninos?”…

(CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO)

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho