A morte solar de Lêdo Ivo

Inédito no Brasil, "Mormaço" é um livro sereno que exemplifica as múltiplas formas do poeta alagoano
Evento: Sessão saudade em homenagem à Moacyr Scliar Local: Petit Trianon. Data:01/03/2011 Na foto: Lêdo Ivo. Foto: Guilherme Gonçalves /ABL
01/03/2013
Clara, solar, diurna e até celebratória, a morte, para o Lêdo Ivo final, não encontrou nos signos usuais da convenção literária — escuridão, treva, sombras — o seu correlato imagístico.
Clara, solar, diurna e até celebratória, a morte, para o Lêdo Ivo final, não encontrou nos signos usuais da convenção literária — escuridão, treva, sombras — o seu correlato imagístico.

 

 

Com Mormaço (Calima, na edição em espanhol), ainda inédito no Brasil, fecha-se o conjunto da obra de Lêdo Ivo (1924-2012) — conjunto até então indefinidamente aberto, desde que, em 1944, um jovem alagoano, recém-chegado ao Rio de Janeiro para estudar Direito, publicara As imaginações, a que logo se seguiram dois romances, alguns ensaios e mais sete livros de poesia, até o final da mesma década. Aos poucos, o pai, o advogado Floriano Ivo, que de Maceió lhe pedia por carta notícias sobre recursos interpostos nos tribunais superiores (então com sedes no Rio), ia se acostumando ao caminho abraçado pelo filho poeta, embora às vezes com certo desagradado, por saber pelos jornais ou por terceiros dos lançamentos, dada a demora dos correios.

Sessenta anos depois de As imaginações, ao lançar sua Poesia completa, em 2004, Lêdo Ivo ainda publicaria Réquiem (poesia), O ajudante de mentiroso(ensaio), E agora adeus (correspondência passiva), O vento do mar (seleta de prosa e poesia) e Alagoa australis (seleta de poesia com temas alagoanos), traindo reiteradamente o título do alentado volume de quase 1.100 páginas — o que apenas confirma os versos dedicados ao pai, em Justificação do poeta, de As imaginações: “Pai, meus pensamentos não cabem na tua sala com piano tranqüilo a um lado e escuras cadeiras vazias perto da janela”. E por causa de coisas desse tipo, Sérgio Buarque de Holanda diria que aquele jovem era um poeta “de versos longos e nome curto”, em uma geração de “nomes longos e versos curtos”.

Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Fernando Ferreira de Loanda e — o mais famoso de todos — João Cabral de Melo Neto — a que parte da crítica nega sistematicamente o pertencimento à Geração de 45 —, seriam alguns desses “nomes longos” afeitos a uma poética de concisão e à clareza, quadro que oferecia ao crítico o bem-humorado paradoxo. Quanto a Lêdo Ivo, em 1954 já surpreendia Sérgio Milliet, uma das vozes mais prescritivas de então, mas que, diante da coletânea intitulada Um brasileiro em Paris, iria elogiar “a forma condensada e fortemente sugestiva do livro”, acrescendo, em tom de mea culpa: “percebo que na verdade esse homem é múltiplo e há que esperar dele muitas renovações como a atual”.

Janela aberta
A multiplicidade, uma das seis propostas de Italo Calvino para o milênio que já foi próximo e é atual, parece ter sido a grande marca da atividade literária de Lêdo Ivo, cujos “versos longos”, mais abundantes nos primeiros dez anos de escrita, continuariam ocorrentes, porém convivendo com formas curtas, medidas ou não, do sonetilho ao haicai, e até os aforismos espalhados em obras de enquadramento difícil (memorialismo? ensaísmo?), como O aluno relapsoe Confissões de um poeta.

É essa variedade formal que se vê em seu último volume de poesia, Mormaço, até o momento publicado apenas na Espanha, aonde Lêdo Ivo ia com freqüência nos últimos anos, conhecendo ali uma recepção literária mais intensa e entusiasmada que no Brasil do tal milênio. Em solo espanhol o poeta partiu para o desconhecido, deixando inacabada a última viagem, o que talvez agradasse (ou agrade) à sua consciência, já que celebra a incompletude no primeiro poema de Mormaço, O dia inacabado:

Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.

Não temos mais o poeta que buscava impactar o leitor com uma imagem nonsense, como faz em Linguagem, obra de 1951, cujo primeiro verso declara: “Minha vida é uma janela aberta sobre a Ásia”. Entretanto, a janela continuaria aberta, acessível a múltiplas formas e possibilidades criativas: Mormaço reúne verso livre e medido, curto e longo, e ao mesmo tempo confirma a persona viajante do autor e seu apego ao imaginário de águas da terra natal alagoana.

Esse último tópico, aliás, responde pelo título. Mormaço é o clima acachapante, de calor intenso e sem vento: a canícula tão comum em cidades nordestinas, Maceió inclusive. E não é a primeira vez que o poeta tira partido do signo: mormaço é palavra que já compunha o vocabulário poético de Lêdo Ivo, aparecendo em obras anteriores, como é o caso da “leve mortalha de mormaço e salsugem” que, “do nascimento à morte”, cobre os nascidos em Maceió (Planta de Maceió, de Finisterra).

Deslocado, porém, para título de um livro, a palavra ganha em potencial de significação. Diante de um poema em que se louva o silêncio de um rádio com as pilhas gastas, embora o poeta não reproduza a ambiência da palavra-título, um pequeno trecho de verso — “O sol é silencioso e nos ilumina” — parece lembrar ao leitor que estamos diante de uma atmosfera fechada, mormacenta.

Desenlace lírico
De fato, o título pode sugerir o momento estático de parada, o “ponto morto” ou mesmo o ponto final. Hoje sabemos que Lêdo Ivo tinha saúde frágil — embora sua vitalidade faça a informação soar como uma mentira ou justificativa para a morte de quem, aos 88 anos, dividia seu “tempo livre” entre palestras, viagens dentro e fora do Brasil, colaborações em reedições alheias (como o posfácio sobre Jorge Amado em Navegação de cabotagem, comemorando o centenário). Mas possivelmente o autor contava que Mormaço iria ser o seu último rebento, embora se afirmasse sempre incompleto e inacabado, com isso estabelecendo uma tensão criativa — para o leitor, sobretudo, que deverá considerar o título da obra precedente, O vento do mar, como outro termo simbólico, o último sopro da mobilidade. Em um poema forte e cálido (na dupla acepção de quente e terno), O coração presunçoso, Lêdo Ivo traça o paralelo entre o mormaço e a morte:

De nada adianta
negar a verdade.
Não temos passagem
para a eternidade.

O mormaço avança
e envolve a cidade.
Tudo é provisório.
Nada é realidade.

Estamos no escuro
como no cinema.
Coração impuro,
qual o teu problema?

Queres ser eterno.
Como és presunçoso!
Além das estrelas
não há nenhum pouso.

O ritmo binário, mas sem marcação rigorosa, provoca uma espécie de desencontro entre o tema e sua formulação. Quem é esse “eu” que se acerca do próprio coração e de sua vanitas diante da morte, como um pai diante do berço? É um Lêdo Ivo que atingira a simplicidade, em que os recursos expressivos de tal modo se encontravam incorporados à sua dicção que nada mais parecia artificioso, forçado. E então o desencontro se converte em encontro, o momento máximo de possível aceitação de nossa condição provisória, demasiado humana. Não há grito nem desespero, e mesmo em uma balada em que glosa D. João de Menezes, o glosador parece deleitar-se em não desesperar:

Desespero mais houvera
eu não desesperaria.
Desesperar é querer
pois quem desespera espera
antes que se ponha o dia
de duas águas beber.
São águas da mesma fonte
paridas no mesmo monte:
a água clara da alegria
e a água salobra da mágoa
que, de amarga, sabe a lágrima.

O conhecimento do final perpassa Mormaço, mas não conduz o poeta a nenhum paroxismo. Seu memento mori é quase sempre sereno e não raro bem-humorado. Alheio “à vida que poderia ter sido e não foi”, o velho Lêdo Ivo, com sua vida que sempre foi e ainda era, apurava o ouvido e captava em novo diapasão o que pudesse haver de lírico no desenlace. Em um dos poemas mais tocantes, a consciência da morte é como um “estremecimento”, como “algo quase inaudível, rumor brando/ de granizo durante a madrugada/ ou graveto caído de uma árvore”:

Era um sopro fremente, uma passagem
desprovida de sombra e identidade.
Era o pouso no chão de um passarinho,
o rastejar de um bicho na floresta,
um ninho derrubado pelo vento,
um passo tenebroso no caminho?
Eu não sei se era a vida que partia
ou a morte que chegava de mansinho.

Em outros momentos, porém, prevalece o Lêdo Ivo sarcástico, aquele que não hesita em escarnecer da própria morte. Esta é a “puta sôfrega” que “não respeita a nossa privacidade”, como escreve em A ronda da morte. E, diante dessa dama a ser ultrajada, alguns temas da vida literária fornecem o mote para as deliciosas especulações de O poeta e o professor ou para as advertências de Conselho a um velho poeta: no primeiro, Lêdo Ivo rebate as profecias de um professor-crítico que insiste em lhe negar sobrevivência; no segundo, aconselha seu duplo a despojar-se de todos os arquivos (o que de certo modo fizera ele próprio, ao doar em vida seu acervo ao Instituto Moreira Salles, no Rio, e ao Memorial que leva seu nome, em Maceió).

Potência visual
Interessante, nesse ponto, ressaltar a coerência criativa de Mormaço, pois o livro não é um mero amontoado de poemas escritos profusamente, como um adeus espalhafatoso, de quem procura assegurar-se do aceno. O próprio signo “mormaço”, quando não está diretamente relacionado ao ambiente dos poemas, à sugestão de morte que domina o livro, ocorre discretamente, como quando o poeta replica ao professor:

Tua rubrica é futrica.
Teus decretos prematuros
são erros crassos,
falácias que o futuro
e o mormaço
mudarão em fumaça.

A sonoridade áspera — “aço” — é uma constante reaproveitada. É por ela que o poeta, em vários momentos desse livro magno, procura comunicar ao leitor a sensação desagradável desse mormaço, não de todo alheio ao medo, embora vivido sem fuga ou lamentações. Aproximando-o de substantivos como “calçada” ou formas verbais como “faço-te” (nos poemas Os passos na calçada e Decerto ou talvez), Lêdo Ivo faz rebrilhar o que era palavra perdida, moeda azinhavrada nos dicionários ou na oralidade.

Como imagem, em sua potência visual, o mormaço lediano é um signo de clareza mórbida. O poeta divaga sobre praças vazias (Os sinos de Maceió) e assassinados pela violência endêmica em sua terra natal, já denunciada desde o romance Ninho de cobras, da década de 1970, mas até hoje atualíssima: no último censo, a capital alagoana permanece em destaque nos infográficos de homicídios. Clara, solar, diurna e até celebratória — “Tudo é sol, tudo é sol”, como exclama em Regresso a Jaraguá —, a morte, para o Lêdo Ivo final, não encontrou nos signos usuais da convenção literária — escuridão, treva, sombras — o seu correlato imagístico. O que nos faz lembrar um soneto de 1951, intitulado da comparsaria: “A mão da morte pousa no meu ombro/ onde uma cicatriz de luz transborda./ E eu, que sou transitório, vivo o assombro/da rotina do eterno que me aborda”. Agora, com seu Mormaço, a “cicatriz de luz” voltava a transbordar em Lêdo Ivo:

Sempre caminhei
entre luzes e sombras
e agora a claridade
do mundo me assusta.
E uma mão invisível
de Deus? de mim? dos homens?
pousa no meu ombro
junto ao mar dourado.

Foi essa mão invisível e solar que pousou no ombro do poeta na Espanha, às vésperas do Natal de 2012, quando ainda fazia planos — conforme soubemos pelas entrevistas de seu filho Gonçalo — de cruzar a pé uma ponte sobre o Guadalquivir. A nós, brasileiros, resta aguardarmos que a poesia seja repatriada e a viagem se complete.

NOTA
Citações de poemas colhidas na edição bilíngüe de Mormaço, publicada na Espanha pela Vaso Roto Ediciones, 2011.

Mormaço (Calima)
Lêdo Ivo
Trad.: Martín López-Vega
Vaso Roto Ediciones
324 págs.
Lêdo Ivo
Nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), e faleceu em 23 de dezembro de 2012 na Sevilha (Espanha). Formou-se advogado pela antiga Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, mas nunca exerceu a profissão. Estreou na literatura em 1944, com os poemas de As imaginações. Além dos livros de poesia, publicou romances, contos, crônicas e ensaios, traduzidos e publicados em diversos idiomas, como italiano, espanhol e inglês. Em 1986, foi eleito para a Cadeira nº. 10 da Academia Brasileira de Letras.
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho