Para um escritor convencional, uma festa é apenas o desfile de pessoas alegres e curiosas, mesmo quando cumprem um rito, por assim dizer, social. Para um escritor genial, porém, é o momento de avaliar o comportamento humano em todas as suas dimensões, investindo na linguagem, no tempo psicológico e no ritmo narrativo. Algo completamente revolucionário, mesmo com uma aparência comum.
É o caso do conto Os mortos, de James Joyce, agora publicado pela Penguin/Companhia das Letras, com primorosa tradução de Caetano Galindo, que assina também a apresentação do livro. Antes, conhecíamos a tradução de Hamilton Trevisan, de 1964, para a edição da Civilização Brasileira, encerrando o volume de contos Dublinenses — considerado por Ênio Silveira um “microcosmo e painel, porta de acesso por que se penetrará no universo joyciano, universo de luz e sombra, de calor humano e de fria, de quase insuportável lucidez”. É claro que Ênio tinha razão. Não só pelo aspecto humano, cuja penetração é sempre emocionante e consistente, mas pelo uso inaugural de técnicas que se tornariam mais fortes e firmes, sutis e trabalhadas.
É verdade que há pequenos e breves conflitos nas traduções, bastando citar, por exemplo, o parágrafo final do conto em Trevisan e em Galindo. Parece que este se aproxima mais da verdade do texto de Joyce ao trazer as aliterações que celebram o sentimento, a sensação e a suavidade da neve caindo e a musicalidade das palavras.
Assim traduz Trevisan: “Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve a cair suave através do universo, cair brandamente — como se lhes descesse a hora final — sobre todos os vivos e todos os mortos”.
Correto? Sim, correto. Um belo e comovente texto. Mas Galindo compreende melhor o jogo lingüístico de Joyce e substitui a palavra “suave” pela legítima sensação de suavidade através da aliteração e da frase, música pura. Cria mesmo a sensação de que a neve cai no personagem e se derrama na sua cabeça, ombros e no peito do sobretudo.
Assim: “Desmaiava-lhe a alma lentamente enquanto ouvia no universo a neve leve que caía e que caía, leve neve, como pouso de seu fim definitivo, sobre todos os vivos e os mortos”.
A frase é completamente refeita, além de reforçada, dentro de vírgulas e não de travessões, para destacar o sentimento de morte do personagem, depois do desmaio da alma de forma direta — “Desmaiava-lhe a alma lentamente” — e não indiretamente, por causa do ambíguo pronome “sua”, como está em Trevisan — “Sua alma desmaiava lentamente”. Reparem que a ambigüidade se dá pela sensação de falar com o leitor e do personagem. E, mais à frente, Galindo retira a palavra “todos” de “todos os mortos”, para manter a suavidade.
Observem bem o jogo das frases em Galindo: “a neve leve que caía e que caía, leve neve”. Ele retira “brandamente”, que, por natureza, é um advérbio agressivo, visual e ritmicamente. A frase ganha mais suavidade e se aproxima da técnica de Joyce.
Assim, pode-se perceber, com clareza, a introdução ao universo joyciano que Trevisan — sempre um tradutor criterioso e atento — preferiu linear e, por assim dizer, burocrático. Não está errado, apenas optou por outro caminho. O ideal é que tivéssemos o texto original, mas consideramos a tradução de Galindo mais exata porque expõe o universo consagrado de Joyce, na forma conhecida por todos nós, tanto no original quanto em português. De forma que já em Dublinenses podemos encontrar os elementos que seriam largamente aplicados no Ulisses e, mais tarde, esgotados no Finnegans Wake, onde o irlandês zomba da literatura tradicional. Mesmo assim, é preciso destacar que as experiências de Joyce começam em Os mortos, que os brasileiros conhecem agora em tradução exemplar.
NOTA
O texto A leve neve de Joyce foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, editado em Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.