🔓 A grande família

01/07/2014

Meninos, vou contar uma estória do porto que é das mais airosas em que o homem já se aventurou desde o atrevimento de descer da árvore e largar aquela bestagem buliçosa que era fazer macacada no paraíso, disse tio Balela. E é uma estória da bola, de chutar a boa. É uma estória de amor. E os primos dando saltos logo fomos empurrando uns aos outros e sentando no tapete da sala e Nicinho já foi brigando com os cotovelos para sentar no melhor lugar e Seu Bahia picado disse moleque se porte que nem moço traste tenha tento e Tio Balela foi logo dizendo deixe ele Seu Pimentel que esse mal perdeu a mamadeira mas já sabe que a vida é tramoia que se ganha mais no dente que no repente e não se acanhe que porrada de primo é carinho, é bom que já vira homem todo lapado e fica tinhoso de casca grossa e dorme sempre de olho aberto que é como tem que ser. Então Tio Balela fechou os olhos e respirou fundo e ficou ali buscando o rastilho, Felipinho, Garito e Joínha de olhos esbugalhados para ouvir melhor quando a estória afinal saísse da boca e ganhasse mundo, Tio Balela ficou mastigando a própria boca, e sorriu. E falou.

ilustração

Então Tio Balela disse que a aventura começa conforme um dia Seu Nino me contou que seu pai Abrão Velho disse que seu avô Abrão Jovem, conhecido como Abrão Menino nas vendas de peixe e de tabaco da Rua do Acre onde alongava suas tardes de vadio bebedor com umas prosas banhada de saudade das terras gringas feias dele e contanto lorota para quem quisesse ouvir, e ouvia só porque gostava do docinho de Dona Samanta que Seu Bahia sabe que não suporto mentira e fico todo cheio de alergia quando alguém vem com acontecido aumentado pro meu lado, eu sou muito cientista quando conto meus acontecidos mas aquele velho safado do Abrão Jovem fazia até graça, disse Tio Balela. Mas descontava muito até que teve uma estória que acreditei e não porque Abrão Jovem jurava de pé junto quando contava porque se fosse por isso ele só andava aos saltitos que nem sereia com um pé soldado no outro porque apesar de ateu o velhote gostava de jurar as estórias escabrosas dele que nem beata. Mas acreditei naquela estória que escutei comendo o quindim de Dona Samanta, disse Tio Balela, porque Abrão Velho não piscou quando confirmou e contou o que o pai disse como tabuada, e Seu Nino não coçou o nariz quando reconfirmou e recontou o que seu pai disse também tão certo quanto tabuada, e todo loroteiro tem um gracejo nervoso, e deles eu conhecia os tiques e falaram sem tique. Então acredito.

E a trama é que Abrão Jovem viu o milagre com os olhos azuis dele que a terra já comeu faz tempo, e o milagre quando contava só variava que de vez chovia e de vez fazia sol e de vez também tinha ressaca no mar que engolia tudo porque ele variava para agradar quem tivesse ouvindo, disse Tio Balela. Mas o fato verdadeiro não mudava porque o fato era o fato, e fato foi e permanece até o fim dos tempos: Abrão Jovem esteve lá, sentado em um banco olhando o horizonte do mar e bebendo uma birra, quando um menino tão graveto de não aguentar um vento nas tretas pulou uns dois metros de altura e arrepiou com uma lapada de pé direito um coquinho tão forte, mas tão forte, que todas as gaivotas voaram e o que sobrou do coquinho varou para dentro do mar da Praia Formosa e deve ter parado só em Sergipe, se não quebrou um casco de navio no caminho e causou desastre. A saudosa Ponte dos Marinheiros foi palco do milagre, e naquele sorriso do menino deitado na areia olhando o céu que Abrão Jovem viu e apreciou e admirou estava a semente que fez desse Brasil pardieiro de branco, caboclo, preto, cafuzo e mameluco a mesma família.

E era um Da Silva o menino que brincava na areia, um Da silva como Bahia é um Da Silva, e Nicinho é Da Silva, e Garito é Da Silva, e Joínha é Da Silva, e Felipe é Da Silva, e é sabido que cada Da Silva nasceu com um encantamento, disse Tio Balela. Tem Da Silva que faz telha e Da Silva que entrega carta, e tem Da Silva que faz pão e Da Silva que moí pedra, e tem um Da Silva para cada dia da semana e hora do dia e estrela no céu, e a gente ainda vai ter um Da Silva presidente e um Da Silva astronauta. Mas o graveto era um Da Silva que nasceu com o pé lambido na colmeia, tinha mel e seda e viola no pé daquele menino pois aquele menino franzino era Leônidas Diamante Negro, poeta imortal do bolapé, e filho predileto dos bairros marítimos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro que ingrata engoliu com cimento e pedregulho a praia e a ponte onde seu filho distinto nasceu, mas que o filho matuta e perdoa, disse Tio Balela, como os filhos sempre perdoam o amor atrapalhado dos pais.

E Abrão Jovem quando era jovem já tinha visto o que iria se suceder, disse Tio Balela, que aquele menino faria todo um país apaixonado gritar um mesmo nome, ter uma mesma paixão, e isso já nos idos de 1920 quando eu era jovem lá em Sertânia e nem sonhava que iria viver um dia nessa cidade. Mas não é a gente que sonha com o Rio, disse Tio Balela, é o Rio que sonha com a gente pois depois que essa cidade nos escolhe é só seguir lambendo o leito do canto dessa sereia que nos enreda e nos acarinha e nos adocica e a gente nem sabe porque está longe, distraído e abestado, e mais dia menos dia aporta aqui porque é fatal. Foi assim comigo, com Seu Bahia, e foi assim conforme Seu Nino me contou que sucedeu com seu avô o saudoso desgrameira Abrão Jovem: chegou no Queen Mary no porto mais seus comparsas da gringada com uma pelota de couro debaixo do braço, e tinham os sobrenomes babado de pompa que os fidalgos daqui exibiam como medalhas, só que apesar das firulas e dos olhos claros e pele sardenta não eram da bonança e nem podiam jogar bola nos campos cercados de palmeiras de Laranjeiras e Botafogo. Eles eram o que eram, que porto é igual no céu e no inferno.

É como Seu Nino me dizia que seu avô Abrão Jovem contava para seu pai Abrão Velho, que a gringada tinha os mesmos sobrenome babados de pompa mas eram os Da Silva da Inglaterra e das Escócias da vida, todos branquinhos como os meninote bacharéis de maquiagem que se exibiam jogando bola de gravatinha e davam passes e quiques cheios de regras nos clubes de sociedade, disse Tio Balela. Os do portos e dos subúrbios eram a negralhada dos grã-finos ontem, hoje e vocês gurizada mudem essa estória, disse Tio Balela. Só que naquele tempo se não estavam presos ou fugindo da polícia, farejadores das ruas do centro tocaiando como capitães-do-mato, a negralhada estava polindo ou varrendo ou soldando ou martelando ou carregando no próprio lombo o suor da bonança do marechal que nesse mundo que vivemos tem muito de sorrir e muito de dançar e muito de gostar, mas é tal a façanha que para um sorrir filé cem desmamados têm que chorar assem. Mas a negralhada da Europa é uma negralhada que dormiu no tonel de água sanitária: também polia, também varria, também soldava, disse Tio Balela. E tinha o lombo cheio de calos como toda gente, eram os Da Silva dos Smitis e dos Jaimis e dos Tompison. Eles eram nossos irmãos.

Mal chegaram na Saúde e Gamboa com a bola debaixo do pé, e já eram recebidos como craques, disse Tio Balela. Ganharam em cada várzea que foram e onde encontraram cinco, seis, sete homens de pé já jogavam a bola no chão e começavam partida. Seu Nino me dizia, disse Tio Balela, que jogaram em tudo quanto lugar foi possível: no trapiche Cleto e no trapiche Damião, na Pedra do Sal e no Estaleiro Bragança, dentro do moinho Fluminense e até no cais dos Mineiros. Abrão Jovem dizia a Seu Nino, e seu pai Abrão Velho confirmava, que era tudo de lavada, e cada gol de diferença garantia uma birita para o time vencedor no empório mais próximo, e teve vez que foram mais de trinta goladas de vinho argentino na fuça da gringada que um deles até começou a mastigar um gomo da pelota achando que era tabaco. Um dia de sol sem nuvens desceu da Ilha das Cobras os temidos praças do batalhão de infantaria da marinha, disse Tio Balela, e em toda história do batalhão a derrota para a gringada foi a única que tiveram. E mesmo derrotados estavam tão alegres, os praças, Seu Nino dizia, disse Tio Balela, e saíram pelos arredores da Ilha dos Melões, brancos e pretos que para onde iam era uma maré cheia de sorrisos, tão ruidosa que parecia uma malta.

E aconteceu, porque sempre acontece, e porto é chegada e partida. E o Queen Mary partiu, sumiu no horizonte. Mas um tempo depois é como se ainda estivesse atracado pois o que teve de garoto loirinho e mulato de olhos claros que nasceu um tanto depois não estava no gibi, e tudo nas mesmas semanas e na mesma parteira Euzébia, dizia Seu Nino sorrindo, disse Tio Balela. E foi dessa feita e aritmética, como Abrão Jovem dizia ao seu filho Abrão Velho: se corria agitado e era bom de chute e pescava sem precisar colocar isca farta no anzol só podia ser cria de brincadeira do capitão do time Merle Loide, que fazia tanta tramoia serelepe que chutava com a mão e cabeceava com o pé e todo mundo achava bonito e batia palma. E mais, seguia o Jovem Abrão: o menino Rasteiro, que pedia emprestado sem pedir as carteiras dos cidadãos nos bondes do Valongo, fez um dia tanta embaixadinha que os olhos clarinhos que a mãe Jurema dizia ser por conta de ter comido muita uva quando prenha foram passados a limpo e sacramentados na certeza, pois Rasteiro só podia ser menino de Jomaguil, que segundo o que Velho Abrão contou para o filho Seu Nino, uma vez cruzou da Inglaterra para França fazendo molecagem com a bola no convés sem deixar a pelota cair uma só vez sequer, mesmo quando choveu, façanha que saiu em notas nos jornais dos sindicatos marítimos dos dois lados do Canal da Macha.

Os filhos e filhas do Queen Mary foram se acumulando, surgiam. E era como se o Velho Abrão, tão jovem naquela época, fosse o guardião de todos pois sua casa na Rua Jogo da Bola esteve sempre cheia de gurizada. E Abrão Jovem dizia para seu filho, Abrão Velho, que fica na cidade quem ama a cidade, mas há quem fique na cidade porque ama uma parte da cidade, e basta: e essa parte da cidade, disse Tio Balela, tinha sorriso maroto e boca macia e colo exuberante, e era da cor de cacau, e foi a mãe de Abrão Velho e a avó de Seu Nino, a pérola Samanta, rainha e princesa de Jovem Abrão, e que só chamava o gringo de menino, Abrão Menino, disse Tio Balela, e quando conheci era já matrona e doceira e era Dona Samanta por respeito e propriedade, e que de tantos quitutes lendários fartava até a voz do querubim Jaime Mocoso, mel nos timbres, Mocoso que fazia voz no coro da Rádio Nacional e ganhava uns cascalhos redondos fazendo serestas para as donzelas noivinhas dos fidalgos de Botafogo e de Laranjeiras.

Abrão Jovem nunca ganhou na loteria, e nem tinha sorte no bingo da Igreja do Largo da Prainha, disse Tio Balela. Se dizia vai chover, fazia sol, e se usava casaco contassem que o calor iria rachar. Esse era o Abrão Jovem. Mas no dia em que estava sentado em um empório da Gamboa e viu o mesmo menino retinto da praia passar com umas quentinhas pedalando veloz aquela certeza mineral do dia da Praia Formosa o marejou de novo. Ele se levantou orgulhoso e sem cerimônia declarou risonho apontando para o menino que já se perdia longe que esse guri quando crescido vai ser o novo Isabelito Gradín, e o portuga Mário Soares Azevedo que estava sentado perto, tamanqueiro de couro inglês canhoto da Sete de Setembro, perguntou o senhor pergunta na verdade se esse menino será o novo lacaio ou o novo paspalho, Mister Iungui, e Abrão Jovem disse diante das risadas dos bacharéis presentes que digo na verdade que esse menino será o novo rei porque príncipe já existe e é Gradín, Seu Soares, e quem não enxerga isso não tem as ideias no lugar. E Seu Soares gargalhou, coçou as barbichas, e perguntou caridoso para Abrão Jovem quando você vai entender em seu coração bondoso Mister Iungui que o Brasil é uma fragata naufragando, cheia desses crioulos medonhos atando os pés do nosso desenvolvimento, da nossa nação. Esse país tem futuro, Mister Iungui, mas tem que se livrar dessa bagagem, desse peso-morto, dessa herança peçonhenta que é essa gente de cor. E então Seu Soares se virou e teve a aprovação cheia de beiços admirados dos outros bacharéis com quem dividia a mesa.

E agora, disse Seu Soares, tem esse jumento do Gradín enchendo de sonhos essa gentalha, que nunca foi nada e nunca vai ser nada, os uruguaios tinham que ter vergonha dessa desavença que estão fazendo com seus vizinhos, criando dificuldade e agitação, e todo cavalheiro sabe que é maldade fazer mula sonhar que pode ser cavalo um dia, mula é mula e Zé Povinho é Zé Povinho. E então Seu Soares levantou e pagou o café e os cavalheiros que estavam com ele se levantaram também se aproximou e estendeu a mão para Jovem Abrão e perguntou gentil estamos entendidos meu amigo Mister Iungui e a resposta de Jovem Abrão ecoa até hoje no coração de todos os oleiros, pedreiros, bombeiros, fiscais de bonde, caixeiros, pescadores, maquinistas, foguistas, guindadeiros, estivadores e conferentes do porto: Seu Soares, meu nome é Abrão Jovem, e não posso ser amigo de quem não é amigo de meus amigos. Uma saraivada de palmas arrepiou o empório inteiro, disse Tio Balela. Seu Soares saiu do empório contrariado, com seus companheiros de terno, falando baixinho. Todos riram, e o dono do estabelecimento, Seu Ernani, disse Jovem Abrão sei quem é esse menino. É filho de Maria de nascimento e de Mário por consideração, e o finado Seu Manoel Nunes era do porto, gente honrada, e é muito bom menino esse menino. E o senhor tem toda razão, Jovem Abrão: a pelota ama os pés desse guri.

E se no começo era apenas Jovem Abrão que tinha conhecimento, e depois cúmplice Seu Ernani e Jovem Abrão, tocaiados na arquibancada do São Cristovão, admirados com o menino correr todo lorde desfilando com a pelota entre os outros guris, disse Tio Balela, Abrão Menino me contou sentando numa cadeira-de-balanço na Rua do Acre que dois viraram sete, e doze viraram cinquenta e três, e duzentos e oitenta e cinco viraram mil seiscentos e noventa e quatro até não haver mais dedo na mão e no pé que contasse os amorosos olhos abestados gravando na caixola cada jogada daquele franzino craque da pelota que apreciavam espantados. Seu Nino dizia que seu avô lhe contava, disse Tio Balela, que o Fluminense tinha torcida, e que o Bangu tinha torcida, e que o Bonsucesso tinha torcida, e que o América tinha torcida, mas com Leônidas era distinto porque a trupe ruidosa que o seguia batendo palmas e saltando como cabrito tresloucado e se abraçando eufórica como beatas diante do Cardeal a cada lance arretado que Leônidas fazia não era uma torcida e não podia ser, disse Tio Balela, aquela balburdia era sim uma grande família.

E quando o navio Arlanza, gigante e caprichoso, partiu do porto do Rio de Janeiro com seus apitos alegres e seus roncos de baleia prenha para os idos da França em 1938, e disso eu mesmo mais o besta do Seu Bahia fomos testemunhas oculares, aquela grande família que Jovem Abrão já tinha vislumbrado tempos antes lá da Praia Formosa não cabia mais no porto Mauá e era tanta gente que se pulasse toda ao mesmo tempo causava até terremoto no Japão. E nessa família emocionada tinha de todo tipo, gente bonita e feia, gente azeda e doce, disse Tio Balela, e de todo trabalho, do engomado ao desdentado, do que assobiava elegante ao que vivia tocaiado em buraco, e há quem jure de pé junto que lá da comitiva de honra até o excelentíssimo reverentíssimo grandíssimo presidente Getúlio Vargas chorava que nem bezerro desmamado torcendo com um terço na mão para que os meninos de ouro trouxessem a prova daquilo que todo o mundo já sabia, disse Tio Balela, e que ainda não estava gravado em nenhuma tabuada ou gramática mas cheirava no ar de todos os mares e continentes, e que era a verdade de que a gente não inventou o bolapé mas a realeza do bolapé já era nossa.

Só que naquele dia no porto outro grande acontecimento aconteceu, disse Tio Balela. Ficaram uns gatos pingados ainda olhando o mar sem necessidade porque o navio Alanza já tinha sumido da vista humana. E lá ficaram, porque havia motivo. Motivo sério, enorme, motivo urgente. E os que partiram serelepes retornaram apressados assim que ouviram o boato, e os que desconheciam as tramoias anteriores do porto antigo ficaram a par e retornaram apressados, e era dessa feita e os gatos pingados viraram manada acumulada no cais, pasmada e buliçosa, encarando o alto mar, disse Tio Balela. E isso porque lá estava o Queen Mary na fiscalização sanitária esperando autorização para poder atracar exatos três décadas depois que causou furdunço pelos descaminhos das várzeas e dos campos do porto e seus arredores.

Abrão Jovem estava deitado em sua rede e escutou um assobio da vizinhança de que aquela visita improvável estava acontecendo, mas não acreditou e não acreditou pois como velho marinheiro sabia que só soalheira é capaz de trazer navio a muito desaparecido. Mas depois o menino Policarpo chegou arfando na porta de sua casa, pulando com os bracinhos magros, e meteu o berreiro de que estão pedindo a tua presença lá na praça Seu Abrão Jovem e Abrão Jovem perguntou é coisa da terra ou é coisa do mar e o menino disse é coisa do mar Seu Abrão e então acreditou que menino Policarpo não mentia, disse Tio Balela. E então desceu como pôde o morro da Conceição, pois já usava sua inseparável bengala, e atravessou a Praça Mauá a trote largo. Abrão Jovem se achegou para as bandas dos curiosos ajuntados. E de binóculos, sorrindo e altivo, dizia Seu Nino, seu avô viu o que viu e era Merle Loide na Boreste ainda todo capitão, cheio de cabelo branco, com uma bola debaixo do braço e com as bochechas inchadas de tanto conhaque na fuça.

Traziam a bola, e disseram que traziam craques, mas daquela vez seria diferente, foi o que se ouvia nos quatro cantos das bocas de todos os matutos, disse Tio Balela. Nos empórios e bares e trapiches, nas fábricas e olarias e pedreiras, encima das mulas e embaixo delas também, dizia Seu Nino, e eu e Seu Bahia escutávamos tanto das bocas limpas quanto das bocas manguaçadas, que se aquela gringada achava que com os chutinhos mancos deles iriam dar uma sova novamente na gente que entrassem no tonel de onde vinham e engolissem pólvora e se enterrassem em alto mar. De bilhar a sinuca, de porrinha a banca do bicho, de esteira a trançadeira, só se falava do jogo que aconteceria e tinha que acontecer, e de bom senso a escalação do time já estava sendo feita. Girino e Fradinho, corredores, foram escalados para as laterais, e Seu Bahia, forte como Domingos da Guia, foi para zaga. Sebastião Lourenço, o contador cegueta do Trapiche Vapor que não se acertava com os centavos mas avistava longe, foi escalado para meio-de-campo. O menino Rasteiro, que não era mais menino, foi escalado também, assim como todos os reis da embaixadinha que eram os filhotes crescidos de Merle Loide. Foi só pensar em Jaime Mocoso que ele se apresentou cantando uma valsa, e Madame Leila Buriti disse que tirava os vestidos para jogar e deixava de afinar o vozeirão, mas só aceitava a convocação se pudesse ir de maquiagem e assim foi feito e acertado. E a escalação seguiu, disse Tio Balela, reunindo um a um os craques do time dos sonhos dos bairros marítimos.

Mas só faltavam dois para o time ficar completo, disse Tio Balela.

Roncador foi acordado pelo Comandante Brito em sua cela na Ilha das Cobras e comandante Brito perguntou Roncador por acaso tu gosta de Vargas e Roncador disse gosto não, e Comandante Brito perguntou Roncador por acaso tu dava uns beijos no Vargas e Roncador disse o senhor Comandante Brito me perdoe mas dava beijo no Vargas não, dava mais facada no corno, e Comandante Brito perguntou Roncador por acaso você acredita em Deus e na Providência e Roncador disse o senhor Comandante me perdoe essa desfeita mas acredito não pois sou anarquista, e Comandante Brito disse mas que gracioso ser anarquista deveria é ter vergonha nessa cara gorda. E então Comandante Brito coçou os bigodes e perguntou mas por acaso Roncador tu acredita na pelota e Roncador disse meu caro Comandante Brito eu rezo para pelota todo santo dia que é a coisa mais divina já criada desde o começo dos tempos até o fim do mundo e Comandante Brito então disse Roncador vossa excelência considere-se escalado para o altivo time do porto que em cinco dias vamos atropelar essa gringada folgada do Queen Mary e Roncador disse alegre sim senhor Comandante Brito, conte comigo.

E então só faltava mais um para o time ficar completo, disse Tio Balela.

Mas era difícil encontrar Evandro da Silva Berto porque Evandro da Silva Berto nunca existiu. Se chegasse na Gamboa e perguntasse por Evandro ninguém sabia, se chegasse no Estácio e perguntasse por Evandro ninguém sabia, assim como ninguém sabia de Evandro em recanto algum da Saúde, Santo Cristo e Caju. Mas bastava dizer que se estava no encalço de Cinco Pernadas para que o valente suasse frio, a moça arrepiasse as vergonhas e o bacharel abrisse a carteira, disse Tio Balela. Porque quem nasceu Evandro da Silva Berto foi rebatizado já bem menino, quando açoitado na covardia por uma matilha de policiais na Praça XV, e meninote franzino caiu para cima de arpão e chapa e esporão e arrebentou com mais de oito em dois tempos. Foi de começo Quatro Pernadas, e desde garoto já cobrava dívidas e protegia candidato e guardava entrada de empório, disse Tio Balela. Valente, destemido, temido, respeitado, mal impunha seu bigode rapinho e todos os irmãos do pico já respeitavam e faziam reverência.

É sabido, disse Tio Balela, que Evandro da Silva Berto saltou de Quatro para Cinco Pernadas quando foi trabalhar no cabaré Gênova e as moças encantadas brigavam e se unhavam pela sua imperiosa proteção, mas virou lenda mesmo quando na sombra escura da noite só alumiada por um pinguinho de lua Cinco Pernadas levou quinze facadas em tocaia no Canal do Mangue e foi visto no dia seguinte bailando no Estácio com seis mulatas como se nada tivesse acontecido, de corpo fechado e sorriso branquinho, e voz nanica de gigante desaforado. Há quem não acreditou e há quem rezou e há quem se cagou. Só não há quem tirou folga com o homem dali em diante.

Só que se nem Vargas encontrava Cinco Pernadas, disse Tio Balela, e tinha toda polícia e exército e igreja a sua disposição, não havia como encontrar o traste em canto algum. Era impossível, e seguiu sendo impossível por três dias até que eu estava bebendo mais Seu Bahia e Girino e Elídio e Macau e Fradinho e Jurubeba e Japonês Anastácio e aparece inteiro teso e liso Cinco Pernadas como de dentro do vento e disse Seu Bonifácio boa tarde passarinho me contou que Seu Jovem Abrão está me procurando para ter uma conversa comigo e eu disse é verdade e a gente te procurou por todo canto possível Seu cinco Pernadas e Cinco Pernadas disse me encontrar não é bom agouro não, Seu Bonifácio, pois só me encontram quando quero, e quando eu encontro quem procuro não pode ser boa coisa porque não é do meu feitio sair pelas ruas procurando outros machos. Então ele se sentou para saber do que se tratava, e ficou sabendo em detalhes do que se tratava, e sorriu pois teria sim muito gosto de dar umas pernadas na gringada.

E assim o altivo time da região portuária estava lavrado e asseado, disse Tio Balela.

Abrão Velho ainda era rapazote naquela época e daquela época lembra muita coisa, disse Tio Balela, que me contou e também contou ao filho Seu Nino e que Seu Nino me contou, mas a lembrança mais forte de todas não foram as travessuras comendo jabuticabas e brincando no Cemitério dos Ingleses e muito menos gazetear as aulas para escutar Jaime Mocoso gravar suas músicas nos estúdios da Rádio Nacional. A lembrança mais forte que guardava de sua meninice foi o abraço que Jovem Abrão deu em Merle Loide quando se viram finalmente após três longos dias do Queen Mary esperando autorização em alto mar. Abrão Velho me dizia, e repito para vocês gurizada, que aquilo era amizade verdadeira, e naquele abraço o pai alcançou tudo aquilo que deixou em terras inglesas e escocesas, e que visitava só em sonho. Se fecho o olhos distraído, disse Tio Balela, tropeço na entrada de minha casa quando menino lá em Sertânia, assim como vocês um dia vão lembrar das arruaçar de Vaz Lobo, Irajá e Vicente de Carvalho que cometem por aí, e saudade todo mundo tem, e é bom ter, e quanto mais velho mais na saudade a gente mora.

E Abrão Jovem e Merle Loide sentaram e começaram a conversar como se não tivessem voado trinta anos desde aquele dia em que Abrão Jovem decidiu ficar em terras cariocas, dizia Abrão Velho a seu filho Seu Nino, disse Tio Balela. Sentaram e beberam, e ficaram ali assobiando na língua tacanha deles e todos os filhos do Queen Mary ouvindo ao redor sem entender um pio mas rindo quando riam e chorando quando choravam. E quando choraram foi bonito, dizia Abrão Velho: Merle Loide tirou de um embrulho de tecido de seda uma boina toda maltrapilha e uma pita de madeira, e era o que ficava na cabeça careca de Kelvin Leite e na boca desdentada de Kelvin Leite, pai de Abrão Velho e avô de Abrão Jovem e bisavô de Seu Nino. Ficaram em silêncio, dizia Abrão Velho, e de longe viam a cidade pois estavam do alto do morro da Conceição. Então Merle Loide assobiou algo na língua dele e Abrão Jovem disse que sim, que teria jogo, e que estivessem preparados.

E estavam, disse tio Balela. Era uma multidão apilhada no campo do São Cristovão e tinha polícia e tinha bombeiro, gente da mais alta categoria da esbórnia, todos os diplomatas da birita, mais comerciários e comerciantes, biscateiros de todo tipo e as moças mais bonitas de sorrisos que as cárie ainda não puderam destruir, quitutes afogueados do Canal do Mangue e das Ilhas dos Melões, disse Tio Balela. Todos os cidadãos estavam tão animados com a vitória do Brasil contra a Polônia, uma chapoletada de seis a um, que a balburdia parecia mais baile de carnaval do Deixa Falar. A gringada ria e saboreava a festança, e só teve silêncio mesmo quando o padre Macedo do Largo da Prainha entrou no campo rezando umas palavras bonitas de amor, de paz e de companheirismo, e logo depois fechou a Bíblia e todos aplaudiram e sentou no banco de reservas do time do porto porque o arretado do padre Macedo era o nosso destemido técnico.

Do lado do porto estava o melhor time do mundo, plantel composto desse quem voz fala e declama mistérios de outros tempos e Seu Bahia e Girino e Fradinho e Sebastião Lourenço e Jaime Mocoso, que cantou o hino nacional aos prantos, e Madame Leia Buriti de calça e camisa mas com a boca toda rosada, e tinha mais do nosso lado Rasteiro, com cabelo todo arrepiado parecendo um pinto, e Lero, Raposo e Mascate, esses filhos de Meire Lorde com três beldades distintas do porto. Também havia ali Japonês Anastácio, que não chutava nada mas era muito saltador, Severo Augusto Matraca Leocácio, líder foragido do sindicato dos estivadores que Comandante Brito fingia não reconhecer e quem dissesse que era o temido Matraca mandava tomar vergonha na fuça e comprar óculos, e Roncador todo galante de brilhantina e com uma faixa vermelha no braço tão flamante que quando diziam ao Comandante Brito que era coisa de comunista ou de anarquista ou de quizumbeiro Comandante Brito dizia que na verdade era uma faixa cor vinho em devoção a Nossa Senhora da Conceição e vamos fazer o favor de respeitar a fé do cidadão meus amigos. E o time tinha mais Cinco Pernadas, disse Tio Balela, todo furioso e arfando pelas ventas e quando diziam ao Comandante Brito meu caro comandante não vai mandar prender o foragido perigoso ele dizia que não podia ser Cinco Pernadas porque Cinco Pernadas morreu com quinze facadas no Canal do Mangue e disso todo mundo sabia e aquele sujeito era na verdade Evandro da Silva Berto, homem de bem e cidadão de carteira assinada, e muito bem apessoado.

Do lado da gringada só tinha gente feia, disse Tio Balela, mas que depois na esbórnia da celebração do jogo ficamos conhecendo de avesso e de direito. Tinha o Franquarque, baixinho atarracado com os braços maiores que as pernas, e que marcava os atacantes com tanta dedicação que de longe parecia até namoro e pedido de casamento, e que saiu do Brasil deixando uns frutos que depois desabrocharam e eram todos tão de braços maiores que as pernas e orelhudos que me disseram que formaram um circo itinerante. Alberto Royal, que corria tão veloz que numa arrancada empolgada saiu quicando grama afora e foi parar estatelado na portaria do São Cristovão, e depois me disseram que se engraçou tanto com uma moça do Estácio que sonhou um samba numa língua que não conhecia mas escreveu num papel e deu para ela e era uma pérola do samba cantada até hoje.

Tinha também o Samuel Açougue, disse Tio Balela, que era homem tão apaixonado por pernas alheias que parecia gostar mesmo de ficar com as canelas de todos jogador que cruzava em campo com ou sem a pelota e quase matou o Japonês Anastácio com um carrinho sem a bola. Tinha o Tomás Sem-Lei, que até cambalhota no meio do jogo deu achando que era Leônidas e ficou mancando o resto do jogo, e não parava de falar naquela língua de periquito deles, disse Tio Balela, e ainda tinha um deles chamado Estildarte, que marcou um gol com a canhota e outro com a mão e tinha uma cara lambida de tão bom-moço que se tornou o galã das meninas do Canal do Mangue, que ficaram exibindo os peitinhos para ele sempre que chegava na linha lateral, e também tinha o tal do Brodibride, que em uma lance da partida caiu por cima da Madame Leila Buriti e ficou lá por mais de seis minutos em um entrave que metade da torcida disse que foi a briga do século, a outra metade disse que foi amor de perdição, e padre Macedo logo depois ofereceu sacramento para a alegria de todos os presentes no empório.

Mas bicho ruim mesmo era Bile Cutão, disse Tio Balela. O cabrito tinha um cavanhaque lambido enfeitando uma cara de lambisgoia, e corria na ponta dos pés com uns saltitos que pareciam de preá tão ligeira que quando corria não freava mesmo quando a bola saia do campo. Bile Cutão era um homem de fé, disse Tio Balela, pois no cruzamento pulava para cabecear mesmo com a bola muito nas alturas e a bola até mexia por respeito ao atrevimento do sujeito que era tão bom na pelota que de cada dois gols que a gringada marcou três eram dele. Em um momento do jogo em que Bile Cutão marcou quatro gols seguidos Comandante Brito quase deu voz de prisão, e não bastou Lero, Raposo e Mascate abraçarem o meneante na hora de uma arrancada com a bola no pé que mesmo todo cabrito magricela Bile Cutão arrastou os infelizes e ainda quase arrancou a cabeça de Rasteiro com um chute.

Foi lendário, disse Tio Balela, e a cada gol de Rasteiro e de Cinco Pernadas o traste do Bile Cutão respondia a altura, e o gringo era tão cheio de traquinagem e ginga malandra que teve bêbado que gritou suspeitoso esse branquinho só pode ser negrinho albino para jogar de jeito tão majestoso. Mas ainda assim o porto era muito para a gringada. No fim da partida foi assim, a torcida extasiada invadiu o gramado e levantou a gringada e os portuários juntos que ali eram todos heróis naquele dia, e fomos de venda em botequim e de botequim em empório e de empório em birosca e de birosca até o limite de assentar nossos cornos em frente da calçada de Jovem Abrão que distribuiu cachaça e vinho e conhaque, e ainda presenteou cada jogador com um chapéu de carmuça cheirando a novidade. Na festança, disse Tio Balela, o placar foi esquecido e é até hoje lenha de discussões nos bares e nos restaurantes da Praça XV até a Praça Mauá.

O que era fato lavrado, gravado e juramentado, disse Tio Balela, e também dizia Jovem Abrão e Velho Abrão e até Seu Nino, e o mundo todo sabia de ouvir nas ondas da rádio em todos os idiomas inventados as brincadeiras endiabradas que Leônidas, Domingos, Batatais, Nariz, Britto e outros anjos do bolapé aprontavam sobre os brioches dos franceses, é que o manjar que os ingleses tinham inventado o Brasil tinha reinventado e era nosso e ninguém tascava. Nem juiz tentando desonrar Domingos da Guia inventando pênalti para fazer italiano ganhar na mão grande podia mudar o acontecido daquele bendito ano de 1938, disse Tio Balela, porque éramos todos príncipes, que ficassem com a coroa essa gringada que lá tem loira mas não tem morena porque tínhamos um rei que não precisava de coroa, e esse rei era Leônidas Da Silva.

Da varanda de sua casa no Morro da Conceição Jovem Abrão e Velho Abrão viam o mar, e dali viram o navio Arlanza voltando com os meninos de ouro, mas não foram a praça Mauá receberam, disse Tio Balela. E isso porque dali podiam ver o navio Queen Mary partir no mesmo dia que Leônidas e trupe retornaram cheio de sorrisos. Jovem Abrão tinha na cabeça a boina de seu pai, Kelvin Leite, e fumava um tabaco bom da pita que era de seu pai Kelvin Leite. E seu filho Velho Abrão sentava ao seu pé de seu pai Jovem Abrão, como dizia Seu Nino, disse Tio Balela. O filho perguntava ao pai se um dia iria ele também se aventurar em alto mar e o pai disse fará falta não filho que nesse país tem mais terra para pisar que no mundo afora tem água para nadar. No dia que o navio Arlanza voltou fez soalheira, dizia Seu Nino que Jovem Abrão jurava a Velho Abrão. E aos pés do meu pai havia aquela bola da partida em que o porto venceu a gringada Seu Bonifácio, dizia Seu nino para mim e Seu Bahia sempre que a gente se demorava no almoço na birosca dele, a mesma bola que mandei emoldurar e colocar na parede para todo mundo conhecer. A bola de Jovem Abrão e Merle Loide e Velho Abrão, a bola de Roncador e Cinco Pernada e Bile Cutão, a bola da glória e da derrota, dizia Seu nino para quem quisesse ouvir, meninada. E dizia assim, disse Tio Balela, de peito aberto e quase às lagrimas que Seu Bahia não me deixa mentir: a bola da grande família que é esse Brasil.

Rascunho