
O preconceito e toda essa sujeira e lama cotidianas são necessários, já que, com o tempo, eles se transformam em algo útil, assim como o esterco acaba fertilizando o solo. Tudo o que é bom no mundo tem alguma sujeira em sua origem.
Anton Pávlovitch Tchékhov, Enfermaria nº 6
Enfermaria nº 6: eis a narrativa mais dostoievskiana de Anton Tchékhov.
Acompanhamos a decrepitude do Dr. Andrei Iefimitch Raguin: o médico se transforma em paciente, o alienista acaba encarcerado como alienado.
Tchékhov disseca as afinidades eletivas entre a norma e o desvio, a normalidade e a patologia.
Entre os alienados da Enfermaria nÂş. 6, logo conhecemos o ex-estudante de medicina Ivan Dmitritch.
Interessa-nos aqui o diálogo fundamental entre o Dr. Andrei e o ex-pupilo Ivan.
Dr. Andrei, adepto do estoicismo, vive a mesma rotina há 20 anos. Enquanto pode driblar o provincianismo de seu hospital e de sua cidade com as revistas e livros que lhe chegam de Moscou e Petersburgo, o médico não se incomoda com os maus tratos a que são submetidos seus pacientes. Afinal, vida é vida em qualquer lugar; a vida está em nós mesmos, e não no exterior — não é assim, Dr. Andrei?
Ivan teve que suplantar inĂşmeras privações para conseguir estudar medicina. Os graduandos — ou melhor, os futuros doutores — sequer imaginam o que Ă© ter que superar a si mesmo continuamente, superar as cicatrizes de classe, deixar para trás a infância e a adolescĂŞncia, o bairro, as namoradas e os amigos. Para aquele que consegue cruzar a fronteira de sua classe, a vitĂłria dá as mĂŁos ao luto. O Ivanzinho da quebrada, em alguns anos, vai parir o Dr. Ivan. Mas o parto pressupõe o aborto. Quando MaurĂcio Alcântara de Mello Filho e Neto decide estudar medicina, as mĂŁos calçam as luvas confortável e naturalmente, o anel de doutor que passou do tataravĂ´ para o bisavĂ´, do bisavĂ´ para o avĂ´ e do avĂ´ para o pai apenas espera pelo anelar direito do futuro psiquiatra. Ivan, por sua vez, descobre com a chibata de sua consciĂŞncia que cada vitĂłria significa tanto honrar os pais pobres quanto conseguir o que ninguĂ©m de sua famĂlia e de suas cercanias jamais pĂ´de amealhar. A cada receita que o Dr. Ivan prescrever, ele se lembrará de que a mĂŁe de sua primeira namoradinha morreu no corredor de um hospital superlotado por falta de atendimento. Quando Ivan abrir sua clĂnica particular, será difĂcil atender os antigos vizinhos de graça. Requintados, os pacientes ficarĂŁo melindrados com os doentes exĂłticos. Assim, os velhos amigos com quem Ivan jogou bola na rua terĂŁo que entrar pela porta dos fundos, junto com os subalternos da clĂnica. Eles serĂŁo atendidos, ah, se serĂŁo!, mas first things first, rapaziada, first things first. Os Ăşltimos serĂŁo os primeiros — nĂŁo Ă© assim, Ivan?
Logo Ivan poderá redimir sua primeira namoradinha, Ivan e Keite vĂŁo se casar. Mas como Ă© que Ivan vai levar Keite para um jantar com os psiquiatras tarimbados que ele tanto precisa bajular? As demais esposas já estĂŁo mais do que doutrinadas no mĂ©tier das acompanhantes a tiracolo. Todas sabem se portar Ă mesa. Todas sabem articular o silĂŞncio do que há para dizer. Mas e Keite? Será que eu preciso me lembrar sempre de onde eu vim? Será que todos precisam saber de onde eu vim? Eles nĂŁo vĂŁo me aceitar! Elas nĂŁo vĂŁo aceitá-la! NĂŁo, eles nĂŁo vĂŁo nos aceitar! Eu sou melhor do que eles, eles sabem, Ă© por isso que eles tĂŞm medo de mim, eles tĂŞm, eu sei, mas Ă© por isso que eles vĂŁo se juntar contra mim, elas vĂŁo fofocar sobre a minha esposa, eles vĂŁo cochichar sobre a minha origem. Eu preciso de uma esposa Ă minha nova altura, mas, para amealhar uma assim, ora, eu preciso daquele cargo! E todos querem aquele cargo, todos! Todos eles precisam dar apenas alguns telefonemas, basta uma troca de cartões, dois ou trĂŞs rapapĂ©s, meia dĂşzia de salamaleques, e pronto, tudo resolvido. Para mim Ă© sempre assim, tenho que fazer duas, trĂŞs, quatro vezes mais. SĂł que eu te amo, Keitinha, eu te amo muito! Mas isso Ă© suficiente? Tudo o que existe nĂŁo vai perecer de qualquer forma? (Cheguei a pensar em dar uma casinha pra Keitinha, a gente se encontraria ali, a gente teria nossa famĂlia, eu explicaria tudo pra ela, ela entenderia, ela teria que entender, porque eu preciso, Keitinha, eu preciso ter uma vida oficial, uma vida de fachada, daĂ eu consigo o que for, e lá, no nosso antigo bairro, aqui a gente pode ter um lugar sĂł nosso, eu venho te visitar sempre, venho visitar nossos filhos, mas agora eu tambĂ©m preciso estar lá, eu vou ficar mais lá, mas vocĂŞ sabe, eu sei que vocĂŞ sabe, que meu lugar Ă© aqui. Por mais que eu tenha uma famĂlia lá, por mais que eu tenha outra mulher e outros filhos, Keitinha, Ă© vocĂŞ que eu quero, meu amor, sĂŁo os nossos filhos que eu amo. VocĂŞ entende, nĂ©, amor? Tá te faltando alguma coisa? NĂŁo tá te faltando nada, nĂ©? Eu te amo, Keitinha, eu te amo muito! Mas isso Ă© suficiente? E eu tĂ´ quase conseguindo, meu bem, quase! É que todo mundo se volta contra mim, tudo se volta contra mim!)
MaurĂcio Alcântara de Mello Filho e Neto tambĂ©m passa por solavancos. Ele teme nĂŁo poder dar sequĂŞncia Ă dinastia mĂ©dica de seu clĂŁ. Ocorre que o futuro Dr. Filho e Neto doma o temor da frustração com o Prozac prescrito pelo pai, o amor-prĂłprio Ă© alçado com doses alopáticas de cocaĂna, o talento se escora no abraço do avĂ´. (Nada que jantares e cargos de confiança nĂŁo resolvam.)
Para Ivan Dmitritch, as conquistas rentes às cicatrizes da memória e ao despenhadeiro do fracasso aguçam a luta de classes. Para Ivan Dmitritch, a paranóia persecutória é mais do que um risco ou um diagnóstico. Trata-se de uma iminência — ou, para usarmos os termos do ex-estudante de medicina e hoje interno da Enfermaria nº. 6, trata-se de um “destino manifesto”. Eu sabia, eu sabia, eu sabia! Eles jamais me deixariam conseguir o que eu queria! (Ivan corre até o canto da enfermaria e, de joelhos, ou pior, de cócoras, pergunta ao Dr. Andrei: será que hoje eles virão aqui pra me matar? Com a cabeça entre os joelhos trêmulos, Ivan começa a gritar: hoje eles virão aqui pra me matar!)
Dr. Andrei prescreve (mais) um sossega leĂŁo.
(Cabe aos gorilas ambulatoriais a aplicação da injeção após alguns safanões profiláticos.)
Quando Ivan Dmitritch volta à realidade que o acossa, o torpor medicamentoso ainda arrefece a paranóia. Porém, assim que a chibata do real voltar a se impor, Ivan começará a disparar olhares para todos os lados.
Ocorre que o Dr. Andrei Iefimitch Raguin, quiçá um parente distante do Dr. MaurĂcio Alcântara de Mello Filho e Neto, gosta de filosofar com o erudito Ivan Dmitritch.
Ivan nĂŁo precisava apenas suplantar todos e cada um de seus colegas de faculdade. Ivan precisava suplantar seu passado ágrafo e a vacuidade de livros e ideias em seu bairro sem asfaltamento. Ivan precisava suplantar seu prĂłprio espectro. Ivan lia duas, trĂŞs, quatro vezes mais do que os outros. Quando Andreis e MaurĂcios discutiam, estava em jogo apenas a esgrima da vaidade. Para Ivan, no entanto, perder uma discussĂŁo equivalia a perder um impĂ©rio. Ele precisava vencer, eu preciso ganhar, sĂł assim eu vou conseguir o que eu quero, sĂł assim, sĂł assim! (O bom e velho Nietzsche já sentenciara: “Quem vive para derrotar o inimigo precisa do inimigo sempre vivo”. O paranĂłico Ă© perseguido — mas tambĂ©m persegue.)
E eis que o Dr. Andrei procura defender o estoicismo do imperador romano Marco Aurélio contra as invectivas de Ivan Dmitritch:
— Veja bem, meu caro ex-estudante de medicina Ivan Dmitritch, o nobre Marco AurĂ©lio tinha toda a razĂŁo ao decretar que a dor nada mais Ă© do que a sensação da dor. A realidade nĂŁo passa de um transe e de um trânsito ilusĂłrios. A verdade está na abnegação e na abstinĂŞncia. O equilĂbrio Ă© a verdade. O ascetismo Ă© a verdade. A reflexĂŁo, a contemplação. Baseada em tais princĂpios, minha rotina tem sido religiosa. Daqui do hospital sigo para casa, onde minha empregada já sabe que, apĂłs o jantar, uma Ăşnica cerveja vai me acompanhar enquanto me deleito com a riqueza dos debates de nossa intelligentsia.
— É fácil ser estĂłico quando Ă© possĂvel delegar o açoite aos demais… Me tira daqui, seu canalha, eu nĂŁo sou louco, eu sou normal, me tira daqui!
— Ora, ora, o que você está dizendo, Ivan? Não, não: você está doente, sim. (E não se exalte muito, meu caro: o brutamonte de plantão está ainda mais furioso hoje.) Agora me diga: com que base eu posso lhe dar alta, Ivan? Na semana passada você não disse ao outro brutamonte que eu, seu médico, era o chefe da conspiração que queria te assassinar? Disse ou não disse?
— Já não me lembro.
— Pois você disse, sim. E, nesse caso, você está ou não está doente?
— Não, Dr. Andrei, eu não estou — não estou, não estou e não estou!
— E com que base você me diz isso?
— Pois muito bem, Dr. Andrei, me ouça: vocĂŞ me enquadra como um paranĂłico, eu bem sei. É fato que, vez por outra, eu consigo prever algumas emboscadas. Ah, se consigo! Ainda assim, em que eu sou tĂŁo diferente das centenas de milhares de pessoas que caminham ilesas lá fora, mas que, na verdade, tambĂ©m deveriam estar trancafiadas aqui? Em quĂŞ? Eu quero o mesmo que todos querem, eu tenho ambição, eu quero mais. Se sou culpado por conta disso, cerque a Ăłrbita terrestre com arame farpado e prescreva sessões de eletrochoque para toda a humanidade. Eu quero mais — e daĂ? Quem nĂŁo quer? SĂŁo apenas os da sua laia que podem comer canapĂ©s? Eu tambĂ©m gosto de champanhe. Eu tambĂ©m quero ver o colo da minha esposa ornado com diamantes. Aliás, quero que minha esposa me espere vestida apenas com o colar de diamantes. Será que eu devo tomar 15 comprimidos diários e ficar catatĂ´nico por conta disso? A verdade, Dr. Andrei, Ă© que o real Ă© moldado por facĂnoras epilĂ©pticos e paranĂłicos, essa Ă© a verdade. Tudo isso aqui Ă© um grande jogo de xadrez. Ganha aquele que for mais paranĂłico, isto Ă©, ganha aquele que puder prever mais jogadas para dar a rasteira bem antes, antes mesmo que a perna do inimigo seja realmente atingida — isto Ă©, amputada. Nesse quesito, Dr. Andrei, eu fui derrotado, eu nĂŁo sou tĂŁo paranĂłico, eu nĂŁo fui tĂŁo precavido. Ou seja: seu diagnĂłstico Ă© ainda mais errĂ´neo! Como eu sou mais sensĂvel, como eu sou mais humano, nĂŁo posso me tornar um general. Eu sou um mártir, Dr. Andrei, pago por minha ambição com meu prĂłprio naufrágio, assim Ă©!
— Ora, ora, Ivan, vocĂŞ sequer está sendo original: da sĂndrome de NapoleĂŁo para o complexo de Jesus Cristo, essa nĂŁo Ă© nova…
— Pois pode zombar, doutor, zombe à vontade! Quem sempre comeu pêra nunca roeu osso! Mas faltou pouco para eu cerrar fileiras ao seu lado, Dr. Andrei — e aà como seria, hein? Pois eu também lhe posso diagnosticar uma coisa ou outra. Quer ver?
— Sou todo ouvidos.
— Pois muito bem: vejo que vocĂŞ gosta de citar o nobre Marco AurĂ©lio como exemplo estĂłico de abnegação. E quem poderia contradizĂŞ-lo, Dr. Andrei? Aliás, quem poderia contradizer um imperador romano? Mas Ă© aĂ, Ă© precisamente aĂ, Dr. Andrei, que o caldo começa a entornar. Sim, porque Marco AurĂ©lio, diferentemente de DiĂłgenes de SĂnope, nĂŁo podia estar mais longe de ser um mendigo. Ser estĂłico e abnegado quando Ă© possĂvel beber absinto e se saciar com um harĂ©m em um estalar de dedos, ora, Ă© a coisa mais propĂcia que pode haver. AĂ Ă© fácil decretar que a dor Ă© apenas a sensação da dor. Eu quero ver o imperador pedir ao Cristo que os romanos crucificaram para afirmar que a dor Ă© apenas a sensação da dor, Dr. Andrei, eu quero ver vocĂŞ pedir ao Messias que tente matar a sede ainda uma vez com a esponja embebida em vinagre que o soldado sádico lhe ofereceu no GĂłlgota. Estoicismo imperial, veja sĂł! Na verdade, eu bem entrevejo que, sob o estoicismo do grande Marco AurĂ©lio, se esgueira uma profunda misantropia. Sim: o estĂłico todo-poderoso nĂŁo me engana, ele nĂŁo passa de um misantropo. E por que lhe digo isso? Porque Marco AurĂ©lio nĂŁo precisava de ninguĂ©m — mas todos precisavam dele. O imperador podia se isolar, o mandatário-mor tinha a prerrogativa de professar seu ascetismo como se fosse um seguidor de SĂŁo Francisco. No entanto, e apenas para manter o equilĂbrio de seu estoicismo, Marco AurĂ©lio, na calada da noite, ordenava que duas, trĂŞs ou quatro de suas concubinas, vez por outra, lhe dessem aulas de abstinĂŞncia. E para dirimir sua vontade de poder, para transformá-la em caridade, Marco AurĂ©lio era informado por seus estafetas, tambĂ©m vez por outra, sobre as conquistas do exĂ©rcito romano. Ora, apenas um conquistador pode ser o benemĂ©rito da compaixĂŁo. Primeiro Ă© preciso pilhar, depois Ă© possĂvel compartilhar. E Marco AurĂ©lio pode ficar sozinho, Marco AurĂ©lio pode ter companhia, Marco AurĂ©lio pode fazer o que quiser. É esse o seu exemplo de estoicismo, Dr. Andrei? É por isso que vocĂŞ relega seus pacientes a esses brutamontes como se fĂ´ssemos sacos de batatas? Pois se vocĂŞ quer falar sobre estoicismo, Dr. Andrei, flertemos entĂŁo com o cinismo, falemos sobre DiĂłgenes de SĂnope. VocĂŞ certamente conhece o mendigo DiĂłgenes, nĂŁo Ă© mesmo?
— Aquele que morava em um barril, aquele que sĂł tinha afeição pelos cĂŁes, daĂ a etimologia de cĂnico, ou, por outra, kinikĂłs, aquele que tem cara de cĂŁo. DiĂłgenes carregava uma laterna em plena luz do dia. Quando os transeuntes desavisados o interpelavam — “Mas o que vocĂŞ está fazendo com essa lanterna, DiĂłgenes? Ainda nĂŁo anoiteceu, o sol nĂŁo lhe basta?” —, DiĂłgenes sentenciava sem mais: “Estou Ă procura de um amigo”.
— Muito bem, Dr. Andrei, muito bem: vejo que fez a lição de casa. Mas Ă© chegada a hora de o mendigo interpelar o imperador. Saiba que, certa vez, ninguĂ©m mais, todos menos que Alexandre, o Grande, fez uma visita Ă cidade em que DiĂłgenes mendigava. Sabedor da fama que o mendigo filĂłsofo amealhara, o conquistador faz questĂŁo de conhecer DiĂłgenes. Consta que, no momento em que Alexandre se aproxima secundado por seus generais, DiĂłgenes cochila Ă luz alaranjada do sol que antecede o crepĂşsculo. Alexandre saĂşda o pensador, mas DiĂłgenes nĂŁo se faz de rogado e, para continuar sua soneca, vira para o outro lado. Os generais mal podem acreditar no que acabam de presenciar. “Mas será possĂvel! Seu monte de estrume, levante-se para saudar Alexandre, o Grande!” Alexandre contĂ©m o desembainhar das espadas. DiĂłgenes, por sua vez, começa a esfregar os olhos entre um bocejo e outro. SĂşbito, o intelectual mendigo dispara: “EntĂŁo vocĂŞ Ă© Alexandre, o Grande, diante de quem todos os povos da terra se curvam?” Alexandre meneia a cabeça verticalmente. “E vocĂŞ já conquistou tudo o que Ă© possĂvel a um homem conquistar, certo?” Alexandre volta a menear a cabeça verticalmente. “Pois muito bem, Ăł Grande Alexandre: este mendigo lhe prestaria todas as homenagens, se vocĂŞ nĂŁo tivesse bloqueado a luz cálida da tardinha que embalava meu cochilo. NĂŁo se ponha Ă frente do sol que me acalenta. NĂŁo obstrua a luz que vocĂŞ nĂŁo pode conquistar, Ăł Magno Alexandre.” Nem Ă© preciso dizer, Andrei, que os generais se põem em polvorosa, eles riem como hienas, eles riem enfurecidos e logo querem degolar DiĂłgenes. Alexandre Magno, ainda uma vez, os contĂ©m com um mero aceno de sua mĂŁo direita. SĂşbito, o conquistador-mor se vira para seu generalato e, apontando DiĂłgenes com a mĂŁo esquerda, assim sentencia: “Em verdade, em verdade lhes digo: saibam que, se eu nĂŁo fosse Alexandre Magno, gostaria de ser DiĂłgenes de SĂnope”.
Dr. Andrei mal consegue olhar para o rosto de Ivan.
O médico não consegue encarar o paciente.
O alienista parece acometido por uma inusitada antiparanĂłia persecutĂłria.
Cabe a Ivan restabelecer o juramento de HipĂłcrates:
— Dr. Andrei, reiteremos a oração que o Senhor Alexandre nos ensinou: “Em verdade, em verdade lhes digo: saibam que, se eu nĂŁo fosse Alexandre Magno, gostaria de ser DiĂłgenes de SĂnope”. Se Alexandre nĂŁo fosse Magno, se Alexandre nĂŁo fosse o Grande, saiba, Dr. Andrei, que entĂŁo, e sĂł entĂŁo, ele gostaria de viver no barril de DiĂłgenes. E saiba, Dr. Andrei, que, se vocĂŞ nĂŁo fosse meu mĂ©dico, estou certo de que gostaria de ser Ivan Dmitritch, nĂŁo Ă© verdade?
Dr. Andrei ainda parece acometido pela sĂşbita antiparanĂłia persecutĂłria.
Ocorre que, em meio à nossa cadeia alimentar, as diferentes gerações não apenas se sucedem — as diferentes gerações se devoram. Eva trai Adão, Caim assassina Abel, Deus nos afoga com o dilúvio, Judas beija para delatar, Brutus é o último a esfaquear César.
Como o alienista Andrei Iefimitch Raguin passa todos os dias em diálogos intermináveis com o alienado Ivan Dmitritch, um burburinho começa a fervilhar no Reino da Dinamarca.
Será que o Dr. Andrei está tresvariando?
O recém-graduado Dr. Khobotov, ávido pelo cargo do Dr. Andrei, começa a mover as peças do tabuleiro enquanto o alienista só faz duelar com o alienado.
Se o Dr. Andrei nĂŁo fosse um erudito de gabinete, vale dizer, se o alienista vinculasse o conhecimento Ă vida, a filosofia Ă polĂtica, o velho mĂ©dico nĂŁo teria perdido contato com seus padrinhos da capital que lhe haviam garantido o cargo na provĂncia. Ocorre que o Dr. Andrei nĂŁo fazia vista grossa apenas com os maus tratos que os pacientes recebiam e com o desvio dos recursos de seu hospital. Dr. Andrei era relapso primeiramente consigo mesmo, sua vagabundagem era de fato estĂłica.
Ocorre que o Dr. Khobotov, munido do açoite medicamentoso, sentencia que nĂŁo Ă© possĂvel alterar uma rotina de 20 anos, abruptamente, senĂŁo por fortes depreciações psĂquicas. [O melhor amigo do Dr. Andrei, Mikhail Averianitch, que lhe devia uma bela quantia de rublos, achou por bem nĂŁo contrariar o diagnĂłstico do aspirante Ă posição do antigo compadre alienista. (E se o Dr. Andrei saĂsse do suposto torpor e se lembrasse de apresentar ao velho amigo a nota promissĂłria da fraternidade?)]
Premido pela argumentação vertiginosa de Ivan Dmitritch, Andrei Iefimitch Raguin passa a ver sem pálpebras, a realidade se revela lodosa, o estoicismo se torna um diagnĂłstico do cinismo, o pupilo suplanta o mestre, o alienado transforma o alienista em um estudo de caso — em uma enfermidade. Normalidade e patologia sĂŁo como os dois lados contĂguos da mesma moeda.
— Cara ou coroa, Dr. Andrei?
Quando o Dr. Andrei está prestes a dar alta para Ivan Dmitritch — quando o liberto está prestes a remover os aguilhões de seu libertador —, o jovem e ambicioso Dr. Khobotov, secundado pelos gorilas ambulatoriais, anuncia o xeque-mate:
— Deem ao ex-doutor Andrei e ao ex-estudante de medicina Ivan os novos uniformes e os novos chinelos que chegaram ontem. (Ainda sem acreditar no que acabara de ouvir, o ex-doutor Andrei engatilha os olhos amarelos contra o Dr. Khobotov.) Meu caro ex-colega Andrei, acredite-me, eu relutei contra o diagnóstico que estou para decretar, mas seus antigos padrinhos da capital — por sinal, os meus novos chefes — não quiseram fazer vista grossa diante das evidências que, infelizmente, acabaram chegando até eles. Pois está escrito: “Diga-me com quem você anda e eu lhe direi quem você é”. Seu caso se tornou paradigmático nas faculdades de medicina de Moscou e Petersburgo: eis o primeiro exemplo de contágio por paranóia persecutória. Mas não se preocupe, caro ex-colega, não se preocupe: como não há vácuo no poder, seu cargo já está em boas mãos: as minhas. Sua casa — a casa funcional designada pela administração — também será muito bem cuidada. Pensei até em reformá-la, Andrei, o que acha? Posso lhe trazer algumas fotos da nossa casa após a reforma, que tal? Mikhail Averianitch, seu melhor amigo — que há pouco se tornou meu melhor amigo —, está ansioso para ver a mudança de ares. E olha só: até mesmo sua empregada topou trabalhar para mim. Mas que dádiva! Parece loucura, não é mesmo?
Antes que o ex-alienista e mais novo alienado da Enfermaria nÂş. 6 comece a se esgolear, o Dr. Khobotov prescreve a Andrei Iefimitch Raguin (mais) um sossega leĂŁo.
(Cabe aos gorilas ambulatoriais a aplicação da injeção após alguns safanões profiláticos.)
Quando Andrei Iefimitch Raguin volta à realidade que passa a acossá-lo, o velho interlocutor da Enfermaria nº.6 — e agora seu mais novo colega de internação —, Ivan Dmitritch, ainda precisa esperar pelo término do torpor medicamentoso para que Andrei consiga duelar novamente. Porém, assim que a inusitada chibata do real voltar a se impor, Andrei começará a disparar olhares para todos os lados.
Para (tentar) acalmar o alienista alienado, Ivan Dmitritch lança mão do apreço que Andrei Iefimitch Raguin tem pela contemplação filosófica do real:
— NĂŁo se preocupe, ex-doutor Andrei, nĂŁo se preocupe: agora Ă© a hora de Marco AurĂ©lio se tornar estĂłico, agora Ă© a hora de seu martĂrio. Assim como Jesus Cristo, o generalĂssimo NapoleĂŁo Bonaparte tambĂ©m foi crucificado, lembra? E eu sei, eu sei, isso nĂŁo Ă© original, mas se lembre sempre de DiĂłgenes, ex-doutor Andrei, o sábio de SĂnope: se eu nĂŁo fosse Alexandre Khobotov, o Grande, gostaria de ser Andrei Iefimitch Raguin. Sábias palavras! (E nĂŁo se exalte muito, meu caro: o brutamonte de plantĂŁo está ainda mais furioso hoje.) Mas nĂŁo se preocupe, ex-doutor Andrei, nĂŁo se preocupe: vocĂŞ tem uma saĂşde de ferro, e eu sempre vou lhe fazer companhia, sempre, eu sempre vou falar com vocĂŞ, a todo instante. Vamos filososar, ex-doutor Andrei? Que tal? O que vocĂŞ acha de Marco AurĂ©lio? Grande estadista, nĂŁo? Grande filĂłsofo! VocĂŞ gosta de jogar xadrez, ex-doutor Andrei? Ah, me diga: vocĂŞ acha que um dia DiĂłgenes vai encontrar um amigo com sua lanterna?