O cadáver na porta do quarto

Entrevista com Sidney Rocha, autor de Fernanflor
Sidney Rocha, autor de “Fernanflor”
07/01/2016

“As duas coisas que o homem contemporâneo mais tem produzido desenfreadamente são lixo e literatura”, dispara o escritor Sidney Rocha. Para ele, o mundo precisa de menos papel, de menos literatura, e de mais vida, apenas assim grandes narrativas poderão ser escritas. Autor de obras como Matriuska, O destino das metáforas — vencedor do Prêmio Jabuti de 2012 na categoria Contos e Crônicas — e de Sofia, o cearense está lançando agora Fernanflor, que inaugura a trilogia Geronimo, série de romances com histórias conectadas por ideias afins.

Em Fernanflor, o autor nos apresenta a trajetória, conturbações e perturbações do artista plástico Jeroni Fernanflor. “Fernanflor é o épico. Uma obra-prima construída com a precisão e o preciosismo com que se constroem os melhores relógios. É lindo e surpreendente o que Sidney Rocha evoca e solidifica com as palavras. E essa obra de arte recebe todo o cuidado desse criador, do texto à concepção estética e gráfica do livro. Só que esse relógio marca o que a ciência não atinge, nunca atingirá”, elogia Lourenço Mutarelli na orelha do volume.

É por conta do lançamento desse novo livro, evidentemente, que Sidney está aqui, concedendo esta entrevista ao Rascunho. “Quero que Fernanflor não sirva ao leitor como um espelho, mas que faça sentir e pensar de outra forma. Se não for muito ambicioso (mas todo autor e todo livro é ambicioso), que o romance sirva como um reencontro do leitor, uma descoberta, um alumbramento”, diz.

Aos 50 anos, o autor conta que ao escrever, parte para o que lhe leva e eleva “ao mais primitivo, ao mais selvagem”, justamente o que nele produz um “efeito mais plenamente”. Também mostra certo distanciamento do dito meio literário. “Não tenho paladar delicado, não me visto bem, não me preocupo com literatura de resultado e o resultado da literatura me interessa sempre a partir de mim mesmo, no que ela possa me elevar, como diria Poe. Não trato de políticas públicas, de formação de leitores, se não me pagam para isso, não sou sacerdote de nada. Não prometo a salvação, mas somente o livro que trago nas mãos, e neste caso ele se chama Fernanflor, o melhor romance em linha reta escrito por mim sob chuva oblíqua, até hoje”, garante, dentre muitas outras coisas, no papo a seguir.

Pouco antes de ler Matriuska, estava lendo Short movies, do Gonçalo Tavares. Achei que vocês dois tinham um tanto a ver pela maneira que lidam com o absurdo, com o inesperado e, para minha surpresa, depois vi que ele era o autor do posfácio de Fernanflor. Você se identifica com a literatura do português? Qual o espaço que o inusitado tem na sua obra?
Nunca pensei no assunto. Há quem diga que o inusitado é mesmo pensar. Vivemos um tempo em que o espanto, o inusitado e o absurdo estão de tal modo integrados ao cotidiano que talvez algo de realismo haja até nisso. E não me interesso pelo realismo, me interesso pela realidade no interior das coisas. Não somente na literatura, que é, na atualidade, tão excessiva no mundo como as verdades na ilha de Fernanflor. As duas coisas que o homem contemporâneo mais tem produzido desenfreadamente são lixo e literatura. De forma que em breve iremos precisar de mais um recipiente na coleta dos recicláveis: lixo comum, vidro, papel, plástico, metal — e literatura. Estou dizendo é que precisamos menos de literatura e menos papel — e de mais vida; de menos plástico e literatura — e de mais vida, para produzirmos narrativas melhores. Aí está o inusitado.

Mas a literatura pode ser um lixo ou se é lixo não é literatura, apenas um apanhado de palavras?
Não. A literatura é sempre um belo luxo, para evocar o trocadilho fácil. E será sempre um luxo, mesmo quando feita de coisas lançadas fora como imprestáveis. O que noutras palavras, coisa do ecossistema humano, de nenhum outro. Será, na pior das hipóteses “o lixo que não é lixo”, para empregar um oximoro tão do gosto dos que, com justa preocupação, se ocupam da reciclagem. Nunca a literatura será um mero apanhado de palavras. Tampouco as palavras em estado de dicionário ou de museu. Claro que o uso do termo “lixo” pode ser adjetivo, mas sabemos bem que muito do que, em certas circunstâncias, é considerado lixo, para outros representa o mais refinado. E não estou com isto defendendo o relativismo; o que, antes de tudo, precisamos é definir o que se entende por literatura, e o que se entende por lixo. Não vejo essas palavras como sinônimas.

As duas coisas que o homem contemporâneo mais tem produzido desenfreadamente são lixo e literatura. De forma que em breve iremos precisar de mais um recipiente na coleta dos recicláveis: lixo comum, vidro, papel, plástico, metal — e literatura.

Seu estilo é bastante próprio. Qual foi o caminho até alcançá-lo?
Graciliano, que dizia que não tinha estilo, mas “jeito”, afirmava também algo assim: “Estilo mesmo tem Stendhal”. “No Brasil, talvez, só um escritor teve estilo: Machado. E olhe lá!”. Para mim, funciona como na física: quando puxamos ou empurramos um objeto, dizemos que estamos atuando sobre ele com determinada força. Contudo, puxando ou empurrando, quase nunca sabemos conscientemente o quanto de força exercemos realmente sobre aquele objeto, ou sobre o romance. Ou seja: não temos consciência o tempo todo sobre a intensidade de força dele para nós e de nós para ele. Para o romance, vamos chamar a unidade de medida dessa intensidade de quilograma-ideia — porque só nos interessarão as unidades conscientes, planejadas, intencionais — e o trabalho do escritor é tornar essas forças mais e mais conscientes, sem tréguas. É continuar empurrando. Ocorre que não se trata de um experimento de ideias, somente. É preciso levar em conta sobretudo a emoção, aquele tipo de resposta ou inteligência a favor da beleza. Então é inevitável colocar tudo à prova e à potência da emoção, o que corresponderia grosso modo ao peso dos objetos, se ainda estamos falando de mecânica, de física. Logo, experiência (resposta a esses estímulos), conceito (ou ideias, conscientes) à potência da emoção (estética) são o quilograma-força da narrativa, para mim. E isso pode resumir o sistema, que busca somente transformar energia em calor: estabelecer unidades de quilograma-emoção. Um quilograma-emoção é a força com que a narrativa atrai para si essa potência (isto é, o peso de tudo em tudo o que há) ao nível do mar e a 45º de latitude, que é o meio caminho da Terra. Quanto mais pesado, mais verdadeiro — porque parecerá sempre mais leve. É tudo verificável: aplique esse quilograma-emoção tanto à obra completa de Balzac ou ao Fausto, de Goethe. quanto para A metamorfose, de Kafka, ou a uma página de Juan Rulfo e você verá o quanto isso é verdadeiro.

Sidney Rocha:
Sidney Rocha: “Leio o que cai à mão até cair a mão. Mas, claro, não tanto assim de improviso, nem somente como jogo de palavras”.

Hoje, na hora de escrever, conto ou o romance? Por quê?
Parto para o que me (e)levar ao mais primitivo, ao mais selvagem. Então será o que produza em mim esse efeito mais plenamente. E isso não tem a ver com o tempo, mas com o ritmo, que é outra coisa. Nem com o gênero.

E na hora de ler?
Leio o que cai à mão até cair a mão. Mas, claro, não tanto assim de improviso, nem somente como jogo de palavras. Ao contrário de muitos autores que dizem só os clássicos ou reler ene vezes os mesmos autores, gosto também de ler os contemporâneos, e também escritores que nem sempre estão postos como os primeiros na parada do sucesso ou na bolsa de valores da literatura.

Aliás, o que você tem lido?
Como Fernanflor: repassando.

E repassando o que, afinal? Por que repassar, o novo não lhe interessa no momento?
O que é novo? De novo, repassando: o maior romancista de todos os tempos é um tal de Miguel de Cervantes, que não só foi o grande inventor disso que chamamos de romance e os espanhóis, de novela, como já o fez levando o gênero a tal ponto que ainda não o superamos. Há muitas maneiras de designar o que é novo, e todos nós sabemos que a mais simples é: o do aqui, do agora. Ou o “inovador”. Que pode ser tanto o de hoje quanto o de ontem, ou do que ainda não veio. Seja como for, cada escritor que se preze deve ter a ambição de fazer o novo, mesmo porque de um jeito ou de outro, a maioria aprendeu, ou poderia ter aprendido com Pound, “make it new”. Portanto, tento fazer o melhor que posso, mas tendo consciência da imensa qualidade do que veio antes, e sem querer imitar nenhum autor, nem fazer “de novo”, e sim fazer “o novo”, isto é, o que posso, o que sei. Repasso há dois anos a mesma leitura, sem parar, a húngara Agota Kristof e o russo Daniil Kharms.

Voltando aos gêneros, quais as principais particularidades de trabalhar cada um desses formatos?
Vou lhe responder mais ou menos como respondi certa vez: no romance tudo cabe, é como uma foz, uma abertura na rocha. Onde haja toda a libertinagem até a sensibilidade enlouquecer e se perverter. Já no conto, é preciso quilogramas-emoção mais condensados, como no suor da dinamite, mas sempre no ponto da explosão, e muitas vezes explodindo. Quero que Fernanflor não sirva ao leitor como um espelho, mas que faça sentir e pensar de outra forma. Se não for muito ambicioso (mas todo autor e todo livro é ambicioso), que o romance sirva como um reencontro do leitor, uma descoberta, um alumbramento.

Quero que Fernanflor não sirva ao leitor como um espelho, mas que faça sentir e pensar de outra forma. Se não for muito ambicioso (mas todo autor e todo livro é ambicioso), que o romance sirva como um reencontro do leitor, uma descoberta, um alumbramento.

Então regressemos ao Fernanflor: tempo e dinheiro devem produzir beleza e ócio?
Dinheiro compra felicidade e beleza, no que podem ter de material e matéria. Mais nada. Na arte, ou para o artista, é diferente. Nunca se tem tudo. Embora o artista deseje tudo e com mais intensidade que qualquer um, embora saiba do quanto isso é impossível, ou melhor: torça para que não seja, porque ele precisa de determinado tipo de sofrimento, ou paixão, para isso, ele praticamente despreza o valor do dinheiro. Ele quer mais que isso. Isso o leitor atento notará em Fernanflor. Ou isso ou aquilo, ou nem aquilo: a felicidade; nem isso: a beleza.

Sidney Rocha:
Sidney Rocha: Um escritor não sabe nada de felicidade, muito menos defini-la.

E o que são a felicidade e a beleza?
Um escritor não sabe nada de felicidade, muito menos defini-la. E quem sabe o que é a beleza é Fernanflor, que vivia de inventá-la.

Em determinado momento, o protagonista diz “vou lá e ponho a pessoa no seu lugar, onde sempre esteve, e lhe dou consciência desconhecida até então. Este é o meu talento”. Até que ponto, a seu ver, é esse o papel da arte? Aliás, qual é o papel da arte
Fernanflor é o livro sobre mim, sobre você, sobre as pessoas. É um romance sobre nosso tempo, mas sem desempenhá-lo, talvez. Contudo, diferentemente do nosso tempo, não é um romance onde predomine a “in-formação”. Mas mais a “forma ou forma em”, ou seja, é sobre como dar “consciência desconhecida até então” aos fatos da vida, às nossas ambições. Uma ilha ou zona onde o mal não é necessariamente a ausência do bem, nem o bem a ausência do mal. Ou região onde a comprovação da existência de algo não se dê unicamente pela ausência de outro algo. Fernanflor não é um livro com “mensagens” (e nisso ele se parece com a própria ideia do personagem Fernanflor: sua pintura também não quer sugerir caminhos ou mensagem alguma). Minha literatura não é pole dance político. Minha atitude política está sumaria e potencialmente em escrever. Mostrar caminhos mostrem os críticos, os padres. Minha postura política se vê no meu dia a dia, nas minhas péssimas escolhas, cada vez mais interessado em mudar o meu bairro ou minha aldeia, mas a partir de mim mesmo. A política tem esse papel de mudanças. A arte, não. A arte é minha única revolução permanente. Fernanflor desistiu de certas ideias, como a política e o amor, logo na infância. Eu ainda acredito em algumas coisas, até mesmo na infância.

Pode nos falar quais são algumas dessas coisas?
Todas as coisas que são a beleza e, diferentemente da frase apócrifa de Flaubert a respeito de Bovary, eu não sou Fernanflor, e posso, por esta e outras razões, amar a beleza, e reinventá-la, ao meu modo, inclusive inventando personagens que podem injuriá-la e abominá-la, enquanto a fecundam.

Em outro momento a obra trata da vaidade de artistas e de como se relacionam com a imprensa. O meio artístico — e literário, por extensão — é cada vez mais feito de troca de agrados e aparências do que da arte em si?
“Todas as críticas que fazem a meu favor são sinceras. Se houver uma, raríssima, contra mim, será pura e simplesmente como objetivo de beneficiar outro miserável”: assim pensam os infelizes. Não me preocupo com nada disso. Não conheço muitas pessoas. Não recebo muitos convites. Se me convidam e me pagam, via de regra, vou. Mas vou sabendo que o meio literário não é a literatura. E vou para falar do meu romance, que ele custa trinta e oito reais e que eu o considero melhor do que os de alguns outros. E que foi o melhor que pude dar aos meus leitores. Vou tentar provar falando dele, não dos outros. Porque estar ali é uma atitude nitidamente de mercado. Não tenho paladar delicado, não me visto bem, não me preocupo com literatura de resultado e o resultado da literatura me interessa sempre a partir de mim mesmo, no que ela possa me elevar, como diria Poe. Não trato de políticas públicas, de formação de leitores, se não me pagam para isso, não sou sacerdote de nada. Não prometo a salvação, mas somente o livro que trago nas mãos, e neste caso ele se chama Fernanflor, o melhor romance em linha reta escrito por mim sob chuva oblíqua, até hoje. Então volto pra casa e escrevo. Farei isso até cansar. Sou escritor comparável somente a mim mesmo, e tento vencer este escritor de hoje tentando escrever hoje melhor que ontem. De tal forma que todos os dias haja um cadáver na porta do quarto: o escritor de ontem. Isto pra mim é a verdadeira literatura de resultados. O texto de um escritor é o que conta.

Não tenho paladar delicado, não me visto bem, não me preocupo com literatura de resultado e o resultado da literatura me interessa sempre a partir de mim mesmo, no que ela possa me elevar, como diria Poe.

Outra fala: “Ninguém escolhe nada. A vida vem e atropela a todos. É força pesada demais de sustentar”. Somos todos reféns dos ventos que a vida sopra? Concorda com o personagem?
Fernanflor não me instrui em nada. Ele é algo mais poderoso, inconsequente, porque um animal com algum tipo de consciência, alguém que simplesmente nos atropela, ele nos faz entender que todos tendemos ao nada. Ele nos elimina ou como disse Lourenço Mutarelli: “Fernanflor me engoliu”.

Em texto para o Suplemento Pernambuco, você fala que “personagens não são feitos de ideias, mas de coração e experiência”. Como foi criar Jeroni Fernanflor?
Sem emoção, ideia e experiência, o fantasma de Hamlet seria somente péssima fantasmagoria. Por isso, você ama e odeia e se compadece com Hamlet e com Fernanflor, que usa sem mecanismos de defesa toda sua artilharia numa solidão que se encontra somente quando esgotamos todo o individualismo possível. Não é como agimos hoje? Mas nem por isso devemos confundir vulgarmente a literatura com a vida real. A vida real não é literária. São dimensões, personagens e responsabilidades distintas. Mas que se entreolham e se imitam. Por analogia, posso dizer que “criar Jeroni Fernanflor” foi algo como “desenhar” e “pintar” cada um dos seus elementos, pensando-o como de onírico e quase no limiar de tornar-se carne, como aquele tipo de palavra a que se refere a Bíblia, e que nos serve de metáfora, ou a criatura do sonho, de Borges, n’As ruínas circulares. Um tanto de claro-escuro, de sfumato. Acho que é exatamente isso Fernanflor: sfumato, por mais carnal que pareça, aliás, em certas passagens; aliás, talvez exatamente aí é que mais seja sfumato.

>>> Leia resenha de Fernanflor.

Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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