(16/10/20)
Eu tinha 16 anos, muito branco, muito feio, muito magro, cravos e espinhas no rosto, e a solidão eu a cultivava como uma flor. Sentado na praça Rui Barbosa, em minha nunca por demais pranteada cidade de Cataguases, eu observava, melancólico, as ruas esvaziarem rapidamente, as pessoas apressando-se a fim de se prepararem para os festejos da passagem de ano daquele longínquo 1977. Clandestinamente, eu me despedia: nunca mais teria o aconchego da casa dos meus pais, nunca mais percorreria as calçadas ensombreadas pelos fícus, nunca mais encontraria sossego no mundo, porque, a partir de agora, seria por minha conta e risco. Sem saber o que fazer da vida, eu olhava apavorado para o futuro… Nosso país se tornou tão obscuro, que, mais de quarenta anos depois, me vejo de volta aos 16 anos, sentado novamente na praça Rui Barbosa, sem saber o que fazer da vida… Com uma diferença enorme, fundamental, determinante: por mais que temesse, antes eu enxergava alguma coisa lá na frente, mesmo que nebulosa… Hoje, caminho sem medo, mas já sem qualquer esperança… E me vem aos ouvidos a canção Promessas de sol, de Milton Nascimento e Fernando Brandt: “Você me quer forte/ E eu não sou forte mais/ Sou o fim da raça, o velho, o que já foi/ Chamo pela lua de prata pra me salvar/ Rezo pelos deuses da mata pra me matar// Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter/ Me cortaram o corpo à faca sem terminar/ Me deixando vivo, sem sangue, apodrecer// Você me quer justo/ E eu não sou justo mais/ Promessas de sol já não queimam meu coração// Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”.
Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?
Luz na escuridão
Adriana Lisboa, romancista, contista, poeta, um dos escritores (entre homens e mulheres) mais traduzidos da literatura brasileira contemporânea: “Em novembro sai minha tradução do ensaio Carta à Terra, da economista e ambientalista francesa Geneviève Azam. Um projeto que apresentei no ano passado à editora e que foi abraçado com prontidão e entusiasmo. A autora escreveu uma apresentação especial para a edição brasileira, que conta também com prefácio de Ailton Krenak”. Em pré-venda aqui: https://www.relicarioedicoes.com/livros/carta-a-terra/
Parachoque de caminhão
“Matamos, por distração, muitas ternuras.”
Rubem Braga (1913-1990)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Donizete Galvão
(Borda da Mata, MG, 1955 – São Paulo, SP, 2014)
Escoiceados
Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.
(Ruminações, 1999)