🔓 Você nunca vai saber o que é matar até que mate

Conto inédito de Maria Fernanda Elias Maglio
Ilustração: Denny Chang
01/02/2023

Você está correndo no quintal da sua vizinha da frente. É pega-pega e a vizinha diz que está com você. Você corre descalço no chão que é parte de grama, parte de cimento, seus chinelos estão na sombra da única árvore, você não gosta de calçar chinelos quentes e no hoje daquele dia faz muito calor, é janeiro.

A vizinha tem os cabelos enrolados que vão até o fim das costas, quase lá, na bunda, e agora que você tem treze anos, gosta de pensar na bunda da vizinha correndo de shorts de lycra e cabelos soltos. E agora que você tem treze anos, gosta de ver a bunda da vizinha correndo de shorts de lycra e cabelos soltos. Você está correndo atrás da vizinha e também dos outros: o moleque da rua de baixo que tem apelido de Fanta Uva, o irmão mais novo da vizinha, um cara que talvez morasse do lado de lá da sorveteria e se chamasse Caio ou Eduardo, tinha uma cicatriz na bochecha, uma linha branca e fina em forma de arco.

Você é o pegador, você tem que correr o mais rápido possível e pegar alguém para deixar de ser o pegador, esta é a regra do jogo. Você corre em direção a todos, mas o mais rápido possível apenas na direção da vizinha.

Ainda são nove da manhã, mas seus pés queimam quando você está no chão de cimento, é janeiro. Você pensa em vestir os chinelos, mas você sabe que não vai conseguir correr o mais rápido possível estando de chinelos, você sabe que pode cair de boca no cimento estando de chinelos, que pode perder os dois dentes da frente tentando correr o mais rápido possível de chinelos. Suas pernas se movimentam para todos os lados do quintal, mas seus olhos estão grudados na vizinha, na bunda coberta de lycra, nos cabelos soltos. A vizinha nunca prende os cabelos, por mais que esteja calor, por mais que esteja correndo no pega-pega, por mais que seja janeiro.

A vizinha olha para você e diz: você não me pega, lerolerolero, como se fosse uma menina de nove anos que não é. Ela tem treze, como você. Os cachos da franja grudam na testa e você acha um pouco nojento os cabelos úmidos de suor. Você acha nojento, mas também acha estranho, também acha bonito. E você entende, aos treze anos de idade, correndo no quintal de cimento e grama, às nove e dezessete de um sábado de janeiro, que as coisas nojentas são também estranhas e bonitas.

Você está quase alcançando os cabelos suados da vizinha quando vê. No chão de cimento, perto da linha onde começa a grama: uma taturana marrom. Você para de forma brusca, bem a tempo de não pisar, é das peludas, você sabe que queima. A vizinha percebe que você parou, mesmo estando de costas, mesmo estando de bunda e também para. Diferente de você, que está descalço no cimento, ela está na grama e tem os pés calçados de tênis. Ela pergunta: que foi?, com uma severidade que nem de longe lembra a voz infantil que acabou de dizer lerolerolero. A franja está completamente grudada no rosto, quase esconde as sobrancelhas e os olhos cor de ameixa.

Você baixa o olhar em direção à taturana e a vizinha entende sem que você precise explicar: ah. Os outros também pararam e o que se chama Eduardo ou Caio diz que é lagarta de fogo, queima de ter que ir pro hospital. E a vizinha diz mais uma vez: ah, mas com outra entonação.

Você poderia pedir para a vizinha que está de tênis brancos com listras rosas pisar na taturana. Você poderia pedir para o Fanta Uva calçar os próprios chinelos que estão no sol e pisar na taturana. Você poderia pegar uma pá de lixo e jogar a taturana viva por cima do muro que divide a casa da vizinha com um terreno baldio. Você poderia dizer chega, cansei de brincar, tá muito calor, vou para casa.

Mas o que você faz é caminhar descalço até a sombra da única árvore e vestir seus chinelos que estão frescos. Você vai em direção à taturana e ela se moveu um pouco, está quase alcançando a grama que deve ser a casa dela.

Você pisa com seu chinelo frio na taturana quente de sol. Você é canhoto e foi seu chinelo esquerdo quem matou a lagarta de fogo que queima de ter que ir para o hospital.

A vizinha diz: argh, porque tem nojo da baba verde que vaza da taturana arrebentada. E você também tem nojo, mas é estranho, bonito e triste. E você entende, aos treze anos de idade, no dia mais quente daquele janeiro, que as coisas nojentas também são estranhas, tristes e bonitas.

Você sente uma vontade insuportável de chorar, uma pelota cresce na sua garganta como uma massa de pão debaixo do pano em um dia de janeiro. Você diz que tem que ir embora, que sua mãe avisou que hoje tem almoço na sua avó, e é mentira.

Você caminha em direção ao portão calçando seus dois chinelos, o assassino e o inocente. A vizinha pergunta se você pode brincar amanhã: você pode brincar amanhã?

Você responde que não, que não pode brincar amanhã, nem depois de amanhã e nem na semana que vem. Você responde que não pode brincar nunca mais. Você entrelaça os dedos uns nos outros e solta na frente do próprio corpo indicando que está de mal, como se fosse uma criança de nove anos que você não é. A vizinha não entende, o Fanta Uva não entende, o irmão da vizinha não entende, o menino de cicatriz de arco talvez se chamasse Carlos Augusto.

Você vai embora para sua casa de tijolos pensando na taturana que devia estar indo para a casa de grama. Você abre a porta e a sua mãe pergunta: que que aconteceu? Você está suado e um pouco pálido e você diz que nada, não foi nada, mãe. E a sua mãe fala que deve ser o calor, diz para você ligar um desenho que ela vai fazer uma limonada com gelo.

Você aperta o botão da televisão e já está no canal que você gosta, a menina montada no cavalo de fogo que está vivo. A lagarta de fogo está morta e nunca vai chegar em casa.

Você tem vinte e dois anos e fez faculdade de economia porque seu pai falou. A vizinha de cabelos suados ficou grávida de um caminhoneiro e foi morar no Paraná. O irmão da vizinha de cabelos suados repetiu três vezes a sexta série e agora trabalha no frigorífico. O Fanta Uva foi preso por roubar uma lotérica, foi a mãe dele quem contou na semana passada, na fila da padaria. O Caio ou Eduardo ou Carlos Augusto você não sabe, talvez não tivesse cicatriz nenhuma.

Você acabou de voltar para casa depois de passar quatro anos fora fazendo faculdade. Você voltou para casa porque tem vinte e dois anos, é formado em economia e não tem emprego. Você voltou para casa porque seu pai disse que vai arrumar alguma coisa para você fazer, tem um amigo que trabalha no banco, é gerente. Você voltou para casa porque sua mãe está com câncer de intestino e o médico falou que agora ó, babau. Foi o que o médico disse na última consulta e seu pai jurou que ia processar, onde já se viu falar um troço desses: agora ó, babau. Você acha babau uma palavra engraçada, como se fosse uma baba no passado, um sangue morto de taturana que aconteceu há muito tempo.

Você está de volta há quase um mês e seu quarto continua igual a quando você tinha treze anos. O autorama ainda montado na prateleira, a colcha da cama é de pista de fórmula 1, o carro vermelho continua ganhando do azul: você não me pega, lerolerolero.

Você acorda todos dias depois das onze e é sempre quente, é janeiro. Você não fala com ninguém além do seu pai, da sua mãe com câncer, da Valda que agora está vindo todo dia porque sua mãe não está aguentando nem levantar da cama, agora ó, babau.

Você não tem amigos naquela cidade que é sua e por isso mesmo, por ser sua, aquela cidade não é aquela, é esta. Você pensa que se não tivesse entrelaçado os dedos na frente do corpo e ficado de mal, talvez fosse você quem tivesse engravidado a vizinha. Talvez você fosse caminhoneiro e morasse no Paraná. Talvez repetisse três vezes a sexta séria e trabalhasse no frigorífico. Ou estivesse preso com o Fanta Uva por assaltar uma lotérica com arma de brinquedo (a mãe dele garantia que era arma de brinquedo). Talvez você fosse amigo do Caio ou Eduardo ou Carlos Augusto e daí saberia se a cicatriz é mesmo em forma de arco, saberia se existe cicatriz, se é branca.

Mas você não faz nada além de dormir e assistir televisão e comer a macarronada da Valda, o filé de frango da Valda, a carne moída. Você não faz nada além de ir até a padaria comprar cem gramas de pão de queijo e um trident de canela. Você não faz nada além de se masturbar debaixo do chuveiro pensando na vizinha grávida de cabelos suados. Você não faz nada além de ouvir sua mãe morrendo no quarto ao lado.

Você não acompanhou o seu pai e sua mãe na consulta em que o médico disse: agora, ó, babau. Você estava no seu quarto assistindo ao penúltimo episódio da sua série favorita pela terceira vez quando seu pai chegou gritando: ondejáseviufalarumtroçodesseoqueessefilhodumaputatápensandojuroquevoumeterumprocessonesseveado. Enquanto seu pai berrava, sua mãe se deitou na cama e desde então não levantou mais. Faz duas semanas, na próxima segunda faz duas semanas.

Depois de gritar que ia processar, seu pai ligou para o amigo gerente de banco e o amigo gerente de banco passou o telefone de um advogado de confiança. Seu pai ligou para o advogado de confiança e o advogado de confiança disse que não tem jeito, falar agora ó, babau, não dá processo. Seu pai tomou um comprimido de zolpiden e no dia seguinte não tocou mais no assunto.

Seu pai vai para o trabalho todos os dias às oito horas da manhã e volta às onze e meia, almoça a macarronada da Valda, o filé de frango, a carne moída, retorna ao trabalho e só chega em casa às sete, janta o mesmo do almoço, pergunta como sua mãe está, como tá hoje benzinho? e a voz é infantil como se tivesse nove ou treze anos e em resposta sua mãe solta um gemido debaixo da coberta. Mesmo sendo quente, mesmo sendo janeiro, sua mãe tem sempre frio.

E todos os dias, depois de perguntar como sua mãe está e ela responder gemendo, seu pai bate duas vezes com o nó do dedo direito na porta do seu quarto, seu pai é destro. Você reponde: pode entrar, apertando o pause do controle remoto. Seu pai entra cheirando à loção de barba e sabonete, a camisa azul ou branca, os cabelos ainda úmidos penteados para trás, ele pergunta se foi tudo bem hoje. E você não entende direito a pergunta, porque o hoje de hoje é igual ao hoje de ontem e de anteontem. Mesmo assim você reponde que foi tudo bem. E seu pai diz que vai dar uma volta, vou ali espairecer. Você acha espairecer uma palavra engraçada, parece praia, espairecer é ir para uma praia dentro da cabeça. E seu pai sai do seu quarto fechando a porta devagar e mesmo depois que despausar sua série, você sabe que ainda assim vai escutar o barulho da sua mãe morrendo no quarto ao lado.

E no hoje deste dia o seu pai acabou de sair do seu quarto fechando a porta devagar, a camisa é verde clara, um pouco mais aguada do que o sangue da taturana, ele foi para a praia da cabeça dele. E no hoje deste dia sua mãe está morrendo mais alto. Você aumenta o volume da televisão e liga o ventilador. Ainda assim você escuta.

Você tirou a camisa do pijama, o ventilador no máximo, mas você continua sentindo calor, muito calor. Você resolve tomar um banho, são nove da noite, você já tomou dois hoje e seu pai disse que a conta de água está cara, caríssima. Mas é janeiro e a sua mãe está morrendo muito hoje.

Você está debaixo do chuveiro e não tem vontade nenhuma de passar sabonete, shampoo. Você está debaixo do chuveiro e não tem vontade nenhuma de se masturbar pensando na vizinha de cabelos suados. Você está debaixo do chuveiro e pensa que poderia se mudar para o Paraná, poderia roubar um frigorífico com uma arma de brinquedo, trabalhar em uma lotérica, ter um filho que repetisse três vezes a sexta série. Você está debaixo do chuveiro quando ouve. Sua mãe está pedindo socorro.

Você desliga o chuveiro, veste de volta seus shorts de pijama, seu corpo está pingando água, seus cabelos grudados na testa, você destranca a porta do banheiro e vai.

Você caminha devagar como uma taturana, você deveria estar correndo, deveria estar com pressa, você nem se enxugou. Mas ali, no meio do corredor, quase na linha em que começa o chão do quarto da sua mãe, você se sente um garoto de nove ou de treze. Você tem vinte e dois anos e se formou em economia, você nem tem certeza de que o Carlos Augusto tinha uma cicatriz, você está com medo.

Você finalmente entra no quarto e o abajur está aceso. Você olha o vidro de vick vaporub na mesinha, um copo de água pela metade, uma caneta bic quase sem carga, três moedas de um real, o terço cor de rosa enrolado no pé de Nossa Senhora das Graças (você sabe o nome dos santos, você fez catecismo).

Então você vê: sua mãe morrendo de olhos fechados e dizendo: socorro.

Você se senta na beirada da cama e fala: mãe, colocando sua mão esquerda no braço dela, você é canhoto. Sua mãe não abre os olhos, continua pedindo socorro de olhos fechados e você não sabe se ela está morrendo acordada ou se está morrendo dormindo, você não sabe se ela quer ser socorrida da morte ou da vida. A única coisa que você sabe é que agora ó, babau.

Você poderia ligar para o seu pai e gritar para ele voltar: volta agora que a mãe tá morrendo. Você poderia pegar sua mãe no colo (ela não pesa mais do que cinquenta quilos) e levá-la para o hospital, são três quarteirões. Você poderia voltar para o seu quarto e colocar um episódio da sua série preferida no volume máximo e esperar que sua mãe morra sozinha.

Mas o que você faz é levar sua mão esquerda até o rosto da sua mãe. Você faz um carinho desajeitado pela falta de costume e você diz de novo: mãe, mas com outra entonação. E desta vez ela abre os olhos e são quase tão escuros quanto os olhos de ameixa da vizinha grávida.

Com o polegar e o indicador em pinça você obstrui as narinas da sua mãe, com o resto dos dedos você tapa a boca. Os olhos da sua mãe estão muito abertos e ela luta com os braços e com as pernas para que você a deixe respirar, ela jogou o cobertor longe tentando te acertar um chute. Agora que está morrendo de verdade, sua mãe não quer mais morrer, ela tenta agarrar seu pescoço, os olhos muito abertos, Nossa Senhora das Graças vendo tudo.

Você reprime o corpo dela com seu próprio corpo, não é difícil, ela não pesa mais do que cinquenta quilos, não consegue mais comer a macarronada, o filé de frango, a carne moída, não consegue mais tomar banho, assistir televisão, fazer limonada com gelo, não consegue mais ir até a padaria e dizer me dá cem gramas de pão de queijo, ela não consegue mais pedir socorro.

Sua mãe está morta e uma baba transparente vaza do canto da boca. É nojento, mas também é estranho, triste e bonito. Você sente uma vontade insuportável de chorar, uma pelota cresce na sua garganta como uma massa de pão debaixo do pano em um dia de janeiro. Você não tem para quem dizer que precisa ir embora, que sua mãe avisou que tem almoço na casa da sua avó. Sua avó morreu há sete anos e sua mãe há menos de um minuto.

Você limpa o fio de baba com as costas da mão esquerda, enxuga nos shorts. Os olhos da sua mãe continuam abertos e você nunca viu tão escuros, duas ameixas passas arregaladas. Então você se lembra. O menino que morava do lado de lá da sorveteria se chamava Caio Alessandro e tinha uma cicatriz em forma de u no meio do queixo, era branca. Se ele fosse seu amigo, você ligaria para ele agora.

Maria Fernanda Elias Maglio

É escritora e defensora pública. Trabalha na defesa de pessoas pobres em cumprimento de pena. Publicou pela Patuá: Enfim, imperatriz (Prêmio Jabuti 2018, categoria Contos), 179. Resistência (Prêmio Biblioteca Nacional 2020, categoria Poesia) e Quem tá vivo levanta a mão (finalista dos prêmios Candango e Oceanos 2022).

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