🔓 Universalismo, identitarismo ou bantustanização?

Escolher entre as lutas universais ou as lutas identitárias é hoje o grande dilema das forças progressistas em todo o mundo
Ilustração: FP Rodrigues
12/09/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Cinco meses depois da sua vitória no Chile, confirmando, aparentemente, uma nova onda progressista na América Latina, o presidente do referido país, Gabriel Boric, acaba de perder uma batalha política crucial: o projeto de nova constituição, que poderia ter encerrado das bases político-jurídicas do Chile estabelecidas no tempo do sanguinário ditador Augusto Pinochet, foi amplamente rejeitado pela maioria dos chilenos. O facto deverá obrigar as forças que se identificam como sendo de esquerda a uma profunda reflexão sobre os caminhos para a sua refundação, depois da queda do Muro de Berlim, mas, a avaliar pelas primeiras reações das correntes progressistas em todo o mundo, tenho dúvidas que tal venha a acontecer.

A história política das nações ensina-nos a todos que é sempre avisado adotar leis magnas que sejam consensuais. No entanto, pelo menos dois aspetos do projeto de nova constituição chilena, agora derrotado, eram considerados demasiado radicais pela maioria dos cidadãos: a transformação do Chile num estado plurinacional, formado por diversas etnias, e o pluralismo jurídico, prevendo um sistema exclusivo para cada etnia. Tudo indica que Boric leu mal o apoio recebido há cinco meses dos chilenos para a realização de reformas no país, destinadas, sobretudo, a apagar a herança maldita dos tempos de Pinochet, pretende levar as reformas longe de mais, para o que a maioria das pessoas não estava pronta.

O verdadeiro choque de realidade que a nova esquerda chilena acaba de receber lembra-nos, mais uma vez, que o vanguardismo, seja ele qual for, é sempre mau conselheiro. Com efeito, as mudanças sociais, para serem efetivas e duradouras, não podem simplesmente ser impostas de cima para baixo, antes exigindo uma dinâmica que, mesmo sendo formulada pelos setores revolucionários (logo, vanguardistas por definição, por estarem à frente do seu tempo), precisa de ser entendida, partilhada e posta em marcha pelas bases. Não podem, por isso, ser materializadas por decreto. Para se tornarem realidade, têm de ser socializadas, para o que o trabalho ideológico é fundamental. Recorde-se, a propósito, a importância nesse sentido de instâncias como a educação e a comunicação.

Além disso — esse o ponto principal que quero destacar na coluna de hoje —, as propostas em questão levam-me a um tema que, na minha opinião, precisa de ser discutido principalmente pelas forças progressistas, que se identificam como sendo de esquerda, pois é do seu interesse particular: qual o melhor caminho para impor uma agenda que ponha cobro às injustiças sociais engendradas pelo capitalismo, possibilitando uma reparação histórica que beneficie todos os explorados, dominados e segregados do mundo? O universalismo, como continua a defender a esquerda, digamos, tradicional, ou o identitarismo, como propõe a esquerda “pós-moderna”?

Vou definir “identitarismo”, com Félix Duque, como “identidade exacerbada”. A verdade é que, presentemente, as pautas identitárias, vistas como a única maneira de reparar as discriminações históricas e a persistente exploração de que continuam a ser vítimas importantes grupos humanos, têm-se sobreposto às pautas políticas e sociais tradicionais, assentes no universalismo e na ideia de redistribuição. A pergunta que se impõe é se transformar essas pautas numa nova verdade absoluta realmente resolverá o problema da exploração.

A “nação” é, como se sabe, uma forma de identidade. Ora, como ensinam Alain Finkelkraut e outros, duas conceções de nação foram-se confrontando no século 19: a ideia eletiva e a ideia étnica. Acontece que, embora a primeira se tenha tornado vitoriosa, como o demonstra o “sucesso” dos estados-nações em todo o mundo, a ideia étnica não morreu, o que pode ser demonstrado pelo surgimento, entre o fim do século 20 e as primeiras décadas do presente século, dos discursos identitaristas e supremacistas “pós-modernos” e “pós-globalistas”. Trata-se, bem vistas as coisas, de uma caricatura da ideia étnica (ou será essa ideia, em si mesma, uma simples caricatura?), mas nem por isso menos influente.

As propostas para transformar o Chile num estado formado por diversas etnias (como se essa, por um lado, não fosse uma realidade factual e, por outro, como se essas etnias não convivessem há séculos, o que inevitavelmente as transforma a todas elas) e a adoção de sistemas jurídicos exclusivos para cada uma dessas etnias resultam claramente de uma conceção de nação baseada na ideia étnica. No limite — vou dizê-lo — é uma espécie de apartheid ou de bantustanização, tal como o regime segregacionista boer pretendeu fazer na África do Sul.

O reaparecimento das tensões entre o idêntico e o diferente, entre nós e os outros, entre o universalismo e os particularismos vários e crescentes, num período, como aquele que nos cabe viver, de comunicação global e de proximidade instantânea é — diga-se — um paradoxo irónico. Para muitos, entre os quais me incluo, isso é consequência do advento do neoliberalismo (outro nome do “capitalismo financeiro”). Cito novamente Félix Duque: “Essa transformação do liberalismo num neoliberalismo global, especulativamente financeiro e digitalmente tecnocrático, exacerba ainda mais o sentimento de uma identidade vulnerada”.

A esquerda “pós-moderna”, ao abdicar da luta pelos interesses de classe e pela justiça social, abraçando as lutas pelo reconhecimento segundo o modelo identitário (que é necessário, mas não deve ser absolutizado, sob pena de ser ideologicamente instrumentalizado, até porque todos os indivíduos, na verdade, têm mais do que uma identidade), está equivocada. Pela parte que me cabe, continuo a acreditar que o universalismo é capaz de fornecer a todos as chaves para lutar contra todas as formas de discriminação, pois, como ele nos ensina, todos os seres humanos são iguais. Certamente, o universalismo e o comunitarismo (identitário ou qualquer outro) poderão dialogar e articular-se, mas isso é outra coisa.

A luta pelo reconhecimento e valorização das identidades historicamente injustiçadas, em todos os planos, é uma luta necessária e justa. Mas não pode ser feita em nome de novas verdades absolutas, tendencialmente autoritárias e totalitárias. Afinal, e como nos alerta o pensador português Eduardo Lourenço, “a única identidade não aberrante é a da nossa comum humanidade. E essa não separa, une”.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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