🔓 Uma história de Natal

Um episódio verídico ocorrido nos tempos em que os bichos falavam e liam jornais e os jornais influenciavam a opinião pública
Ilustração: FP Rodrigues
25/12/2020

Esta é uma história dos tempos em que os bichos falavam.

Naquela época ainda havia jornais. Os jornais eram lidos, comentados, influenciavam a opinião pública – e quase todos possuíam suplementos literários, acredita, querido/a leitor/a? Os periódicos (que é como também podemos chamar os jornais) das grandes cidades tinham enormes redações e grandes oficinas gráficas, que empregavam centenas de pessoas, e circulavam em amplos territórios. Por isso, os caminhões de distribuição, que no começo da madrugada deixavam a cidade rumo ao interior, funcionavam também como uma espécie de correio particular, levando e trazendo malotes. Muitos desses periódicos contavam com correspondentes em cidades do interior e, naqueles municípios mais importantes, chegavam a manter sucursais, com um número fixo de jornalistas.

Pois bem. Certa feita, o chefe de uma sucursal – chamemo-lo Tanganelli (se você não gostar do sobrenome, pode usar outro, sem problema) – ligou para o chefe do departamento de tráfego (o sujeito responsável pelos caminhões de distribuição dos jornais) e falou:

– Silveira (idem, se você não gostar do nome), aqui é o Tanganelli, da sucursal de Ribeirão Preto (pode mudar o nome da cidade também!). É o seguinte: pedi para um primo meu comprar os presentes dos meus filhos aí em São Paulo, bem mais barato, e eu pensei se, de repente, caso ele deixasse o pacote aí, você não poderia enviar para mim… É um volume pequeno, não vai estorvar ninguém…

É bom que se diga que essa história se passa na semana do Natal – uma segunda-feira, sendo que o dia 25 cairia no sábado – e Silveira encontrava-se particularmente sensível, porque a mulher, grávida, estava para parir a qualquer momento.

Silveira disse para Tanganelli que não havia problema algum, que podia falar para o primo dele o procurar, ou, caso não o encontrasse, que deixasse a encomenda em seu nome, que ele despacharia na mesma noite. Dito isso, Silveira envolveu-se nas tarefas do dia, que consistiam em assinar papeis, conferir a contabilidade de entrada e saída dos caminhões, participar de reuniões longas e inúteis – e ele ainda se mantinha alerta com a evolução da condição da esposa. Às quatro horas da tarde, Marcão o rendeu, ele pegou o carro e dirigiu para casa, feliz por mais um dia de dever cumprido.

Terça-feira, meia hora após chegar ao trabalho, o telefone em sua mesa tocou, Silveira atendeu, era o Tanganelli perguntando se havia recebido o pacote, que o primo deixara no dia anterior. Ele respondeu que, como não fora durante seu expediente, alguém deveria ter recebido e guardado, mas que não se preocupasse que na manhã seguinte a encomenda estaria em suas mãos. Tanganelli agradeceu, vivamente contente, e desligou.

Silveira chamou o office boy, mandou que localizasse o pacote e o colocasse dentro do armário, que mais tarde cuidaria daquilo, e mergulhou na rotina. Às quatro da tarde, em ponto, o Marcão chegou, conversaram banalidades, e Silveira foi embora. Só no caminho lembrou da encomenda e, chateado, prometeu a si mesmo que, assim que pusesse os pés em casa, ligaria para o colega e pediria para que ele providenciasse seu envio para Ribeirão Preto. Mas, você sabe, leitor/a, o trânsito em São Paulo é terrível, Silveira morava longe, num apartamento alugado, ensolarado e ventilado, mas longe, e, ao estacionar o carro na garagem, ele só pensava em abraçar a mulher e sentir os movimentos dos pezinhos do bebê na barriga dela, uma coisa comovente.

Quarta-feira, ainda no corredor, Silveira ouviu o telefone tocando estridentemente e de imediato lembrou do Tanganelli. Desconcertado, abriu o armário, conferiu o pacote, e só então atendeu. Do outro lado, Tanganelli, a voz irritadíssima, mas contida:

– Alô, Silveira, não chegou nada aqui pra mim!

Silveira, encabulado, disse:

– Desculpe, Tanganelli… Esposa grávida, nessa época do ano os problemas se acumulam… Estou morrendo de vergonha, me desculpe mesmo. Mas, olha, de hoje não passa, eu garanto…

Ao desligar o telefone, Silveira pensou numa forma de não esquecer de levar a encomenda até o Normando, subordinado que cuidava de despachar os caminhões para o interior, e que pegava no serviço na hora em que ele saía. Primeiro, pretendeu colocar o pacote em cima da sua mesa, mas a caixa, leve e frágil, temeu que pudesse derrubá-la, quebrar algo, não, melhor não correr risco. Depois de refletir, pegou uma folha de papel, escreveu em letras garrafais, com caneta Pilot, “Encomenda para Ribeirão Preto”, e colou com durex na porta do armário.

A manhã, como se diz, voou. Após o almoço, convocaram-no para uma reunião interminável para discutir os detalhes da festa de Natal dos funcionários – no sábado, pela manhã, Papai Noel chegaria de helicóptero no pátio da empresa e distribuiria presentes para as crianças. Ao regressar à sua sala, Silveira encontrou tantas coisas pendentes que, mesmo de vez em quando olhando para o cartaz na porta do armário, só percebeu que não tinha despachado o pacote do Tanganelli quando acordou, assustado, diante da televisão ligada, alta madrugada.

Na quinta-feira, ainda a caminho do trabalho, parecia já ouvir o barulho do telefone, que o acompanhou até entrar na sala. Assim que sentou e pegou o aparelho, escutou, do outro lado, os berros do Tanganelli. Sem saber o que dizer, Silveira, que era um homem bom, apenas murmurava, Você tem toda razão, Não sei nem o que dizer, Vai seguir hoje, sem falta, etc.

Silveira geriu mal aquela manhã. Colocou o pacote bem à vista, em cima da mesa, e a toda hora consultava o relógio, ansioso para que desse quatro horas da tarde e ele pudesse levar a encomenda em mãos para o Normando. Porém, pouco antes do almoço, recebeu um telefonema da vizinha, dizendo que fosse correndo para casa, a mulher reclamava que não estava se sentindo bem. Ligou para o Marcão, o colega se prontificou a chegar mais cedo, que não se preocupasse, em meia-hora, quarenta minutos no máximo estaria ali, pode ir sossegado. Silveira deixou a sala intempestivamente, e no meio do trajeto lembrou, aborrecido, da droga do embrulho do Tanganelli… Parecia praga aquilo! Chegou em casa esbaforido, e, após constatar que a mulher estava melhor, ligou para o Marcão. Falou do Tanganelli, omitindo, claro, o desnecessário, e pediu para que ele avisasse o Normando para despachar a encomenda para Ribeirão Preto, sem falta, heim!

Assim que colocou o aparelho no gancho, Marcão foi absorvido pela rotina. Já era quase meia-noite, seu horário de largar o serviço, quando olhando para o pacote em cima da mesa, lembrou do Silveira. De imediato, ligou para o Normando, avisando que havia uma encomenda em sua sala que deveria seguir ainda naquele dia, sem falta, heim, para Ribeirão Preto. Normando disse que ele ficasse despreocupado que a embarcaria no primeiro caminhão que saísse para o interior. Marcão apagou as luzes, fechou a porta da sala e avisou o segurança que mais tarde iriam passar ali para pegar a mercadoria.

Cerca de quarenta minutos depois, um caminhão encostou à porta da seção de tráfego. O segurança acompanhou o rapaz até à sala do chefe do setor, abriu a porta, acendeu as luzes e ambos viram o cartaz colado na porta do armário, “Encomenda para Ribeirão Preto”.

No dia seguinte, Silveira quase teve um ataque cardíaco ao ver, intacto, em cima da sua mesa, o maldito pacote do Tanganelli. Sua surpresa só não foi maior que a do Tanganelli, que, ao chegar no pequeno escritório onde funcionava a sucursal, encontrou os três jornalistas e a secretária que trabalhavam com ele intrigados com aquele armário velho vindo da sede de São Paulo.

Luz na escuridão
Ana Maria Machado, ficcionista, ensaísta, autora de vasta obra de literatura infantil e juvenil, Prêmio Hans Christian Andersen: “Neste isolamento, reli muito o que tinha nas estantes. Meus poetas de sempre e alguma ficção querida que sempre pretendia reler (Guimarães Rosa, García Márquez, Philip Roth). Revisitei uns ensaios clássicos de interpretação do Brasil (Os donos do poder, O povo brasileiro). Atualizei-me na ficção contemporânea e nas novas reflexões identitárias. Fiz a revisão final em Vestígios, meu novo livro de contos que sai em 2021 pela Alfaguara. E estou escrevendo Rastros e riscos, umas memórias de meus encontros com leitores por este Brasil adentro”.

Parachoque de caminhão
“É curioso como não nos envergonhamos de uma má ação, mas sim de mostrar arrependimento por a termos cometido.”
Daniel Defoe (1660-1731)

Antologia pessoal da poesia brasileira
João Cabral de Melo Neto
(Recife, PE, 1920 Rio de Janeiro, RJ, 1999)

Cartão de Natal

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.

(Museu de tudo, 1975)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho