* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da lĂngua portuguesa, em formação.
SĂł agora me chegou Ă s mĂŁos o livro de poesia meaidade, do angolano Carlos Ferreira, editado no final de 2021 em Angola e Portugal pela Guerra e Paz. O autor, atual adido de imprensa e de cultura de Angola em Paris, Ă© um conhecido jornalista, poeta, antologiador, letrista e ativista cultural. As suas ligações ao movimento musical do paĂs sĂŁo muito importantes: alĂ©m de ter participado na gĂ©nese da kizomba, ritmo local que, tendo ido beber na fonte da mĂşsica antilhana, sobretudo do emblemático grupo Kassav, se globalizou autenticamente, sendo hoje escutado, tocado e dançado um pouco por todo o mundo, Ă© tambĂ©m o autor de algumas das mais belas letras da atual mĂşsica popular angolana, conhecidas do pĂşblico nas vozes de grandes intĂ©rpretes tais como Paulo Flores, AndrĂ© Mingas e Filipe Mukenga.
Carlos Ferreira faz parte da geração de escritores angolanos nascidos na dĂ©cada de 50 e que, em geral, começaram a publicar apĂłs a independĂŞncia do paĂs, sobretudo a partir do inĂcio dos anos 80. É a mesma geração de Ana Paula Tavares, JoĂŁo Maimona, JosĂ© LuĂs Mendonça, AmĂ©lia Dalomba, Alexandra Dáskalos, Ana Branco, Ana de Santana, Lopito FeijĂł, Agualusa, LuĂs Kandjimbo e outros (eu faço igualmente parte dessa geração). Antes de meaidade, publicara 17 tĂtulos, na maioria de poesia, distinguindo-se da maioria dos autores atrás citados nĂŁo apenas pela postura crĂtica dos seus textos (o que Ă© comum a alguns deles), mas sobretudo pela linguagem “direta, simples, de pretensĂŁo transparente e coloquial”, para recorrer Ă s palavras do professor angolano Francisco Soares (dá aulas presentemente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul). De facto, explica Soares, “a poesia [angolana] dos anos 80 privilegiou o contrário: densidade metafĂłrica, proliferação analĂłgica, descontinuidades acentuadas no interior do discurso, atĂ© chegar ao extremo da suspensĂŁo do sentido como fio Ăşnico de leitura do poema”.
As observações do professor Francisco Soares sĂŁo rigorosamente formais. Na verdade, começo por assinalar que, no domĂnio dos conteĂşdos, Carlos Ferreira, tal como outros autores da mesma Ă©poca, nĂŁo deixa de ser herdeiro da tradição da literatura nacionalista e revolucionária (vamos dizer: engajada) das duas gerações anteriores responsáveis pela criação da literatura angolana moderna, a saber, a geração da Mensagem e a geração da Cultura, designações de duas importantes revistas culturais angolanas, em torno das quais se organizaram alguns dos principais autores do modernismo angolano. A tĂtulo de exemplo, citem-se os nomes de Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Viriato da Cruz, MaurĂcio Gomes e Mário AntĂłnio de Oliveira, no primeiro caso, e os de Luandino Vieira, AntĂłnio Jacinto, Costa Andrade, Arnaldo Santos, os irmĂŁos Henrique e Mário Guerra e JoĂŁo Abel, no segundo caso. Essa “herança”, entretanto — Ă© imperioso afirmá-lo —, nĂŁo implicava um mero mimetismo, isto Ă©, nĂŁo era uma simples cĂłpia da literatura engajada e muitas vezes panfletária desses autores das gerações literárias anteriores, alguns dos quais, inclusive, se empenharam na luta armada pela independĂŞncia de Angola.
É verdade que certos autores da Geração de 80 em cuja linhagem se insere Carlos Ferreira nĂŁo sentem necessidade, para superarem a poĂ©tica panfletária dos autores mais velhos, de fazer aquilo que Francisco Soares descreve como “a suspensĂŁo, desmultiplicação, ambiguação ou emascaramento do sentido” (como tĂŁo bem procedem, por exemplo, JoĂŁo Maimona ou JosĂ© LuĂs Mendonça), mas isso nĂŁo os impede de assumir o legado das gerações da Mensagem e da Cultura sob um deliberado e assumido olhar crĂtico. No caso concreto do autor de meaidade, a sua postura crĂtica assume, na maioria da sua obra, a forma de interpelação e atĂ© de invetiva, quando se trata de condenar as atuais traições aos compromissos revolucionários do passado, a que ele insiste em manter-se fiel.
Veja-se, por exemplo, esta interpelação aos mais velhos que foram capazes de fazer a luta pela independĂŞncia do paĂs, mas que, uma vez ela conquistada, nĂŁo apenas se acomodaram, mas decidiram “engordar a bolsa vazia com que partiram um dia para a luta”, para citar o moçambicano Jorge Rebelo:
Onde estĂŁo agora?
Em que vala funda se esconderam
a vossa raiva
a vossa força
o sorriso terno e amargo
na manhĂŁ clara do vosso regresso?
(…)
Lembram-se,
era para sermos iguais
igual a água
a fome dividida.
(…)
Que Ă© das palavras dos gestos do punho?
Oferta amiga nos longos anos
abrindo caminhos
emprenhando ventres de esperança
ou apenas um disfarce
jornada ténue
a nossa vida acabada em vosso proveito…
Carlos Ferreira nĂŁo Ă©, por conseguinte, um poeta militante tĂpico do perĂodo de luta pela independĂŞncia. Este Ăşltimo Ă© assim caracterizado por Francisco Soares: “(…) devia ser revoltado e positivo, interpretando os episĂłdios mais variados em função do mesmo combate certeiro pelo futuro”. O autor de meaidade, contudo, Ă© um poeta lĂşcido, pois, mantendo-se fiel aos seus princĂpios morais e polĂticos revolucionários, nĂŁo tem ilusões, parece nĂŁo acreditar nos “amanhĂŁs que cantam” e nĂŁo hesita em denunciar todos aqueles que traĂram os compromissos do passado. Nesse sentido, sofre do mesmo “mal estar epocal” de que sofrem igualmente os autores da mesma geração que, voluntariamente, nĂŁo escolhem temáticas polĂticas ou, entĂŁo, evitam usar a linguagem direta, simples, transparente e coloquial que o caracteriza, assim como a alguns outros autores do mesmo perĂodo. Talvez por essa razĂŁo, o poeta e crĂtico literário LuĂs Kandjimbo designa a geração de 80 de “Geração das Incertezas”.
A verdade, confirma o professor Francisco Soares, é que a referida geração, sendo embora heterodoxa (como acontece, afinal, em todo o mundo precisamente desde as duas últimas décadas do século passado), tem um outro ponto em comum, além do mal estar, por uma razão ou por outra, com o “socialismo” (as aspas são deliberadas): a temática amorosa. Assim, a mesma está espalhada pela obra de todos os autores da Geração de 80 ou Geração das Incertezas.
NĂŁo Ă© mero acaso, por certo, que meaidade (livro escrito em jeito de balanço eminentemente polĂtico quando o autor atingiu 60 anos de idade) abra com um poema de amor:
Ficaria em ti, num amplexo
naquelas horas
tu me olhando
como quem faz de conta
Percorro-te assim
num bem-estar definitivo
andorinhas cintilando
nossa breve fuga passageira
arquivada para sempre
mesmo em memĂłria fugaz.
De igual modo, o autor não tem medo do erotismo, outro veio importante da poesia angolana contemporânea:
Te ter
pétala
a
pétala
o corpo a face o gesto
tua esquadria em minhas mĂŁos
lĂngua de sol tocando teu peito.
Apesar de ser uma personalidade conhecida na cena cultural (e jornalĂstica) de Angola, Carlos Ferreira ainda nĂŁo tem a sua obra poĂ©tica devidamente valorizada. Espera-se pela organização e rigorosa revisĂŁo dos seus poemas completos, para que o autor ocupe o lugar que merece na biblioteca da literatura angolana.