* O autor escreve segundo o acordo ortogrĆ”fico e a norma angolana da lĆngua portuguesa, em formação.
Acabo de ler o romance Margens e travessias, do angolano Boaventura Cardoso, publicado no fim de outubro em Portugal pela Guerra e Paz. Marco Lucchesi, conhecido, obviamente, dos leitores do Rascunho (afinal, Ć© presidente da Academia Brasileira de Letras), tem razĆ£o: Ć© um grande romance. Dele afirmou Lucchesi: āBoaventura Cardoso produziu um alto romance. IndelĆ©vel o sentido poĆ©tico difuso que o atravessa. Ouve-se a mĆŗsica do pensamento, a expressĆ£o de uma lĆngua serena e vibrĆ”tilā.
O autor, que Ć© contista e romancista, faz parte da geração de escritores angolanos que comeƧou a publicar na dĆ©cada de 70, ainda antes da independĆŖncia de Angola, sendo a maior parte da sua produção, entretanto, escrita e lanƧada depois do fim da colonização. Pouco conhecido no exterior, a nĆ£o ser na Ć”rea de estudos literĆ”rios africanos em diferentes paĆses (o Brasil Ć© um deles), Ć© justamente considerado um dos mais importantes autores contemporĆ¢neos angolanos.
Ele estĆ” longe de ser um escritor prolĆfico, como outros, talvez por pressĆ£o das editoras. O facto de, Ć semelhanƧa de vĆ”rios escritores angolanos que comeƧaram a publicar entre as dĆ©cadas de 50 e 80, ter exercido diversos cargos polĆticos (ministro, governador provincial, embaixador e parlamentar) Ć©, certamente, uma das razƵes para isso. Mas a principal razĆ£o Ć© que se trata de um autor exigente consigo próprio. Margens e travessias, por isso, levou sete anos a ser escrito.
O resultado Ć© um romance que, nĆ£o sendo perfeito (haverĆ” livros perfeitos?), jĆ” nasce clĆ”ssico. Nesse sentido, tem de ser colocado ao lado de tĆtulos como Nós, os do Maculusso ou O livro dos rios, de Luandino Vieira; Mayombe, de Pepetela; e A conjura, de Agualusa. Outros romances angolanos alcanƧaram idĆŖntico nĆvel de realização literĆ”ria, mas o que torna clĆ”ssicos os tĆtulos mencionados Ć© o facto de terem a ver com a formação de Angola e dos angolanos.
Por essa razĆ£o, alguns leitores poderĆ£o considerar Margens e travessias um livro histórico. Eu prefiro afirmar que se trata de um livro sobre a história, na linha da leitura da professora Jurema Oliveira, da Universidade Federal do EspĆrito Santo, a qual afirmou que āO discurso de Boaventura Cardoso tem como referente a História e as experiĆŖncias locais reatualizadas [sublinhado meu] na ficçãoā.
A professora TĆ¢nia Macedo, da Universidade de SĆ£o Paulo (USP), uma das maiores conhecedoras das literaturas africanas de lĆngua portuguesa, fez uma leitura entusiĆ”stica do novo romance de Boaventura Cardoso. Disse ela: āA literatura angolana finalmente tem um Ć©pico que a representa magnificamenteā.
Depois de assinalar que o romance de de Boaventura Cardoso conduz os leitores a uma Angola āao mesmo tempo mĆtica e históricaā, Macedo conclui: āLivro instigante, graƧas Ć sua atualidade, mas, sobretudo, em razĆ£o da sua inquestionĆ”vel qualidade artĆstica, Margens e travessias marca definitivamente a literatura angolanaā.
O livro de Boaventura Cardoso Ć© muito bem construĆdo. A história da formação de Angola Ć© contada a partir das numerosas viagens feitas pelas duas personagens principais ā um soba, chefe tradicional, cooptado e ao serviƧo da modernidade e do respetivo sistema de poder; e uma espĆ©cie de feiticeiro sem idade (no romance, ele vive como que eternamente) ā atravĆ©s dos vĆ”rios rios angolanos, passando de uma margem para outra, enquanto vĆ£o discorrendo (e informando os leitores) sobre os mais marcantes acontecimentos da história do paĆs, desde o perĆodo prĆ©-colonial atĆ© Ć atualidade.
A metĆ”fora Ć© clara: Angola Ć© feita da soma das suas diversas partes e as deambulaƧƵes dos homens e das mulheres, atravĆ©s dos seus numerosos rios, unindo umas Ć s outras as suas margens, vĆ£o construindo os próprios angolanos, a partir dos diferentes grupos humanos que ocupavam o território que atualmente constitui o paĆs. Duas notas: corajosamente, o autor nĆ£o se esquece dos europeus que se angolanizaram; por outro lado, nĆ£o se esquece tambĆ©m dos angolanos (talvez o mais rigoroso seja dizer āafricanos que habitavam o hoje território angolanoā) que foram levados como escravos para as amĆ©ricas, sinalizando, por conseguinte, que a dimensĆ£o atlĆ¢ntica precisa de ser igualmente convocada, para entender plenamente a angolanidade.
EstÔ lÔ tudo, em Margens e travessias: os reinos tradicionais que existiam no atual território angolano, os conflitos e guerras entre eles, assim como os entendimentos e acordos a que eventualmente chegavam; o contacto com os europeus, a partir do século 15; as guerras de resistência opostas pelos diferentes reinos tradicionais à presença dos colonizadores; a implantação do colonialismo; o surgimento do moderno nacionalismo angolano; a guerra pela independência; a guerra civil e as invasões zairense e sul-africana antes da independência; a aventura socialista das primeiras décadas da independência; os conflitos internos no MPLA, partido que proclamou a independência em 1975, nomeadamente a intentona de 27 de maio de 1977 e a sangrenta repressão que se lhe seguiu; a guerra civil pós-independência; o fim do socialismo e a adoção do capitalismo; a corrupção; a securitização do regime; o crescente recurso à religião, como última e aparente tÔbua de salvação, diante da degradação geral.
Antes de terminar, tenho de assinalar o diĆ”logo entre Margens e travessias e O livro dos rios, de Luandino Vieira. A mesma temĆ”tica (a formação histórica de Angola e dos angolanos) e, sobretudo, a mesma metĆ”fora: o paĆs foi-se forjando ao longo da história graƧas Ć s deambulaƧƵes dos homens e mulheres que habitavam o seu território, atravessando e unindo as suas margens, entre lutas e acordos, encontros e desencontros, misĆ©rias e grandezas, como, afinal, a história de qualquer nação.
Outro ponto de contacto entre o novo romance de Boaventura Cardoso e a obra de Luandino Vieira Ć© a linguagem, nomeadamente a recriação literĆ”ria da oralidade (e nĆ£o, como bem nota TĆ¢nia Macedo, a sua simples mimese). Na verdade, tal proximidade Ć© igualmente visĆvel em livros anteriores do autor de Margens e travessias. Tal como Mia Couto, por exemplo, ao menos nos seus primeiros livros, Boaventura Ć© tributĆ”rio do estilo fundante de Luandino. Em ambos os casos, isso Ć© um elogio.
Atendendo a que escrevo esta coluna num jornal brasileiro, termino com uma sugestão (grÔtis) às editoras locais: não esperem por Paris, Londres ou Nova Iorque para publicar este livro.