šŸ”“ Um grande romance angolano

ā€œMargens e Travessiasā€ Ć© o primeiro romance Ć©pico da literatura angolana. Um livro que os leitores brasileiros precisam de conhecer
Ilustração: FP Rodrigues
29/11/2021

* O autor escreve segundo o acordo ortogrÔfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Acabo de ler o romance Margens e travessias, do angolano Boaventura Cardoso, publicado no fim de outubro em Portugal pela Guerra e Paz. Marco Lucchesi, conhecido, obviamente, dos leitores do Rascunho (afinal, Ć© presidente da Academia Brasileira de Letras), tem razĆ£o: Ć© um grande romance. Dele afirmou Lucchesi: ā€œBoaventura Cardoso produziu um alto romance. IndelĆ©vel o sentido poĆ©tico difuso que o atravessa. Ouve-se a mĆŗsica do pensamento, a expressĆ£o de uma lĆ­ngua serena e vibrĆ”tilā€.

O autor, que é contista e romancista, faz parte da geração de escritores angolanos que começou a publicar na década de 70, ainda antes da independência de Angola, sendo a maior parte da sua produção, entretanto, escrita e lançada depois do fim da colonização. Pouco conhecido no exterior, a não ser na Ôrea de estudos literÔrios africanos em diferentes países (o Brasil é um deles), é justamente considerado um dos mais importantes autores contemporâneos angolanos.

Ele estÔ longe de ser um escritor prolífico, como outros, talvez por pressão das editoras. O facto de, à semelhança de vÔrios escritores angolanos que começaram a publicar entre as décadas de 50 e 80, ter exercido diversos cargos políticos (ministro, governador provincial, embaixador e parlamentar) é, certamente, uma das razões para isso. Mas a principal razão é que se trata de um autor exigente consigo próprio. Margens e travessias, por isso, levou sete anos a ser escrito.

O resultado é um romance que, não sendo perfeito (haverÔ livros perfeitos?), jÔ nasce clÔssico. Nesse sentido, tem de ser colocado ao lado de títulos como Nós, os do Maculusso ou O livro dos rios, de Luandino Vieira; Mayombe, de Pepetela; e A conjura, de Agualusa. Outros romances angolanos alcançaram idêntico nível de realização literÔria, mas o que torna clÔssicos os títulos mencionados é o facto de terem a ver com a formação de Angola e dos angolanos.

Por essa razĆ£o, alguns leitores poderĆ£o considerar Margens e travessias um livro histórico. Eu prefiro afirmar que se trata de um livro sobre a história, na linha da leitura da professora Jurema Oliveira, da Universidade Federal do EspĆ­rito Santo, a qual afirmou que ā€œO discurso de Boaventura Cardoso tem como referente a História e as experiĆŖncias locais reatualizadas [sublinhado meu] na ficçãoā€.

A professora TĆ¢nia Macedo, da Universidade de SĆ£o Paulo (USP), uma das maiores conhecedoras das literaturas africanas de lĆ­ngua portuguesa, fez uma leitura entusiĆ”stica do novo romance de Boaventura Cardoso. Disse ela: ā€œA literatura angolana finalmente tem um Ć©pico que a representa magnificamenteā€.

Depois de assinalar que o romance de de Boaventura Cardoso conduz os leitores a uma Angola ā€œao mesmo tempo mĆ­tica e históricaā€, Macedo conclui: ā€œLivro instigante, graƧas Ć  sua atualidade, mas, sobretudo, em razĆ£o da sua inquestionĆ”vel qualidade artĆ­stica, Margens e travessias marca definitivamente a literatura angolanaā€.

O livro de Boaventura Cardoso Ć© muito bem construĆ­do. A história da formação de Angola Ć© contada a partir das numerosas viagens feitas pelas duas personagens principais – um soba, chefe tradicional, cooptado e ao serviƧo da modernidade e do respetivo sistema de poder; e uma espĆ©cie de feiticeiro sem idade (no romance, ele vive como que eternamente) – atravĆ©s dos vĆ”rios rios angolanos, passando de uma margem para outra, enquanto vĆ£o discorrendo (e informando os leitores) sobre os mais marcantes acontecimentos da história do paĆ­s, desde o perĆ­odo prĆ©-colonial atĆ© Ć  atualidade.

A metĆ”fora Ć© clara: Angola Ć© feita da soma das suas diversas partes e as deambulaƧƵes dos homens e das mulheres, atravĆ©s dos seus numerosos rios, unindo umas Ć s outras as suas margens, vĆ£o construindo os próprios angolanos, a partir dos diferentes grupos humanos que ocupavam o território que atualmente constitui o paĆ­s. Duas notas: corajosamente, o autor nĆ£o se esquece dos europeus que se angolanizaram; por outro lado, nĆ£o se esquece tambĆ©m dos angolanos (talvez o mais rigoroso seja dizer ā€œafricanos que habitavam o hoje território angolanoā€) que foram levados como escravos para as amĆ©ricas, sinalizando, por conseguinte, que a dimensĆ£o atlĆ¢ntica precisa de ser igualmente convocada, para entender plenamente a angolanidade.

EstÔ lÔ tudo, em Margens e travessias: os reinos tradicionais que existiam no atual território angolano, os conflitos e guerras entre eles, assim como os entendimentos e acordos a que eventualmente chegavam; o contacto com os europeus, a partir do século 15; as guerras de resistência opostas pelos diferentes reinos tradicionais à presença dos colonizadores; a implantação do colonialismo; o surgimento do moderno nacionalismo angolano; a guerra pela independência; a guerra civil e as invasões zairense e sul-africana antes da independência; a aventura socialista das primeiras décadas da independência; os conflitos internos no MPLA, partido que proclamou a independência em 1975, nomeadamente a intentona de 27 de maio de 1977 e a sangrenta repressão que se lhe seguiu; a guerra civil pós-independência; o fim do socialismo e a adoção do capitalismo; a corrupção; a securitização do regime; o crescente recurso à religião, como última e aparente tÔbua de salvação, diante da degradação geral.

Antes de terminar, tenho de assinalar o diÔlogo entre Margens e travessias e O livro dos rios, de Luandino Vieira. A mesma temÔtica (a formação histórica de Angola e dos angolanos) e, sobretudo, a mesma metÔfora: o país foi-se forjando ao longo da história graças às deambulações dos homens e mulheres que habitavam o seu território, atravessando e unindo as suas margens, entre lutas e acordos, encontros e desencontros, misérias e grandezas, como, afinal, a história de qualquer nação.

Outro ponto de contacto entre o novo romance de Boaventura Cardoso e a obra de Luandino Vieira é a linguagem, nomeadamente a recriação literÔria da oralidade (e não, como bem nota Tânia Macedo, a sua simples mimese). Na verdade, tal proximidade é igualmente visível em livros anteriores do autor de Margens e travessias. Tal como Mia Couto, por exemplo, ao menos nos seus primeiros livros, Boaventura é tributÔrio do estilo fundante de Luandino. Em ambos os casos, isso é um elogio.

Atendendo a que escrevo esta coluna num jornal brasileiro, termino com uma sugestão (grÔtis) às editoras locais: não esperem por Paris, Londres ou Nova Iorque para publicar este livro.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. Ɖ escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, ItĆ”lia, Cuba e Brasil, onde publicou a coletĆ¢nea de contos Filhos da PĆ”tria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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