O romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, livro sobre o qual todo o mundo já falou, mas nĂŁo Ă© redundante voltar a fazĂŞ-lo — a obra merece-o! —, foi o grande acontecimento literário da lĂngua portuguesa em 2020. Para comprová-lo, bastaria citar o facto de ter vencido, nesse ano, dois importantes prĂ©mios da nossa lĂngua comum: Jabuti e Oceanos, os quais se juntaram ao PrĂ©mio Leya 2018. Mas, alĂ©m dos prĂ©mios, que sĂŁo importantes, mas nem sempre significam tudo, Torto arado Ă©, sem sombra de dĂşvidas, um tremendo romance.
Li o livro de Itamar Vieira Junior — autor de quem nunca tinha ouvido falar — em março do ano passado, na minha casa em Luanda, depois de tê-lo comprado em Lisboa em fevereiro, quando regressava a casa depois de ter participado no encontro Correntes d’Escritas na cidade da Póvoa do Varzim. A minha curiosidade foi naturalmente suscitada pelo facto de o mesmo ter ganho o Prémio Leya no ano anterior. A isso acresce a circunstância de se tratar de um novo autor brasileiro, pois, sendo eu um apreciador da literatura brasileira, há muito que não lia nenhum dos seus autores mais recentes.
NĂŁo vou, esclareço, fazer uma recensĂŁo literária do romance de Itamar Vieira Junior. Outros, mais competentes do que eu, já o fizeram e, provavelmente, continuarĂŁo a fazer, inclusive em outros idiomas, que nĂŁo o portuguĂŞs, para os quais o livro já foi ou será, como Ă© previsĂvel, pelas suas enormes qualidades, traduzido.
Como mero leitor, tenho de confessar o meu profundo espanto, à medida que ia lendo o livro. Há muito que não lia um recente autor brasileiro, publicado a partir dos anos 80/90 do século passado, quando morei no Rio, que me desse tanto prazer. A propósito, gosto particularmente de uma palavra que conheci com Manuel Bandeira: alumbramento. Foi a minha impressão, quando terminei a leitura de Torto arado.
O Brasil que eu tinha na memĂłria há anos, desde que, ainda criança, lia as revistas Cruzeiro e Manchete, assim como a poesia de Jorge de Lima, Manuel Bandeira e JoĂŁo Cabral de Melo Neto e os romances de Jorge Amado, Graciliano Ramos e JosĂ© Lins do Rego, e que, durante a minha vivĂŞncia no paĂs, raramente encontrei na mĂdia mainstream (e, contudo, estava vivo nas relações sociais e pessoais), está todo no notável livro do baiano Itamar Vieira Junior.
Quando morei no Brasil, tive oportunidade de acrescentar Ă s minhas leituras anteriores outros extraordinários autores brasileiros, entre os quais menciono Ferreira Gullar, Moacyr FĂ©lix, Orides Fontela e Leminsky, na poesia, bem como Rubem Fonseca, JoĂŁo Ubaldo, Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Dalton Trevisan e Milton Hatoum na prosa, apenas para citar uns poucos. Entretanto, ao ler certos autores posteriores, deixei de sentir o Brasil que via nas ruas e nos meus contactos com os brasileiros, nas inĂşmeras e diferentes viagens que tive a oportunidade de fazer pelo paĂs. A cabeça desses autores estava (está) em Nova Iorque ou entĂŁo permanece enredada nos seus meros e muitas vezes diletantes exercĂcios.
Literatura, todos o sabemos, Ă© linguagem. Mas, se nĂŁo tiver vida (terra, carne, paixĂŁo, Ăłdio, luta, esperança), nĂŁo serve para nada. Em Torto arado, o Brasil real, em carne e osso (ou pelo menos um certo Brasil, mas que continua a ser fundamental no inĂcio do sĂ©culo 21, pois o paĂs está estruturado com base naquele tipo de realidade), Ă© a personagem central, para alĂ©m das suas personagens particulares. Pela parte que me cabe, o romance fez-me reencontrar a literatura brasileira que sempre apreciei.
Para mim, que procuro fazer da lição de Bakthin — “o conteúdo está na forma” — a minha bússola enquanto escritor, a estrutura tem de estar ao serviço da estória (esta depende, em termos de eficácia, daquela). É o que Itamar Vieira Junior faz em Torto arado: a construção, criativa e requintada, na qual a polifonia desempenha um papel decisivo, não oblitera a estória: realça-a.
Uma nota final, para dizer que o livro em causa nĂŁo Ă© apenas um acontecimento literário. Como todo o grande livro, Ă© tambĂ©m um acontecimento polĂtico.
A maioria dos crĂticos e leitores em geral (pelo menos aqueles que li atĂ© agora) tem realçado a resiliĂŞncia e a força das personagens femininas de Torto arado. Eu permito-me chamar a atenção para outro aspeto: no livro de Itamar Vieira Junior, os negros (quilombolas) falam de si mesmos na sua prĂłpria voz, sem precisarem de intermediários, por mais bem intencionados que estes sejam.
Nesse sentido, Torto Arado, escrito entre 2017 e 2018, antecipou as lutas que os negros de todo o mundo desencadearam em 2020, depois do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, para reescreverem a(s) narrativa(s) a seu respeito.
* O autor escreve conforme o acordo ortográfico e consoante a variante angolana da lĂngua portuguesa.