Ao acordar com o sino da igreja batendo, Ana nem chegou a contar as badaladas. Estava mesmo disposta a se levantar cedo. Sem ser por obrigação nem horários a cumprir. Nessa segunda-feira, tinha até vontade de festejar o campanário medieval que a despertava barulhento, logo ali, na exata altura da janela de seu quarto de hotel, do outro lado da viela estreita em que se sentira tão bem acolhida até mesmo pelas pedras centenárias. Queria a manhã inteirinha.
Já obedecera a uma agenda carregada nos últimos cinco dias. Agora, com o fim dos compromissos profissionais, pretendia aproveitar ao máximo os únicos momentos à toa disponÃveis, na folga que se dera. Por isso comprara a passagem de trem para o meio da tarde, preferindo ter menos tempo livre na chegada a Roma e então se deslocar direto da Stazione Termini para o aeroporto. Mas garantia a si mesma umas horas descompromissadas para agora explorar as ruas e becos da cidade onde trabalhara tão intensamente durante uma semana. Podia sair logo e caminhar a esmo por seus becos estreitos ou suas calçadas cobertas de arcadas, entre palácios e casarões em todos os tons de terra, descobrindo pequenas praças, largos inesperados, fontes surpreendentes, fachadas revestidas de glicÃnias floridas.
Não pretendia fazer compras. Mas como se livrara da maior parte da papelada que trouxera, Ana sabia que havia lugar na mala para se dar o presente de uma eventual descoberta irresistÃvel. E talvez o mercado ao ar livre que antes vislumbrara na vizinhança a tentasse com alguma delÃcia gastronômica transportável.
Nem sentiu o tempo passar. Quando deu por si, o estômago vazio lembrava que já era quase uma da tarde. Por sorte, estava perto do restaurante tão elogiado em que não conseguira lugar para jantar, por estar lotado nas duas tentativas que fez para reservar mesa. Mas agora, para um almoço de segunda-feira, quem sabe?
Deu sorte. Um jovem ajudante de garçom acabava justamente de fixar um cavalete junto à porta, anunciando o cardápio e confirmando que o Buca San Pietro estava aberto. Num sorriso que parecia espontâneo, o rapaz notou que ela diminuÃa os passos e lhe deu as boas-vindas, convidando-a a descer os degraus um tanto estreitos que levavam a um subterrâneo de teto abobadado e paredes de tijolinho aparente. Em uma delas, as estreitas janelas no alto davam para a rua, deixando ver os pés de algum eventual passante. Assim quebravam um pouco o fechamento daquele porão ou adega bem iluminado e convertido agora em amplo salão, com suas mesas cobertas por toalhas engomadas imaculadamente brancas, onde se dispunham louça clara, guardanapos em leque nos copos de pé e vasinhos com frésias coloridas à espera dos fregueses. Que ainda não haviam chegado.
No salão vazio, Ana foi encaminhada a uma mesa próxima à parede onde se situava a porta de entrada. Enquanto bebericava água e esperava pela meia garrafa do Sangiovese da casa, estudou o cardápio. Não queria nada complicado. Atenta à perspectiva de ainda ter pela frente uma viagem de trem a emendar com aeroporto e travessia aérea transatlântica, preferia não ter nada pesado no estômago. Escolheu um antipasto e uma massa leve. Ia se contentar com isso, mas percebeu nas sugestões do dia uns aspargos frescos à Bismarck. Depois de ouvir a descrição entusiasmada que lhe fez o garçom, deixou-se tentar pela perspectiva dos vegetais da estação com um ovo estalado por cima. Lembrou-se do pai, a dizer que não há refeição que não melhore quando vem coroada com um ovo frito. Sorriu para si mesma e achou que esse toque de primavera no prato não chegaria a comprometer sua escolha de uma refeição frugal.
Acabando de mordiscar um grissini, Ana percebeu que não estava mais sozinha no recinto. Enquanto estivera entretida com o cardápio, entrara mais alguém. Uma senhora de certa idade fora conduzida a uma mesa de canto, quase em frente à sua em diagonal, e agora dava instruções ao rapaz que a atendia. Alguns fios de cabelo grisalho lhe escapavam de um turbante bem definido sobre o rosto suave, quase sem maquiagem. Vestia um paletó de tweed sobre blusa e suéter, talvez agasalhada demais para o sol que brilhava lá fora, mas precavida para as surpresas climáticas da estação. De costas para a parede, seguiu com os olhos o movimento do garçom a se afastar com seu pedido. Na volta da mirada, deu com Ana olhando para ela. Cumprimentou a moça num aceno de cabeça quase imperceptÃvel.
Algo constrangida ao ser flagrada em sua observação curiosa, a jovem sorriu ligeiramente de volta, e logo tratou de se concentrar nos objetos de sua mesa, na taça com seu vinho perfumado e vermelho intenso, no primeiro prato que chegava.
Já pelo meio da refeição, quando começava a saborear os aspargos, apreciando sua rara explosão de sabor, aroma e consistência, se surpreendeu com a chegada do garçom, trazendo uma flute e uma garrafa de prosecco aberta.
— Aquela senhora a convida a brindar com ela — explicou, enquanto servia o espumante.
— Eu? Tem certeza? — estranhou Ana, para dizer qualquer coisa, um tanto sem jeito.
— É… Ela está celebrando algo muito especial, e não quer brindar sozinha. Além disso, só tÃnhamos uma garrafa grande, ela contou que vai fazer uma viagem importante, receia ficar um pouco tonta… Explicou que não queria desperdiçar o vinho nem tomar demais. Convidou nós dois para festejarmos com ela.
Fez uma pausa e completou:
— Eu expliquei que não posso beber em serviço…
Outra pausa e novo comentário:
— Então ela disse que gosta muito da ideia de que sejam duas mulheres celebrando. O brinde perfeito, disse.
Sem saber o que dizer, Ana deixou que o rapaz lhe enchesse a taça e a ergueu em direção à dama de ar refinado, com seu turbante a evocar uma certa elegância dos anos 1940, fazendo lembrar a Duquesa de Windsor ou Simone de Beauvoir. Sorriram ambas, levaram a bebida aos lábios. Em seguida, discretas e elegantes, não se olharam mais. Cada uma seguiu concentrada em seu próprio almoço.
Depois da sobremesa, café e conta, ao se preparar para sair do restaurante, Ana pensou em chegar perto da senhora mais velha e cumprimentá-la, agradecendo pela gentileza inesperada. Mas não a viu sentada em seu lugar, agora vazio embora marcado pelo blazer aberto no encosto da cadeira. O excesso de agasalho na certa fizera efeito e o calor a levara a se livrar de tanta lã. De qualquer modo, não estava em seu lugar, devia ter ido ao banheiro. Não era o caso de esperar que voltasse.
Já na rua, a caminho do hotel para recolher a bagagem que deixara na recepção, Ana viu algumas pessoas aglomeradas em frente a uma banca de jornal, falando alto e olhando as primeiras páginas expostas. Ia passar direto mas algo no vozerio do grupo chamou sua atenção e a fez diminuir o passo. As manchetes falavam da marinha dos Estados Unidos, junto a fotos do presidente Ronald Reagan e de navios de guerra.
A moça parou para ler as manchetes e ficou sabendo da grande notÃcia do dia: a Sexta Frota norte-americana avançava em direção à LÃbia pelo Mediterrâneo. O mar do meio da terra, quase doméstico, casa e pátria de gregos e troianos, campo lÃquido lavrado por fenÃcios, cartagineses e venezianos, cujas ondas ao longo dos tempos embalaram Ulisses e Marco Polo. Em terra firme, daà a pouco seu trem avançaria pelo meio de campos sólidos, plantados de aspargos e alcachofras, olivais, vinhedos e trigais. Há quem semeie a guerra e quem plante alimento, pensou. Como os dessa refeição delicada que acabara de celebrar.
Comprou um jornal para ler no trem. Ao recebê-lo, dobrado, viu no canto de baixo da primeira página uma notÃcia menor, dando conta de que na véspera, em Paris, Simone de Beauvoir morrera de pneumonia.
Ana teve um sobressalto. Sabia que seu horário estava quase ficando apertado para chegar à estação de trem com uma certa folga, como pretendera. Mas num vislumbre de mistério, quase num arrepio, lhe ocorreu que talvez tivesse acabado de compartilhar um brinde encantado com a dama do turbante, saudando misteriosa partida para alguma viagem muito mais longa que a sua.
Não podia deixar de conferir.
Deu meia volta e retornou rapidamente sobre os próprios passos, em direção ao restaurante de onde acabara de sair. Desceu apressada os degraus que levavam ao salão. Estava deserto. Tanto sua mesa quanto a da velha senhora estavam perfeitamente arrumadas, à espera de fregueses, sem qualquer sinal de que tivessem sido ocupadas. Procurou o garçom. Veio lá de dentro da cozinha um velho, de guardanapo pendurado no antebraço, andando bem devagar, arrastando os pés em passos curtos e quase hesitantes. Em resposta a suas perguntas, teimava em responder que eles tinham acabado de abrir a casa, não havia nenhuma senhora a quem tivessem atendido, nenhum cliente ainda fora servido.
— Mas acabei de almoçar aqui. Aliás, uns deliciosos aspargos à Bismarck..
— Desculpe, a signorina deve estar confundindo alguma coisa. Não temos isso em nosso cardápio. Pode ver.
E enquanto lhe estendia a carta, completou em tom de brincadeira:
— E, se não me engano, Bismarck era um polÃtico alemão, um general. É o nome de um homem de guerra, não de uma delÃcia da terra como os aspargos…
Não adiantava discutir. Nem com ele nem com o cardápio, claramente omisso nesse ponto.
No máximo, Ana podia rezar mentalmente uma ave-maria pela alma de Simone, enquanto se apressava na volta ao hotel, quase correndo, para não perder a hora do táxi já contratado para levá-la à estação.
Como uma menina bem comportada.