Sim, sem dúvida, 2020 foi um ano péssimo para a Humanidade – embora, querido/a leitor/a, por mais implausível que possa parecer, não foi o pior ano da minha vida, mas disso não falarei aqui, pois “há feridas como nódoas que não saem mais”, conforme os versos geniais de um dos maiores compositores da minha geração, Luizinho Lopes, que, caso você não conheça, não perca a oportunidade de ouvir aqui.
Mas, como ia dizendo, 2020 é uma daquelas datas que ficam como marcos históricos – o século 20 prodigalizou-se delas, mas o século 21 parece querer superá-lo a qualquer custo, tendo começado com o atentado terrorista contra as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, lembra? Pois, então, mas, para não dizerem que sou um pessimista contumaz, afirmo: se 2020 foi um ano trágico para o Brasil, 1956 foi um ano radioso! (Pronto, agora vão me acusar de alienado, ai, ai, ai…).
Acompanhe-me, leitor/a amigo/a: o ano de 1956 começou com a posse, em 31 de janeiro, de um descendente de ciganos, Juscelino Kubitschek, na presidência da República. (Curiosamente, ele não foi o primeiro presidente de origem cigana que tivemos, mérito que cabe a Washington Luís). O governo JK insere-se, na minha humilde opinião, entre os mais importantes da nossa triste história republicana, ombreado, talvez, apenas pelo incontornável Getúlio Vargas e pelo contemporâneo Luiz Inácio Lula da Silva – e, antes que me questione, amoroso/a leitor/a, estou me referindo a resultados, não a métodos.
Apesar das várias tentativas de golpe – os militares contestaram sua eleição, sua posse, sua administração, numa prévia do que seria 1964 –, Juscelino Kubitschek chegou ao final do mandato coroando o período de seu governo como o mais otimista e eivado de felicidade de toda a nossa história, a chamada Era JK. E não é para menos: em 1956 ele criou a Novacap, estatal responsável pela construção de Brasília, e em 1956 foram produzidos os primeiros automóveis nacionais, a Romi-Isetta e a perua DKW, dando início efetivo ao processo de industrialização que transformaria totalmente a economia do país.
Continuemos. No dia 7 de setembro de 1956, um menino de quinze anos apelidado de Gasolina entrou em campo, no estádio de Santo André, no ABC paulista, vestindo pela primeira vez oficialmente a camisa do Santos F.C., para disputar a partida contra o time da casa, o Corinthians Andreense. O time visitante venceu o jogo por 7 a 1, tendo Gasolina marcado um gol, o primeiro de sua longa trajetória, consagrada com o nome de Pelé.
Em dezembro de 1956, um grupo de artistas plásticos, escultores, desenhistas, poetas e ensaístas organizou a Exposição Nacional de Arte Concreta, “primeiro encontro nacional das artes de vanguarda realizado no país, tanto no que se refere às artes visuais quanto à poesia concreta”, segundo um dos idealizadores e participantes do evento, Décio Pignatari.
Lançado no ano anterior, mas discutido e celebrado ao longo de 1956, o filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, inspirado no movimento neorrealista italiano, tornou-se o ponto de partida para a concepção de uma nova visão de cinema, que redundaria no chamado Cinema Novo, que, anos mais tarde, colocaria Glauber Rocha entre os mais importantes cineastas do mundo.
Da mesma maneira, em algum momento de 1956, João Gilberto, em visita à família em Juazeiro, Bahia, inspirado, segundo Ruy Castro, “no ritmo das cadeiras das lavadeiras, quando elas passavam equilibrando as trouxas de roupas na cabeça”, compôs Bim-bom, início de uma forma nova de compor música, que ficou conhecida como bossa nova, único dos nossos estilos musicais consumido, reproduzido e copiado mundo afora…
Também em 1956, a gravadora Odeon lançou em vinil a trilha da peça teatral Orfeu da Conceição, escrita pelo poeta Vinicius de Moraes, musicada pelo então compositor em começo de carreira, Antônio Carlos Jobim, estabelecendo uma das mais frutíferas parcerias da música popular brasileira.
Bom, no campo da literatura, então, 1956 foi inacreditavelmente profícuo, com o lançamento de algumas das obras fundamentais para as letras brasileiras. Pois, senão, vejamos: o cronista Fernando Sabino estreou na prosa de ficção com o romance O encontro marcado; Mário Palmério surgiu com Vila dos Confins e Campos de Carvalho com A lua vem da Ásia; Geraldo Ferraz publicou Doramundo, Bernardo Élis lançou O tronco e Samuel Rawet, Contos do imigrante. Mas o ano seria mesmo de Guimarães Rosa, que, além de Grande sertão: veredas, publicou as novelas enfeixadas em Corpo de baile.
JK tinha como bordão “cinquenta anos em cinco” – 1956 foi apenas o primeiro ano de seu governo…
Luz na escuridão
Mário Araújo, romancista, contista, cronista: “No livro Verão, J. M. Coetzee diz que a África do Sul se tornou ‘um lugar barulhento e raivoso’. Seria uma possível epígrafe para o romance que estou escrevendo sobre uma grande briga entre vizinhos. A história se passa em Brasília, em 2010, e começa no dia em que o Brasil perde para a Holanda, pela Copa do Mundo. Nesse jogo, a seleção amarga uma virada tão frustrante quanto certos acontecimentos da política nacional, que irão servir de fundo à trama. Depois de assistir à partida num restaurante, Roberto, recém-chegado à cidade, volta ao seu apartamento, onde está arrumando a mudança que recebeu há poucos dias. Ele terá dificuldade para se adaptar à vida na capital do país. Para fugir de uma realidade que considera desoladora, dedica as horas vagas a organizar uma longa playlist no I-Tunes. Cada canção é escolhida por evocar com nitidez um pedaço do seu passado, e é assim que o personagem se revelará ao leitor. Enquanto constrói esse memorial sonoro, Roberto ouve os ruídos que o levarão ao confronto com o vizinho do andar de cima. Enquanto tento dar forma a essas ideias, estou trabalhando na divulgação do meu primeiro romance, Breu”. Este livro pode ser adquirido aqui.
Parachoque de caminhão
“É grande infortúnio do homem só alcançar a razão para perder a inocência do espírito.”
Ludwig Tieck (1773-1853)
Antologia pessoal da poesia brasileira
José Albano
(Fortaleza, CE, 1882 – Montauban, França, 1923)
Soneto I
Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.
Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.
Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noute e dia,
E só com saudades me atormento;
Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento,
Senão de ter cantado o que sofria.
(Rimas, 1948)