🔓 Tentando ser felizes

Qualquer manifestação progressista é encarada como um desafio civil e uma vitória contra o atual estado de coisas
Ilustração: Miguel Paiva
01/09/2022

O Brasil desarmado conta os dias para que o pesadelo público seja enxotado do poder supremo pelo voto nas urnas de 2 de outubro. Quiçá aquele dia poderá, de tão expressivo, também abreviar uma espera que será longa se houver o segundo turno eleitoral. Nas redes sociais multiplicam-se os apelos para que o calendário se apresse todos os dias, como se nossa vontade pudesse manipular o tempo Chronos em sua inexorável marcha, passo a passo, desenvolvendo os segundos, minutos e horas.

A verdade é que o Brasil, aquele Brasil que preza a democracia e se considera desarmado do ódio, da usura, dos preconceitos, das discriminações, tem pressa.

Os indícios dessa pressa vão se refletindo em momentos do tempo Kayrós, o das oportunidades efêmeras, onde expressões e atos, por menores que sejam, ganham enorme proporção ao repudiarem momentaneamente a disseminação diuturna e abjeta da necropolítica que contaminou desde as relações familiares até parcelas enormes da população brasileira. Manifestações de ícones da cultura pop até as falas e sentenças de altos magistrados a favor da democracia e contra a volta de regimes sombrios viralizam imediatamente nas redes. Qualquer manifestação progressista é encarada como um desafio civil e uma vitória contra o atual estado de coisas, como que na expectativa de que determinada efemeridade pudesse vencer, por si só, as autoridades que nos desgovernam.

O Brasil desarmado quer se livrar da convivência diária com as barbáries ditas e protagonizadas por altos poderes da república que, exaltando a morte e louvando a brutalidade, semeiam discórdias e o aniquilamento do outro. O Brasil desarmado quer a volta do debate de ideias, da ação que constrói, da política que limita o antagonismo no âmbito do verbo e não da mão armada.

O Brasil desarmado conjuga o verbo esperançar, aquele da resistência ativa, que, ao repudiar a violência política, a combate pragmaticamente construindo alternativas ao desânimo, à inação e à destruição das frágeis instituições que ainda esboçam a república que poderemos ser.

O Brasil desarmado arma-se dos mais diversos tipos de expressões culturais — literaturas, músicas, teatros, slams, saraus, pinturas, fotografias, entre tantas — para tentar desarmar o Brasil armado, aquele que capitulou ao ódio de classes, ao ódio à ciência, ao ódio à educação e à cultura. Com ações pontuais e contínuas, que nunca esmorecem, o Brasil desarmado procura seus conterrâneos armados para tentar convencê-los de que o melhor caminho se percorre sem o amargor da irracionalidade e o sufocamento da ganância neoliberal privada e corporativa.

O Brasil desarmado, ao caminhar com a amorosidade permeando suas ações, é também transformador da realidade dura que lhe é imposta pela história excludente e elitista deste país. O seu agir, na maior parte das vezes, está longe de ser romântico ou apegado a proselitismos variados. A firmeza dos propósitos e o trabalho duro de construção contêm fortes valores e símbolos atemporais, mas o sublime é apenas o suporte para a difícil tarefa de construção de espaços reais e substantivos onde se exerce a fruição das liberdades e dos conhecimentos que lhes são negados pelo presente desgoverno. Não me canso de dar como exemplo o trabalho realizado por dezenas e dezenas de bibliotecas comunitárias que alimentam o corpo e o espírito das pessoas de seus territórios, cuidando e lutando pragmaticamente contra a fome, pela boa saúde, pela emancipação da comunidade e tendo por alicerce a educação e a cultura.

O Brasil desarmado constrói e empreende, na maior parte das vezes de maneira muito diversa do empreendedor concebido pelo alto capital, aquele que exalta o individualismo e a meritocracia conseguindo como resultado apenas a frustração do “homem Uber”, retrato final do trabalho precarizado e desumano subsidiado pelo neoliberalismo imposto ao país.

Coletivismo, compartilhamento, camaradagem, todas essas formas de ajuda mútua e cooperação produtiva e racional são visíveis e frequentes quando olhamos empreendimentos sociais diversos, desde as comunidades de assentados que manejam o campo ecologicamente em agriculturas sustentáveis até os empreendimentos editoriais inovadores que proliferam nas franjas de nossas metrópoles. Como exemplo, busquem na Internet as publicações agregadas em torno da Câmara Periférica do Livro, que é o núcleo organizado de editoras e selos de publicações que desenvolvem empresas editoriais nas periferias de São Paulo. O desenvolvimento de economias solidárias, empreendedoras, também fazem parte do cotidiano do Brasil desarmado.

Muitas vezes não conseguimos enxergar esse Brasil sem armas e sem ódio e sua potência transformadora, talvez porque ele acontece todos os dias e parecem ser ações corriqueiras e miúdas. Outras vezes o consideramos excessivamente frágil e incapacitado para realizar as profundas transformações sociais que a nação necessita com urgência constante por ser um dos países com maior desigualdade no mundo. E, quase sempre, as bolhas das classes mais favorecidas se surpreendem quando esse mesmo país, silencioso e incapaz, provoca rupturas ou encurrala o que parecia ser uma sólida barreira dos opressores.

Desde os movimentos que debilitaram a ditadura militar de 1964, como as mobilizações estudantis dos anos 70 e as greves operárias no ABCD paulista no mesmo período, impulsionando nacionalmente lideranças operárias e trabalhadores urbanos e rurais que criaram centrais sindicais e o Partido dos Trabalhadores, tivemos muitas demonstrações dessa força que tem erupções pontuais e significativas na vida do país e que exercem pressões políticas e sociais definidoras de rumos. É de se lastimar que apenas uma ínfima parte dessa energia cívica seja aproveitada pelos partidos políticos que temos. Garroteadas por uma história política patrimonialista, as lideranças partidárias continuam agindo na preservação de velhas formas de poder e mando, acomodando dinastias familiares aos cargos eletivos, mantendo o temor de transformações mais profundas nas velhas estratégias de desenvolvimento e formação de cidadania.

Mas ouso pensar e dizer que essas acomodações preservadas com zelo e temor começam a se deteriorar. A profunda crise de representatividade e a dura realidade da fome e da brutalidade política desenham, nas reações que provocam, novos atores, que eu prefiro chamar de autores, porque são criadores de novos olhares e ações na resistência. De maneira incipiente, vislumbro movimentos setoriais, de gênero, ou ainda circunscritos a grupos ou temas específicos ou territorialmente identificados, que começam a perceber que há uma luta comum a ser encampada e que há necessidade de se (re)discutir a política com a centralidade que ela representa para nossa (sobre)vivência enquanto sociedade e país.

Vozes negras, femininas, indígenas ganham força e respeito pelo que substantivamente representam e pela altura e dignidade que falam à nação e ao mundo. Pouco a pouco rompe-se o silêncio em um percurso não concedido, mas conquistado por essas vozes autorais. Talvez estejamos ainda longe de um país emancipado pela força daqueles que produzem sua riqueza material e cultural, mas seguimos arrancando do cruel capitalismo, que as elites centenárias impuseram ao país, conquistas que jamais seriam concedidas sem a energia das lutas sociais cotidianas. Seguimos tentando ser felizes.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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