O mundo contemporâneo — e particularmente o contexto brutal do nosso paĂs — nĂŁo está sendo construĂdo por escolhas de cidadĂŁos livres, mas por encruzilhadas que nos submetem.
Pela Ăłtica da polĂtica pĂşblica predominante nesses dias de extrema violĂŞncia, pelas ações e omissões dos que nos governam, a sensação Ă© de que essas encruzilhadas caem sobre nĂłs num processo contĂnuo de fomento Ă desesperança por conta da truculĂŞncia, da irracionalidade, da crueldade dos raciocĂnios e ações que nos atingem. Exemplos nĂŁo faltam nesse princĂpio de maio: a omissĂŁo e o negacionismo governamental na pandemia ceifaram 422.418 vidas e infectaram 15,2 milhões de brasileiros. Ă€s barbáries governamentais na pandemia, junta-se a Ăndole miliciana dos atuais chefes do poder na sustentação a ações policiais alicerçadas no extermĂnio e nĂŁo na repressĂŁo legal ao crime, obrigação do braço armado do Estado. A comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, acaba de vivenciar um banho de sangue — 27 execuções.
Diante de um poder central negacionista e idólatra da violência, a população vê-se frente às encruzilhadas impostas por uma sociedade deformada pela desigualdade estrutural, que cria e preserva a ignorância, e por uma tradição histórica não democrática, distante do ideal buscado por legisladores progressistas que projetaram uma sociedade mais equânime, como aquela esboçada para dar seus primeiros passos na Constituição de 1988.
Apesar da dor das enormes perdas pessoais e coletivas, o trauma da pandemia pode nos abrir para um exame profundo de nossas escolhas livres e conscientes e das encruzilhadas impostas. Apesar da complexidade de nossa sociedade, nĂŁo Ă© preciso muito esforço para compreender quais sĂŁo os perĂodos histĂłricos nos quais tivemos escolhas ou encruzilhadas: essas Ăşltimas ocorrem invariavelmente em perĂodos em que a força da violĂŞncia estatal se sobrepõe Ă ideia original de administração pacĂfica dos conflitos que caracteriza a atividade polĂtica.
Acossados por mais um perĂodo de autoritarismo, agora associado ao nefasto neoliberalismo, aqui apelidado de “Posto Ipiranga”, vivenciamos ininterruptamente violações tanto Ă Constituição quanto Ă obediĂŞncia de procedimentos jurĂdicos legais e afeitos Ă prática democrática.
Se esses tempos banhados pelo sangue de milhares de brasileiros vitimados pelo negacionismo e pela violĂŞncia conseguirem abrir uma brecha para reflexĂŁo das lideranças civis no amplo espectro polĂtico do centro Ă esquerda, talvez consigamos lidar melhor com as escolhas que pudermos fazer nas polĂticas pĂşblicas de desenvolvimento sustentável do Brasil. É preciso refletir.
Se os tempos presentes estĂŁo difĂceis, se já tivemos tempos piores, esses fatos nĂŁo anulam as escolhas equivocadas das elites polĂticas e econĂ´micas em perĂodos de melhores ares do Estado. Analisemos dois momentos das dĂ©cadas de 1980 e 1990.
O poema do grande Affonso Romano de Sant’Anna perguntava em 1980: “Que paĂs Ă© este?”, desnudando um Brasil que precisava ter escolhas melhores nos estertores da ditadura militar de 1964. Essa mesma pergunta ganharia nova força dois anos apĂłs empossado o primeiro presidente eleito pĂłs-autoritarismo: em 1987 a banda LegiĂŁo Urbana lançava com sucesso “Que paĂs Ă© esse?”, clamando por um paĂs “sem sujeira pra todo lado”.
Na esteira das exigĂŞncias da sociedade, a “Constituição Cidadã” de 1988, batizada por Ulysses GuimarĂŁes, criou avanços institucionais que colocaram a nação em um patamar mais elevado na polĂtica democrática, buscando saldar dĂvidas sociais com a maioria da população em muitos dos seus aspectos.
Era de se esperar que após o trauma social de 21 anos de ditadura, encurralados que fomos em encruzilhadas autoritárias do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, as escolhas pudessem ter a virtuosidade de caminhos iluminados pela ciência, pela educação, pela cultura, pela literatura e as artes.
No entanto, a mesma elite que deu sustentabilidade Ă Constituinte reformadora, fez escolhas polĂticas contraditĂłrias nessa mesma dĂ©cada ao permitir que os operadores policiais e militares dos porões da ditadura começassem a cultivar seus tentáculos arbitrários e se imporem paralelamente ao poder pĂşblico em muitas comunidades brasileiras, notadamente no Rio de Janeiro. Refiro-me Ă formação das milĂcias e baseio-me no excelente livro de Bruno Paes Manso, A repĂşblica das milĂcias — dos esquadrões da morte Ă Bolsonaro, editado pela Todavia em 2020.
Junto Ă Nova RepĂşblica, gestava-se o horror do crime organizado que pouco a pouco chegaria aos poderes legislativo e executivo, tornando o paĂs campeĂŁo da taxa de homicĂdios no mundo em pleno regime democrático. As consequĂŞncias dessa escolha, acobertamento de crimes contra o Estado de Direito e pela impunidade dos crimes do perĂodo ditatorial e seus assassinos, fez crescer o ovo da serpente que infalivelmente acabou rompendo sua casca no curso da histĂłria, parindo monstros como aqueles com que hoje convivemos.
Quando tratamos de escolhas, falamos de caminhos a construir, e naquele mesmo perĂodo histĂłrico, em que se podia escolher os rumos do Brasil, um arrojado programa de polĂtica pĂşblica foi desenhado pelo poeta, autor de “Que paĂs Ă© este?”. Affonso Romano de Sant’Anna assumiu de 1990 a 1996 a presidĂŞncia da Fundação Biblioteca Nacional. Tive o privilĂ©gio da amizade de Affonso, e conheço essa histĂłria desde os tempos em que dirigi o Plano Nacional do Livro e Leitura, em 2006, mas sua saga pela implantação de polĂticas pĂşblicas baseadas num trĂptico sistĂŞmico — biblioteca/livro/leitura —, pode ser lida no seu excelente e saboroso livro Ler o mundo, editado pela Global em 2011. Para o tema aqui tratado, o Ăşltimo capĂtulo — Biblioteca Nacional: uma histĂłria por contar — Ă© fundamental.
Aquela proposta de polĂtica demonstrou Ă s elites dirigentes uma escolha diametralmente oposta de paĂs daquele que fomentou o surgimento das milĂcias. Ao criar o Sistema Nacional de Bibliotecas PĂşblicas e o Proler, Affonso projetou um paĂs leitor aos trĂŞs presidentes da repĂşblica que serviu e aos seis ministros da cultura com quem conviveu. AlĂ©m de suas tentativas em fazer da leitura e bibliotecas uma ação polĂtica de todos os ministĂ©rios da repĂşblica, perspectiva que retomamos quando da implantação do PNLL, ele trabalhava com a ideia de que as bibliotecas e a formação de leitores teriam o potencial de transformação necessária ao paĂs que querĂamos e que se tornaria distante daquele de seu poema — o paĂs do “ajuntamento”, do “regimento”, do “confinamento”.
A ação polĂtica de Affonso e sua equipe se mostrou virtuosa, ao estilo das grandes propostas formadoras do paĂs realizadas por intelectuais que, como ele, nĂŁo apenas opinaram sobre as relações de cultura e poder, mas se dispuseram a enfrentar a “hidra de várias cabeças que Ă© a administração pĂşblica”, como escreve Ă página 204 do livro citado.
Duas escolhas, dois caminhos opostos num mesmo perĂodo histĂłrico. O da milĂcia frutificou o seu horror. O de Affonso, abortado em 1996, em perĂodo democrático com um intelectual presidente.
Daqueles anos 80 e 90, a escolha pelas opções que fomentaram as milĂcias e que tornaram possĂvel o projeto de implantação de um Estado miliciano no paĂs foi incontido e fomentado. A saga de Affonso, que retomamos em 2006 com o PNLL e com a Lei 13.696/2018 da PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita, definhou tambĂ©m neste novo perĂodo. AtĂ© hoje as escolhas de nossos dirigentes polĂticos, com o consentimento das elites econĂ´micas, preservam a violĂŞncia e negligenciam a palavra. Ao tratarem cultura e educação como supĂ©rfluos, detonaram o florescimento da cidadania.
É na persistĂŞncia dos que nĂŁo aceitam a tirania e a violĂŞncia como modo de vida que se constrĂłi no cotidiano o desenvolvimento baseado na equidade e na justiça social. Aos dirigentes polĂticos, do centro Ă esquerda, novas escolhas de construção ou de cruzamentos de Ăłdio se apresentarĂŁo quando passarem as trevas. OusarĂŁo transformar a triste realidade ou continuaremos a nos perguntar: “Que paĂs Ă© este”?