Procurei, sem saber, deuses e deusas pelas ruas da cidade.
Nada encontrei, apesar do reencontro (…)
Há sempre uma queixa, um questionar constante Ă sabedoria de um Deus que porventura nos protege de algo invisĂvel aos olhos. Há um sabor especial quando a criatura discute, diverge do Criador. Afinal, nĂŁo somos feitos Ă imagem e Ă semelhança deste Ser, pois ter um corpo fĂsico, como nĂłs o temos, que ama e que sofre na pele, eleva a potĂŞncia da dĂşvida, e a imagem nunca será igual ao original, mas sim uma mera representação imperfeita vista ao espelho. Ao lado da fĂ©, a incerteza Ă© uma extensĂŁo ubĂqua, e por isso questionar, conversar, discutir, ralhar com este Deus, talvez nos outorgue algo da divindade, deste sopro que nos habita, e que revela o quĂŁo frágil somos: pequenos deuses perante as intempĂ©ries.
A escrita deste Criptopórtico, de Ruy Ventura, uma obra que reúne mais de trinta anos de vida poética, segundo o próprio, é um questionamento perante a incompreensão do Todo, e por isso um lado confessional, uma religiosidade à maneira de Jó, aquela que ralha com Deus. Uma religiosidade que se espelha na visão mais franciscana, pois procura ver, no Criador, a criatura.
O poeta, na sua linguagem, por vezes algo cifrada, desvela e esconde alternadamente as suas inquietudes. E neste jogo de alternância, procura equilibrar o edifĂcio que está visĂvel aos olhos de todos. O tĂtulo desta coletânea dá o mote daquilo que pretende o poeta, já que um criptopĂłrtico serve — na verdade arquitetĂłnica —, para suster estruturas localizadas na superfĂcie, mas que nĂŁo Ă© visto, pois que se encontra imerso na paisagem.
“A minha poesia Ă© um edifĂcio escondido que me sustenta, e que propõe ao mesmo tempo estruturas verbais, estruturas imagĂ©ticas que podem ajudar a suportar o mundo (…) para que este mundo nĂŁo resvale pela encosta (…) e seja um mundo mais equilibrado (…) agora se se consegue, ou nĂŁo, esta Ă© que Ă© a questĂŁo”, diz Ruy Ventura.
Olhar nĂŁo basta. Olhar nĂŁo Ă© ver. Se quisermos ver, Ă© preciso fazer-se Ă estrada, procurar, esmiuçar, sentir no calabouço. Assim se mostra este livro, que convoca muitos outros livros, Ă maneira de um criptopĂłrtico. Quem olha o tĂtulo na capa, Ă superfĂcie, nĂŁo vĂŞ o que se esconde nas suas páginas. O leitor precisa mergulhar fundo, caso queira respirar, descobrir o que os seus textos revelam. E Ă© de revelação que falamos. Um termo tĂŁo caro Ă religiĂŁo e Ă curiosidade humana.
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