🔓 Ressentimento, identidade e enclausuramento

As lutas sociais, quando restringidas à afirmação identitária de grupos individuais, não geram uma espécie de “apartheid politicamente correto”?
Ilustração: FP Rodrigues
09/05/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

O atual caráter fragmentário, fechado e excludente das lutas sociais deve preocupar aqueles que verdadeiramente pugnam pela construção de sociedades diversas, plurais, democráticas e justas, mais do que simplesmente procurar reparação para os grupos ou comunidades a que pertencem. Tal busca de reparação faz parte da luta em questão, mas esta última não se esgota nela. O objetivo último de todas as lutas sociais legítimas deve ser restaurar a autêntica humanidade, que, na sua essência, é una, quaisquer que sejam os traços identitários que assumem. A tendência para limitar as lutas sociais à afirmação e defesa de identidades particulares, em particular quando isso é pessoalizado, deve ser reconhecida como um obstáculo à construção de uma humanidade plena.

As afirmações identitárias, obviamente, são necessárias, pois é próprio das forças dominantes e exploradoras menorizar, discriminar e reprimir as identidades historicamente subalternas, mas as forças radicalmente democráticas não deverão dar-se por satisfeitas com o reconhecimento e afirmação, maior ou menor, por parte do chamado sistema, das referidas identidades (ou melhor, de alguns representantes individuais de tais identidades), pois tal reconhecimento e afirmação nunca serão plenos sem uma alteração profunda das estruturas do próprio sistema.

Sejamos claros: o atual sistema hegemónico (planetariamente) chama-se capitalismo, que, do ponto de vista social, se baseia (ou promove, como quisermos) na diferenciação entre os diferentes grupos conforme a sua riqueza, mas também, consoante os contextos, de acordo com outros fatores, como, só para dar um exemplo, “raça” (cor da pele); mas esses outros fatores estão longe de ser estruturantes ou definidores do sistema capitalista, pelo que, no que interessa ao presente artigo, não basta a existência de milionários negros (e muito menos a possibilidade de uma celebridade negra ser capa da Vogue) para eliminar as desigualdades sociais e até, eventualmente, o próprio racismo anti-negro.

O que, antes de mais nada, explica a necessidade das afirmações identitárias é um sentimento inerente à natureza humana: o ressentimento. Lembro aqui um ditado português: “Quem não se sente não é filho de boa gente”. Ou seja, é impossível esquecer todas as políticas e atos atentatórios da dignidade humana praticados, ao longo da história universal, pelos grupos, classes e nações dominantes contra os “outros” (os negros, os povos originários, os colonizados, as mulheres, os homossexuais e tantos outros). Como negar a todas essas vítimas o direito ao ressentimento? Não tenho dúvidas: o ressentimento é o primeiro passo na luta pela justiça.

A relação entre ressentimento e identidade inicia-se com a menorização, a desumanização e até a coisificação, por parte dos dominadores, do “outro” dominado, subjugado e explorado. Como no caso da escravidão e do racismo, esse processo pode chegar à negação e ao vilipêndio das próprias características fenotípicas das vítimas. Justa e legitimamente ressentidos por causa do búlingue histórico de que foram e são alvo há séculos, os negros (principais, embora não únicas, vítimas do racismo universal) precisavam e precisam de começar por valorizar essas características. Movimentos e campanhas pelo resgate da beleza negra e de afirmação do orgulho negro continuam a fazer sentido ainda hoje, sem esquecer, entretanto, os contextos em questão. O mesmo se diga das ações destinadas a trazer à luz do dia as enormes contribuições negras ao desenvolvimento universal, em todos os campos.

Isso é uma coisa. Outra é limitar a luta por uma sociedade diversa, plural e justa para todos à afirmação identitária de cada grupo, mesmo em condições de plena igualdade. Não seria isso uma espécie de “apartheid politicamente correto”?

A verdade é que nos confrontamos, hoje, com certas teses segundo as quais, no limite, cada grupo deve falar por si próprio, sendo vedado aos outros qualquer manifestação de empatia e muito menos a possibilidade de participar conjuntamente nas lutas sociais levadas a cabo por grupos de que não sejam originários. Trata-se de uma grotesca distorção do conceito de “lugar de fala”, que, pela parte que me cabe, entendo como a defesa do direito inalienável das vítimas falarem por si próprias, até porque só elas possuem um conhecimento direto, vivido e pessoal dos seus problemas. Mas esse não pode ser um direito “exclusivo”, sob pena de rasurar sentimentos, possibilidades e manifestações definidoras da humanidade em geral, a que todos pertencemos, como empatia, solidariedade e entre-ajuda (sem que aqueles que o forem tenham necessidade de pedir desculpas por serem brancos, homens e heterossexuais).

Duas notas, a propósito: a primeira é que, a fim de permitir que as vítimas ocupem plenamente o seu lugar de fala e discutam com os opressores em pé de igualdade, é imprescindível unificar visão identitária e visão de classe, para que aquelas tenham condições (educação, renda, etc.) para isso; a segunda é que a crescente e contínua fragmentação e individualização das lutas sociais a que assistimos, reproduzindo, aparentemente, o mundo solitário das tecnologias de comunicação, apenas serve à velha estratégia das classes e nações dominantes, a saber, dividir para reinar.

O grande pensador brasileiro Muniz Sodré — que, mais do que um teórico da comunicação, como é comummente conhecido, é um sociólogo e um filósofo — chama “enclausuramento” a essa distorção do conceito de “lugar de fala”. Assim, ele caracteriza aquilo que chama o “enclausuramento do lugar de fala” como “a não abertura à fala do outro”, ou seja, “estar preso em seu próprio lugar”. A pergunta, óbvia, é: num quadro de polarização generalização, de confrontação irredutível, de ausência de diálogo entre os vários grupos e interesses, tal como a humanidade parece viver neste momento, como resolver os conflitos? Só mediante uma solução de força, claro. Mas, tratando-se de conflitos culturais e civilizatórios, há que dizer, com Sodré, que isso não resolve tal tipo de problemas.

Por isso, diz ele:

É preciso abrir espaço para a dúvida do outro, ainda que essa dúvida venha forrada por algum preconceito. (…) Então, abrir o lugar de fala não é ser fraco, leniente. É querer dar lugar à fala do outro. Se a fala do outro é verbal, você tem de escutar. Por isso, eu acho que dizer que “só quem fala de negro é negro é negro” é um enclausuramento. Pode falar equivocadamente, mas, ao escutar, você abre espaço para o diálogo se estabelecer. Você “lacra”, você “cancela”, porque você não suporta o lugar de fala do outro. Se você não suporta o lugar de fala do outro, a sua posição é fraca.

Como intelectual africano, nascido e vivido num país que há séculos, por força dos factos da história, é aberto ao mundo, certos exclusivismos identitários, assim como essa tendência para o enclausuramento, incomodam-me. Há um conceito filosófico africano que pode ajudar os interessados a encontrar uma resposta. Refiro-me a ubuntu, uma noção existente em várias línguas afro-bantus, que se tornou conhecida pela sua utilização no contexto da luta anti-apartheid levada a cabo na África do Sul, liderada por Mandela. Significando “humanidade”, o conceito inspirou o conhecido líder sul-africano a promover uma política de reconciliação nacional após o fim do sistema de segregação racial do país. Ubuntu fundamenta-se na visão dos africanos originários de que o universo é um todo orgânico que tende à harmonia e cujas partes individuais existem somente como aspetos da unidade universal. Por isso, o conceito pode ser também traduzido por “eu sou porque nós somos” ou “eu sou porque tu és”. Em Angola, a palavra para ubuntu é jimuntu.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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