(02/10/2020)
Sou reincidente nesse jornal. Aliás, já devo fazer parte dos haveres do Rascunho, na categoria talvez de semovente. Para além dos diversos contos, poemas e artigos que aqui publiquei, mantive, em duas ocasiões, seções fixas. No ano de 2006, voltei de uma viagem à Galiza completamente apaixonado pelo povo, pela língua, pela cultura, e propus ao Rogério Pereira, amigo que há 20 anos leva heroicamente esse mensário único no Brasil, dedicar uma página à literatura de língua portuguesa produzida nos quatro cantos do mundo. Dei o título a esse espaço de Oceanos, depois aproveitado como nome de um substancioso prêmio literário. Mais à frente, entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2013, ocupei outro pedaço, a que chamei Lance de dados. E agora meto-me a colunista semanal…
Feita essa rápida apresentação, vamos ao que interessa.
Este foi o inverno mais quente da minha vida. Não me baseio em nenhum dado científico para secundar essa afirmação, apenas nas minhas sensações físicas. Venho de um lugar quente, Cataguases, interior de Minas Gerais, mas quente mesmo, a ponto de dizerem, os pérfidos, que quando alguém de lá morre e vai para o inferno — uma minoria, claro — só estranha a comida, pois o calor é o mesmo. Assim, quando mudei para Juiz de Fora, onde formei em jornalismo, tive um choque, pois a cidade, encavalada no alto da Serra da Mantiqueira, é muito fria — era, pelo menos… Depois, quando migrei para São Paulo, meus primeiros anos aqui — onde agarrei até hoje — foram de luva, meia grossa e touca… E não há tanto tempo, refiro ao início dos anos 1990. Pois bem, ano a ano, fui me desencapotando, até, neste estranho 2020, enfrentar temperaturas de mais de 30 graus em pleno inverno…
E vejo, atônito, os dirigentes do planeta negarem que vivemos um período de aquecimento global e seus lacaios incentivarem o desmatamento e a matança dos rios, da fauna e da flora. E vejo, atônito, que a morte das florestas e dos bichos das florestas e dos povos das florestas não provocam a indignação de mais ninguém… Mas não deveria me espantar, não é mesmo?, a morte de mais de um milhão de pessoas por covid-19 também não provoca a indignação de mais ninguém…
Vivemos tempos obscuros… Optamos coletivamente pelo culto ao ódio, à violência e à ignorância. Mas aqui, leitor, neste insignificante território, não haverá lugar para a vulgaridade, para a mediocridade, para a apatia. Aqui, construiremos uma trincheira para lutar contra aqueles que julgam a vida — qualquer vida — banal…
Luz na escuridão
Frei Betto, autor de mais de sessenta livros, entre ficção, ensaio, jornalismo, infantojuvenil: “Nesses meses de reclusão pandêmica, trabalhei no Diário de Quarentena — 90 dias em fragmentos evocativos, que a Rocco lança neste mês de outubro. A obra mescla textos de ficção, como contos, com reflexões sobre o descaso de governos frente à Covid-19, o agravamento de desigualdade social no mundo e o drama de amigos incapazes de suportar a quarentena”. Os livros do autor podem ser adquiridos diretamente na livraria virtual freibetto.org.
Parachoque de caminhão
“Um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação”. Albert Camus (1913-1960)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Cláudio Manuel da Costa
(Mariana, MG, 1729 – Ouro Preto, MG, 1789)
Soneto VII
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
(Obras poéticas de Glauceste Satúrnio, 1768)
*A coluna de Luiz Ruffato será publicada sempre às sextas-feiras.