Para o historiador do futuro esses anos bolsonaristas certamente provocarĂŁo incredulidade pelo sufocante grau de absurdos e inevitáveis comparações com outros perĂodos obscurantistas da humanidade, como se retornássemos a um passado abjeto. A incapacidade de parte significativa da população brasileira que ainda apoia o aspirante a dĂ©spota em compreender o real significado de sua polĂtica regressiva Ă© assustadora, e somente pode ser atribuĂda ao secular atraso educacional e de acesso Ă leitura que as elites econĂ´micas, daqui e de alĂ©m-mar, impuseram Ă maioria do nosso povo nos Ăşltimos 500 anos. É uma histĂłria conhecida, dissecada em textos e livros por historiadores e cientistas polĂticos de grande respeitabilidade.
Na vida como ela Ă© as atrocidades seguem se multiplicando pelas mĂŁos dos representantes do desgoverno, a maior parte atingindo frontalmente os direitos humanos e as conquistas sociais lentamente arrancadas pelos movimentos sociais Ă ganância espoliadora de um capitalismo selvagem e sem riscos para os menos de 1% que detĂ©m, de fato, a riqueza nacional. Um enorme aparato de truculĂŞncia direta, ameaças parcialmente veladas ou explĂcitas das forças armadas, compromissos dos estratos mais refinados dos poderes em seguir no jogo da polĂtica como se vivĂŞssemos sempre na normalidade constitucional, acordos espĂşrios com forças polĂticas populares corrompidas, tudo isso e muitos outros indicativos fizeram e ainda fazem parte da enorme construção da frágil democracia brasileira desde a Proclamação da RepĂşblica no sĂ©culo 19.
É importante neste 2022 realçar o estratĂ©gico 15 de novembro de 1899, mais uma quartelada para muitos analistas. Apesar disso, a data continua a ser a marca simbĂłlica da entrada do Brasil em um novo patamar de organização do Estado, com a separação da Igreja do poder polĂtico, a afirmação do estado laico e a supremacia da vontade dos cidadĂŁos consolidada em uma Constituição Federal republicana, lei maior que deveria nos governar tendo como base os direitos e deveres estipulados por ela. A elite governante optava, naquele final de sĂ©culo 19, assumir a “coisa pĂşblica”, isto Ă©, a “res publica”, expressĂŁo latina que etimologicamente explica o conceito de repĂşblica. SaĂamos de uma monarquia que atendia a interesses particulares e, teoricamente, entrávamos na defesa da coisa pĂşblica com a imprescindĂvel figura do “cidadĂŁo”, ativo, participante, que opina e se faz ouvir pelos mandatários eleitos e rotativos no poder de Estado. Era um novo horizonte a se conquistar.
Dentre os muitos golpes e as incontáveis conspirações polĂticas, civis e militares, que sempre ocorreram no Brasil quando este novo sistema de organização da sociedade e do Estado começava a ganhar corpo e voz com consequĂŞncias sensĂveis — avanços nos direitos humanos, inclusĂŁo econĂ´mica, social, cultural, educacional etc. —, nada se compara ao que estamos vivenciando desde o Ăşltimo golpe desferido diretamente sobre a primeira mulher que havia conseguido conquistar o posto de presidente da RepĂşblica. Mulher no poder supremo do paĂs, Dilma tornou-se, ela prĂłpria, um sĂmbolo a ser derrubado pelo atraso das elites nacionais. Se o leitor tem dĂşvidas sobre isso, convĂ©m a leitura dos textos e documentários que demonstram o afĂŁ vil e antifeminista no processo de impedimento, ou mesmo lembrar os xingamentos de Ăłdio sexista que a presidenta recebeu da Câmara Federal aos estádios.
Se o golpe forjado em frágeis “pedaladas fiscais” da presidenta, agora tambĂ©m derrubadas pelas cortes supremas, foi o prelĂşdio da truculĂŞncia bestial do perĂodo posterior contra a Constituição Republicana, penso que nada Ă© tĂŁo perigoso e tĂŁo regressivo a nossa democracia e Ă organização do Estado brasileiro do que as tentativas cada vez mais agressivas na área da Educação e da Cultura no desgoverno bolsonarista.
Articulados como objetos principais do que os protofascistas deste governo classificaram como “guerra ideolĂłgica ou guerra cultural”, os ministĂ©rios da Educação e o da Cultura estĂŁo sob ataque constante e severo da escumalha. O objetivo Ă© um sĂł: destruir para perverter, subverter a razĂŁo, a ciĂŞncia, a impessoalidade possĂvel na RepĂşblica e substituĂ-las pela crença de alguns, pela irracionalidade do Ăłdio aos diferentes, pela pessoalidade dos governantes de plantĂŁo. Em uma palavra, a destruição do estado democrático e do contraditĂłrio na multidiversidade.
O MinC foi extinto e sobre suas ruĂnas impuseram uma secretaria de cultural instalada sob um ministĂ©rio do Turismo, esdrĂşxula ideia do grupo dominante, mas que atende a concepção fascistoide de que a ação cultural precisa ser garroteada e monitorada com punhos fortes. E para isso acontecer Ă© preciso colocar seus protagonistas de joelhos, fragilizados. MinistĂ©rio historicamente dĂ©bil na histĂłria da RepĂşblica, minimizado pela maioria dos presidentes, nĂŁo foi tarefa difĂcil para o capitĂŁo aposentado colocar boçais em sĂ©rie para dirigir a nova secretaria encarregada da cultura, arrebentando o bom trabalho iniciado na gestĂŁo do imortal Gilberto Gil que, sĂł para recordar, colocou a questĂŁo cultural no seu eixo contemporâneo e estratĂ©gico: a cultura como valor simbĂłlico, como direito da cidadania e como economia.
No MEC, segundo maior orçamento da RepĂşblica, a questĂŁo se tornou mais complicada, mas teve igual tratamento demolidor. A sucessĂŁo de ministros alinhados com o que há de pior na contemporânea reflexĂŁo autoritária e reacionária acabou se cristalizando no Ăşltimo perĂodo pela invasĂŁo dos chamados “pastores” que, abrigados em suas igrejas fundamentalistas, procuraram atingir o coração daquilo que forma a cidadania pátria: a formação escolar e a exigĂŞncia do ensino laico. Este Ăşltimo, por sua vez, baseado na pesquisa cientĂfica independente e nas melhores inteligĂŞncias que a civilização humana produziu.
PoderĂamos dizer aqui, se olharmos de maneira macro a origem do universo religioso desses falsos profetas bolsonaristas, que eles traem sua prĂłpria histĂłria. Foi no sĂ©culo 16, mais precisamente em 1517, que Martinho Lutero inicia sua caminhada de rompimento com a Igreja CatĂłlica romana e o Papa, escreve suas 95 teses e lidera a maior cisĂŁo enfrentada pelo poder religioso hegemĂ´nico no Ocidente que exercia fortĂssima influĂŞncia nos Estados reais e oligárquicos naquele perĂodo. Importante lembrar que foi graças aos instrumentos de desenvolvimento tecnolĂłgico que permitiram a reprodutibilidade de textos impressos com a invenção da máquina de impressĂŁo de tipos mĂłveis por Johannes Gutenberg, em 1430, que Lutero pĂ´de fazer circular sua tradução da BĂblia do latim para o alemĂŁo, popularizando o texto e fazendo sua leitura ser possĂvel sem a intermediação dos religiosos.
Toda essa revolução religiosa, tecnolĂłgica, cultural e educacional contribuiu sobremaneira para as modernas e contemporâneas concepções de Estado e de RepĂşblica em suas inĂşmeras teorias, conceitos e práticas. E seus reflexos sĂŁo perceptĂveis nas polĂticas pĂşblicas pelo menos desde a Revolução Francesa e o auge da Modernidade. Toda essa herança cultural foi deliberadamente descartada pelo ex-ministro pastor e seus colegas pastores travestidos de redentores populistas e que atuam, conforme denĂşncia em curso, sob as famosas trinta moedas que marcam a histĂłria do cristianismo de maneira vil.
De todo esse cenário hediondo, no qual o risco da extinção do ensino laico se combina com o ataque Ă ciĂŞncia e Ă tecnologia, a cidadania lĂşcida tem o dever do combate acirrado, permanente, resiliente. Barrar o desmonte do estado laico, objetivo mais avançado desse processo embrionário que tem inĂcio na educação e na cultura, Ă© tarefa urgente do Brasil que lĂŞ em defesa dos concidadĂŁos que ainda nĂŁo tiveram o direito Ă leitura assegurado. Tema, aliás, que ainda está ausente nos programas mais avançados dos postulantes em disputa nas eleições deste 2022.