Quando esta edição do Rascunho for publicada, no próximo 1º/10, o Brasil estará na véspera de uma decisão política que tem a dimensão vital e popular dos grandes momentos de inflexão da nossa história.
Não me refiro às efemérides patrocinadas por golpes cívicos-militares, como a festejada “independência” que completou 200 anos ou mesmo a proclamada república de 1889, e ainda as investidas ditatoriais e assassinas como a de 1964, todos elas perpetradas por uma elite econômica majoritariamente espoliadora e escravista, como bem demonstra a excelente trilogia Escravismo, de Laurentino Gomes.
Os poucos momentos de inflexões libertárias da nossa história pátria se expressaram em revoltas populares dos “de baixo”, como os muitos movimentos dos escravizados e dos explorados ao longo dos nossos 500 anos, todos reprimidos com crueldade pelas armas a soldo do estado.
Num corte mais contemporâneo, encontramos essa inflexão nos movimentos sindicais, profissionais e estudantis que forçaram a agonia da ditadura de 64 no final dos anos 1970 e na organização popular que fez valer sua vontade para a Constituinte de 1988 e a eleição direta para a presidência da república. A força desses momentos históricos de decisão, que movimentaram militâncias de diversas ordens e ideologias, reuniu multidões, falou a todos os cidadãos e cidadãs e unificou suas revoltas contra o regime castrador dos militares em torno das almejadas liberdades democráticas.
Se a partir de 1985 demos um passo na construção da democracia enquanto nação, neste 2 de outubro de 2022, teremos a grave decisão de escolher entre marcharmos para o aprofundamento do caos socioeconômico, político e ético ou rumarmos novamente para a difícil e necessária estrada da reconstrução e da recostura da nossa ultrajada e ainda precária democracia, único patamar de contenção da barbárie desumanizadora que o atual mandatário federal representa.
Somente uma inflexão marcada pela recusa popular às novas manifestações dos fascismos, que pensávamos enterrados no século 20, poderá conter a sanha destruidora da pior representação de nossa elite branca, escravista e excludente, que colocou no comando do executivo nacional seu mais brutal e abjeto representante.
Este texto marca meus dois anos como colunista do Rascunho e nesses meses escrevi muito sobre as políticas públicas dizimadas ou desidratadas pelo nefasto governo federal, mas também procurei mostrar que há caminhos e que políticas públicas, na sua real dimensão coletiva e de responsabilidade social, são o avesso do que os atuais mandatários praticam, conseguindo enganar ainda milhões de brasileiros.
É importante dimensionar e estabelecer quais são os parâmetros de uma política pública verdadeira, que só pode ser chamada pública se for includente, visando a maioria, que compreenda e acolha a diversidade do país e de seus habitantes e democrática porque os que a financiam com impostos e trabalho precisam ser escutados. O contrário desses pontos cardeais são a antipolítica pública, aquela feita para poucos, para grupelhos e apaniguados que sustentam o mandatário espoliador dos direitos sociais adquiridos ao longo do tempo na luta democrática.
A política pública que defendemos se baseia na construção de projetos, programas e ações de longa duração, de Estado, portanto suprapartidária e supragovernamental, que sirva aos interesses da maioria da população, principalmente aquela privada de bens e recursos particulares e que, para sua emancipação e plena cidadania, necessita de ações do poder público para se desenvolver. Pensar e estruturar o país no coletivo, e não na mesquinhez de bens privados acumulados por 1% da pirâmide social, não é apenas um ato de humanização civilizatória, mas a única possibilidade de continuarmos a viver em sociedade e evitarmos a dizimação da espécie.
Se a pauta política hoje denominada de “políticas identitárias” ganha manchetes e debates apaixonados, a reunião de todas elas são a síntese das mazelas produzidas por um modelo social excludente e não voltado para o coletivo, para o desenvolvimento social e econômico comum e sustentável que valorize a vida para todos e todas e não apenas para os poucos escolhidos conforme a insustentável teoria neoliberal de meritocracia.
A nação precisa urgentemente dar um passo em direção à maioria do povo e superar limites impostos pela ignorância de milhões de brasileiros cultivada por uma casta dominante secular. É preciso consciência e atitude de que decisões cidadãs necessitam serem tomadas. Acatemos as recomendações dos povos originários que olham a natureza como mãe geradora da vida e têm outro olhar sobre o que é viver, estendendo com este olhar a possibilidade de vida para todo o planeta, que hoje depende do equilíbrio ecológico mais do que nunca. Superemos finalmente o escravismo estrutural que nos domina secularmente, rompamos os grilhões racistas desta sociedade que finge não ver que a nação se formou pela força do trabalho escravo e que somos um país formado majoritariamente por afrodescendentes que ainda estão longe de terem seus direitos de cidadania respeitados pela minoria branca. Ouçamos as vozes das diversidades sexuais, das múltiplas religiosidades, dos muitos povos estrangeiros que aqui vivem, e que clamam por viverem livres dos preconceitos de multidões idiotizadas por crendices e valores hipócritas que matam o diverso cotidianamente, metafórica e literalmente.
Ou as políticas públicas caminham para o equacionamento e a solução dessas questões candentes ou o nosso caminho se tornará imponderável. O momento é grave, mas eu carrego o vírus do esperançar freiriano e partilho da resiliência de milhares de formadores de leitores e leitoras neste país. Há luz no fim do túnel e ela se expressa pelas brechas da violência cotidiana por intermédio de ações efetivas em defesa da vida e pela denúncia dos malfeitos praticados atualmente.
A hora de agir é agora, para virar a página horripilante que estamos vivendo e construir um futuro imediato que mire o melhor para todas as pessoas deste país. Sabemos que sem participação popular esse movimento será pífio e que para convencer a população a aderir são necessários projetos e visões de construção do futuro que sejam exequíveis, estratégicos e alicerces de desenvolvimento.
Dentre os temas de política pública que precisamos construir, a centralidade do tema de formação de um país de leitores é cada vez mais evidente e se consolida no discurso do favorito nessas eleições, o ex-presidente Lula, que em seus pronunciamentos acolheu o tema “mais livros e menos armas”.
É um bom começo, mas o substantivo para a política pública do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas está em dois documentos muito similares e que têm objetivos e metas comuns: um deles foi o Manifesto do Comitê Livro, Leitura e Bibliotecas da campanha da candidatura Lula-Alckmin, entregue no último julho aos candidatos. O outro documento é a Carta aberta em defesa do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas, idealizada e escrita por inúmeros ativistas e composto por vários segmentos do setor. A Carta está disponível no site change.org para assinaturas e os convido para conhecê-la, assiná-la e difundi-la: https://www.change.org/p/carta-aberta-em-defesa-do-livro-da-leitura-da-literatura-e-das-bibliotecas.
Ambos os documentos expressam dois pontos que defendi aqui em colunas anteriores: a inadiável implantação da Lei 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, instrumento de organização vertical e horizontal de restauração dos programas públicos de todo o setor por intermédio de um novo PNLL decenal; e a prioridade de investimentos nas bibliotecas de acesso público (públicas, escolares, comunitárias), hoje em franco processo de resistência para se manterem atuantes.
Que o amanhã se inicie neste 2 de outubro de 2022! Como se anuncia na Carta Aberta: “Comida no prato e livro na mão!”.