🔓 Questão negra ou questões negras?

A tendência para ignorar os contextos e uniformizar a análise da problemática negra no mundo afeta as próprias estratégias de luta contra o racismo antinegro
Ilustração: Thiago Lucas
29/08/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Cresci numa família angolana numerosa e misturada, com origens, basicamente, africanas e europeias, onde aprendemos que o conceito de “negro” abrange quer os “pretos” quer os “mestiços” ou “mulatos”. Na sua génese, o último termo é obviamente preconceituoso, mas, pela parte que me cabe, já o ressignifiquei há muito tempo, não me provocando nenhum incómodo. A eventual, mas inegável, violência da linguagem tanto pode ser desarmada pela contestação como pela ressignificação, como, por exemplo, fizeram os portugueses, que assimilaram o termo “tuga”, criado pelos antigos colonizados com propósitos insultuosos, e atribuíram esse nome à sua seleção de futebol.

Na minha família, portanto, as pessoas com o meu tom de pele sempre se assumiram (e eram assim consideradas por todos os demais familiares) como “negras”, mas não “pretas”, estando conscientes, ao mesmo tempo, que a luta dos pretos e dos mestiços ou mulatos era e é uma luta conjunta. Por causa da colonização, também aprendemos que, como dizia a minha mãe, “nós, os escuros, temos de fazer muito mais e melhor do que os brancos, para termos sucesso”.

O que acontecia dentro da minha família sucedia também em muitas outras famílias angolanas, particularmente durante a época colonial. Tenho de acrescentar que, devido à natureza misturada de muitas famílias angolanas, em especial nas áreas urbanas do litoral, mas não só, as mesmas podiam ter também alguns membros brancos, mas todos estavam unidos quer pela cultura, a que alguns chamam “crioula”, quer pela sua firme oposição ao racismo colonial e, até, pela sua participação ativa na luta pela independência de Angola.

Em virtude desse background, confesso que sempre vimos com estranheza, no mínimo, o modo como os norte-americanos, negros e brancos, tratavam e tratam do tema do racismo e das relações entre as diferentes “raças”. Ainda me lembro de uma história que o meu pai – um homem que abdicou de tudo para pegar em armas e lutar pela independência de Angola – me contou quando o reencontrei, 14 anos depois. Segundo ele, os militantes clandestinos que, na década de 50 do século passado, conspiravam em Luanda contra o regime colonial, mantinham, por vezes, contactos com marinheiros negros americanos que aportavam à cidade, com os quais abordavam assuntos e factos relacionados com o racismo antinegro, sobretudo nos EUA e em África; alguns deles deixavam ficar jornais e livros sobre essa temática e, na volta, levavam correspondência enviada pelos referidos militantes para organizações americanas, como igrejas, universidades e outras. As conversas nem sempre eram fáceis e algo incomodava esses nacionalistas angolanos (pretos, mulatos e brancos): – “Parecia que os tipos nos queriam ensinar a nós o que é ser negro!”, dizia-me o meu pai.

A verdade é que a tendência para considerar que a problemática negra é uniforme em todo o mundo se agravou. Cada vez mais, a respetiva abordagem parece obedecer à perspetiva definida pelos Estados Unidos e os seus famosos cultural studies. Muitas vezes, por isso, há como que um descompasso entre a visão dos negros africanos, em especial os que sempre se mantiveram no continente, e os negros das várias diásporas existentes. Lembro aqui outra história: há alguns anos, um jornalista angolano negro conheceu em Dakar uma norte-americana igualmente negra, com quem entabulou conversa com base na “carta” da cor da pele, mas ela cortou o assunto pela raiz, lembrando-lhe que ela era negra, sim, mas não era africana! A propósito, será que o atual chefe do Pentágono, general Lloyd Austin, pensaria duas vezes se, por hipótese, os EUA decidissem fazer uma intervenção num país africano governado por negros? Ofereço um micate (doce de amendoim) a quem souber responder.

Aqui, é imperioso afirmar, respondendo à pergunta do título: não há uma questão negra, mas várias questões negras, embora haja, em termos gerais, uma óbvia relação entre elas. O contexto – acrescente-se – é o fator que introduz objetivamente certas nuances na discussão da problemática negra no mundo. A tendência crescente dos estudos sociais, na esteira da uniformização imposta pela adoção acrítica da perspetiva dos cultural studies norte-americanos, para ignorar o contexto é altamente perniciosa. Na realidade, afeta as próprias estratégias de luta antirracista, que não podem ser desenhadas e feitas da mesma maneira em todos os contextos.

Eis, a seguir, algumas diferenças que a análise da situação do negro no mundo não pode deixar de levar em conta em função do contexto. Começo pelas próprias questões linguísticas, dando um exemplo extraído da realidade que melhor conheço, a angolana. Com efeito, em Angola, o uso da palavra “negro” ou “preto”, para caracterizar certos indivíduos (a maioria), não é consensual; para muita gente, a palavra “preto” é considerada ofensiva. Muito diferente, portanto, do contexto linguístico anglófono, onde “nigger” (que seria o equivalente de “negro”) não pode ser usado e “black” (preto) é o termo recomendado. No Brasil, e na onda do processo de “americanização” da sociedade que vem desde a 2ª Guerra Mundial, tenho notado um uso crescente da palavra “preto”, mas “negro” ainda é muito usado.

O enquadramento dos mestiços ou mulatos é outro tópico que varia conforme o contexto. Em Angola, e apesar da inegável existência de muitas famílias como a minha, a maioria dos pretos não considera que os mestiços sejam negros e nem todos os mestiços se autoconsideram como tal, para usar a classificação que mencionei no início deste texto, englobando pretos e mestiços no conceito de “negro”. As tensões entre os dois grupos, inclusive, são indesmentíveis. No Brasil, e por influência dos movimentos negros, há uma pressão social para considerar os pretos e os “pardos” (mestiços) como negros, o que em Angola e nas restantes ex-colónias africanas de Portugal não existe; ignoro, contudo, o resultado prático dessa pressão, assim como desconheço, igualmente, se a mesma elimina ou agrava as tensões entre todos os indivíduos nessa condição (aqui ou ali, tenho visto a ser usada uma classificação que me parece simpática: “negro escuros” e “negros claros”). No EUA, como é sabido, basta ter uma gota de sangue “negro” para se ser classificado como tal, mesmo que se seja loirinho e se tenha olhos verdes.

Outra diferença contextual que não pode ser ignorada é a seguinte: os negros detêm o poder ou não? É que, obrigatória e necessariamente, a análise da situação dos negros tem de levar em conta se eles vivem em sociedades onde, mesmo que sejam a maioria demográfica, não estão no poder (caso do Brasil) ou, então, se se trata de sociedades onde eles estão no poder, caso da África subsariana. No segundo caso, e mesmo sendo os países da região, uns mais do que outros, sociedades pluriétnicas e plurirraciais, o poder está nas mãos da maioria negra (ou, se quisermos ser mais precisos, preta), pelo que, sem negar eventuais tensões entre os indivíduos de diferentes raças ou etnias, não se pode falar, a rigor, na existência de qualquer racismo estrutural antinegro. Pelo contrário, em alguns casos, há mesmo indícios de esforços para fazer uso de políticas estruturais para discriminar as minorias. Só para dar um exemplo, em Angola, numa das eleições anteriores às realizadas no passado dia 24 deste mês, um dos partidos concorrentes orientou as suas estruturas em todas as províncias para não colocarem nas suas listas de candidatos a deputados nem brancos nem mestiços.

A verdade é que, derrotado o colonialismo europeu e desmantelado o apartheid, o racismo estrutural mantém-se em África, mas, pelo menos no plano político, mudou de sinal (no plano económico, a conversa é outra, embora complexa). Resumidamente, na África do norte, onde houve, historicamente, um processo de embranquecimento das populações, os pretos são discriminados e o poder político está concentrado nas mãos das elites brancas e mestiças (este último o caso da Mauritânia); na África oriental, as populações de origem asiática têm sido alvo de assumida discriminação política (o caso mais célebre foi a expulsão pelo ditador Idi Amin Dada de mais de 40 mil pessoas de origem indiana do Uganda em 1972); na África Ocidental, Central e Austral, os mestiços e brancos são politicamente marginalizados ou têm vindo a perder o espaço político que detinham anteriormente, por terem participado nas lutas anticoloniais e anti-apartheid em países como Angola, Moçambique e África do Sul.

É por isso que, para muitos africanos, causam estranheza certas tomadas de posição dos negros das diferentes diásporas. De um modo geral, e como me disse um escritor africano amigo, os negros africanos só se sentem “negros” quando saem do continente e são confrontados com o profundo racismo antinegro existente nos demais continentes. O facto é que, em definitivo, não é possível lidar com as questões raciais da mesma maneira e em toda a parte. Mas, sendo igualmente inegável a existência de um vínculo histórico entre as diferentes comunidades negras ou de origem negra no mundo, construído pela escravatura, o colonialismo e o capitalismo – realidades perfeitamente contemporâneas, note-se -, o diálogo e a cooperação entre tais comunidades continuam a ser um verdadeiro imperativo ético e político. Isso precisa de ser feito, entretanto, de acordo com as realidades de cada sociedade e, sobretudo, na perspetiva de construção de uma humanidade compartilhada por todos, sem a pretensão de erigir novos apartheids, desta feita “politicamente corretos”.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

Rascunho