🔓 Quem é Carmen Mola?

“Querem protagonismo feminino? Tomem lá!”. Foi o que fizeram os três roteiristas espanhóis que, durante quatro anos, se fizeram passar por uma famosa escritora
Ilustração: Denise Gonçalves
25/10/2021

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Até ao passado dia 15 de outubro, o nome Carmen Mola era um completo mistério para os leitores espanhóis e mundiais que, desde 2018, se deleitavam, garante a imprensa mainstream, com os livros assinados pelo mesmo.

Descrita como uma professora universitária de álgebra e mãe de três filhos que, simultaneamente, se dedicava à escrita de romances “macabros”, tornou-se um dos maiores nomes do suspense espanhol dos nossos dias. Nunca havia aparecido em público e, na sua única foto disponível, está de costas, não podendo ser identificada.

A primeira obra assinada por Carmen Mola foi a trilogia A noiva cigana, traduzida para 11 idiomas e que está também a ser adaptada para a televisão. A mesma é protagonizada por uma inspetora de polícia “peculiar e solitária, que adora vinho, karaoke e de sexo em SUVs”.

As histórias emocionantes e sangrentas da autora, para utilizar a linguagem da imprensa mainstream, chegaram a ser comparadas às da italiana Elena Ferrante, outro grande sucesso literário mundial. Mas o mais sintomático é que, talvez pelo facto de a personagem principal dos seus livros ser uma mulher — a inspetora-chefe Elena Blanco —, as mesmas foram reconhecidas pelo Instituto da Mulher de Espanha como contos que “ajudam a entender a realidade e as experiências femininas nos dias de hoje”.

Passando por cima do facto de, tratando-se do jornalismo literário e cultural em geral, haver cada vez menos diferenças entre a linguagem da imprensa mainstream e a “linguagem de press release”, assinale-se aqui três notas: primeiro, o nome da autora é feminino (logo, a mesma só poderia ser uma mulher); segundo, a personagem principal das suas histórias é igualmente uma mulher; terceiro e último, a temática da obra de Carmen Mola parece deliberadamente relacionada com as experiências e as vivências femininas.

Assim sendo, será que, à luz das necessidades e exigências classificatórias contemporâneas, podemos considerar a obra de Carmen Mola um exemplo de “literatura feminina”? Sim ou não, pelo menos será de destacar a ousadia dela de penetrar num campo (a literatura policial e de suspense) maioritamente masculino. Casos como o de Agatha Christie são exceções que confirmam a regra.

No último dia 15, um novo livro de Carmen Mola — A besta — iria receber o prestigiado e valioso Prémio Planeta, no valor de um milhão de euros, instituído pelo grupo editorial com o mesmo nome. Estava tudo preparado para, durante a cerimónia de outorga do referido prémio, ser finalmente revelada a identidade da famosa autora.

O que de facto aconteceu não podia ser previsto por ninguém, a não ser os envolvidos no segredo da identidade de Carmen Mola. Quando o nome foi chamado, para enfim ser apresentada a famosa autora, subiram ao palco três homens: Jorge Diaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero, um trio de consagrados roteiristas da televisão espanhola. São os eles os verdadeiros autores das obras de “Carmen Mola”.

Agustín Martínez, Jorge Díaz e Antonio Mercero

 

Foi um pequeno escândalo. Muitas mulheres protestaram nas redes sociais. “Além de usar um pseudónimo feminino, esses indivíduos passaram anos a dar entrevistas. Não é apenas o nome. Eles criaram e usaram todo um perfil falso para convencer leitores e jornalistas. São golpistas”, afirmou Beatriz Gimeno, ex-diretora do Instituto da Mulher de Espanha.

Candidamente, o trio justificou-se. “Somos três amigos que um dia, há quatro anos, decidimos combinar o nosso talento para contar uma história”, disse Dias, na cerimónia de entrega do Prémio Planeta. Por seu turno, Mercero disse ao El Pais: “Não sei se um pseudónimo feminino venderia mais do que um masculino. Não tenho a menor ideia, mas duvido. Não nos escondemos atrás de uma mulher, escondemo-nos atrás de um nome”.

É caso para dizer: Me engana, que eu gosto!

Na verdade, tratou-se de um escândalo previsto. Puro marketing. Como toda a boa estratégia de marketing, a criação de “Carmen Mola” partiu de uma análise da realidade, tendo-se baseado, notoriamente, em duas tendências sociológicas que se têm desenvolvido desde o fim do século 20 e início do século 21: a transformação da literatura e da cultura em geral em mero entretenimento e a instrumentalização das legítimas exigências identitárias e de género.

“Querem protagonismo feminino? Tomem lá!”. Foi o que fizeram os três roteiristas espanhóis e todos os que estiveram eventualmente envolvidos nesta farsa. Esta confirma, quanto a mim, aquilo em que sempre insisto: a fragmentação das lutas sociais e a sua desintegração em lutas identitárias sem qualquer perspetiva de classe podem ser importantes para provocar algumas mudanças sociais, mas são irrelevantes para a alteração estrutural da sociedade, acabando por ser absorvidas, aceitas e promovidas pelo sistema.

Neste caso concreto, os indícios são claros: depois da revelação das identidades dos três homens que se escondiam por detrás do nome de “Carmen Mola”, a pesquisa sobre os livros assinados pela “autora” disparou na Internet, o que faz prenunciar que as respetivas vendas vão aumentar nos próximos tempos. É preciso desenhar, para entendermos como o capitalismo ganha com as lutas sociais, quando estas perdem o foco?

Como tudo na vida é matizado, entretanto, este caso não deixa de ter um aspeto que, quanto a mim, é positivo: confirma, como se isso fosse mesmo necessário, que não existe lugar de fala na arte em geral. A arte, além de implicar a capacidade de representar o outro, vestindo-lhe a pele e, se necessário, recriando-o, é o lugar da empatia por excelência. Apenas para me ater ao assunto de hoje, homens podem, pois, falar em nome das mulheres — e vice-versa. Isso, porém, tem de ser feito aberta e positivamente. Não pode ser um mero embuste mercadológico.

Termino com uma nota que se pretende apenas bem humorada:  não servirá toda esta história para confirmar que são necessários três homens para fazer o que uma mulher só faz?

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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