Conversa com Tatiana Salem Levy
1.
Carola: Eu sonho quase todas as noites com o Rio de Janeiro, com um Rio pós-apocalíptico, no estilo o Haiti é aqui, um rio-ruína. Hoje estamos as duas do outro lado do Atlântico. Me sinto incapaz de contar uma história. Como se escreve do outro lado do Atlântico?
Tatiana: Sonhei que estávamos as duas numa van de festival literário. Um sonho bem banal e óbvio: Você me convida para esta conversa, eu sonho que estamos juntas, como várias vezes estivemos, para falar de literatura. Um sonho que acontece no passado, antes do apocalipse, quando podíamos sentar ao lado uma da outra, sem máscara, em trânsito. Um sonho que talvez possa acontecer no futuro, mas não no presente.
O presente é o apocalipse. Ou o início do apocalipse? Difícil saber quando o fim acaba.
Será que os escritores que conhecem o fim de um romance antes de começar a escrevê-lo saberiam dizer quando acaba a narrativa dos humanos na Terra? Para mim, é impossível saber o fim de um livro antes dele se aproximar. E pra você?
Do outro lado do Atlântico, no Pacífico, no Índico, pra mim não faz diferença, porque volto sempre no tempo para escrever. Acho até que quanto mais eu me afasto do Brasil mais a minha escrita se volta sobre ele. Não tenho nenhum livro que fale tanto do Rio quanto o que acabei de escrever — e escrevi-o ao longo de dois anos em que não pisei no Brasil.
Carola: Curioso, isso tem acontecido comigo também, estar longe do Rio, do Brasil, faz com que eu me sinta cada vez mais perto, estranho fenômeno. Talvez a geografia seja somente uma miragem, e por baixo dela, flua outra, feito um rio que corre sob o asfalto. Uma cartografia subterrânea.
Sabe que eu mudei nesse quesito, saber o fim do livro. Antes, até o Inventário, eu sabia tudo (na realidade achava que sabia [risos]). Já com o Armas eu não sabia nada. Sinto que o não saber é uma coragem que pra mim só veio com o tempo, com a idade.
2.
Carola: Temos tantas leituras em comum, nos últimos tempos, Walter Benjamin, Marguerite Duras. Tenho relido Benjamin, volto aos seus textos que me parecem cada vez mais atuais. Penso muito no Angelus Novus, nessa tempestade que chamamos progresso.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
Mas não quero parecer pessimista (risos).
Tatiana: Vejo os vídeos da explosão em Beirute, o último lugar onde estive. Num restaurante situado naquele porto, me reuni com outras trinta e oito escritoras de diferentes lugares do mundo para uma “festa histórica”. Enquanto comíamos — certamente uma das melhores refeições da minha vida — também ouvíamos umas às outras. Cada uma de nós contava a história de uma mulher que a gente quisesse espalhar por aí. Estávamos celebrando, com as nossas vozes, as vozes de outras mulheres, uma comunidade tantas vezes silenciada de bruxas, monjas, hereges, transgressoras. Escolhi: Carolina Maria de Jesus. Mulher, negra, escritora, guerreira, brasileira.
2020 se anunciava como um grande ano. Para mim, um romance novo, uma viagem longa ao Brasil, pela primeira vez com a Esther, e um curso no mestrado sem máscaras (na altura inimagináveis). Para o Líbano, os protestos no centro de Beirute afirmavam a possibilidade de um país menos sectário e menos corrupto. Tanta força naqueles braços que lançavam pedras contra o parlamento. Tanta força naquelas pedras que iriam reconstruir um país. Arrancadas dos muros das lojas chiques que faziam Beirute parecer Paris e atiradas contra aquele mundo que eles não queriam mais. Talvez tentassem destruir a tempestade.
E, de repente, Beirute em ruínas. A cidade que já tinha sido maltratada tantas vezes. A cidade de tantas e antigas histórias. E agora você me aparece com o anjo da história do Klee. O anjo do Benjamin (no Antigo Testamento, o filho mais novo de Jacob e Rachel, que morreu ao lhe dar a luz). E não deixa de ser engraçado pensar que justo o anjo novo é o anjo da história. O anjo que vê as ruínas. Que dá as costas para o futuro. Certamente há um angelus novus agora em Beirute. E fico pensando que é isso que devemos fazer, enfim. Dar as costas ao futuro, voltar alguns passos. Dizer: não vamos continuar caminhando para frente, se isso significa a destruição.
Vejo mais uma vez os vídeos da explosão. Vejo-os várias vezes. De diferentes ângulos. Certamente não sou a única a achar bonito o fogo, a fumaça subindo. Lembro do livro de um japonês, Kasumiko Murakami, um romance pequeno, que em francês se chama Et puis après, e então depois. Yasuo, um pescador, percebe que há algo estranho com o mar. Guia seus companheiros para longe e, a quilômetros de distância da terra, desliga o motor, solta a âncora e se vira. A paisagem diante dele é assustadora. Onde a praia antes se estendia, agora ele vê uma parede escura e brilhante. O tsunami.
Há beleza no apocalipse. Haverá sempre dor? Às vezes penso que um apocalipse silencioso, sem grandes explosões, seja a melhor forma de nos reinventarmos.
Na lenda talmúdica, o anjo novo se dissolve no nada. Um dia, também nós.
Carola: Que lindo. E sim, dar as costas para o futuro é também olhar para o passado. Talvez a gente precise olhar com mais atenção para o passado, porque ele continua em nós.
3.
Carola: Klee, em seu ensaio “confissão criadora” diz que a arte não reproduz o visível, mas torna visível. Gosto muito dessa frase, suspeito que ela serve para tudo. O que seria esse algo que se torna visível através da arte?
Tatiana: Afinal, a pergunta estava aqui. Eu me precipitei. Respondi sem terminar de ler. Mas há sempre muitas respostas possíveis.
Estou preparando um curso de mestrado sobre a representação do irrepresentável. A representação de violências em grande escala, de guerras, catástrofes, mas também de violências em pequenas escalas, mortes, estupros. Diante da dor dos outros, da Sontag, e Imagens apesar de tudo, de Didi-Huberman. Como representar a dor do outro, esse eterno irrepresentável? Imaginar o inimaginável — apesar de tudo. Gosto dessa ideia de que é preciso imaginar. Não podemos abrir mão da imaginação, a única forma de nos colocarmos no lugar do outro. A arte funda imagens. Visões, pequenos lampejos.
No fundo, toda arte é a imaginação do inimaginável, a aproximação do que poderíamos chamar, de forma mais psicanalítica, de real.
Carola: Ah, esse assunto, só esse assunto dava uma conversa sem fim (risos). Concordo totalmente, e penso na potência daquilo que não sabemos, escrever sem saber o fim do livro, talvez esteja aí o pulo do gato, escrever, criar o que ainda não sabemos, ou como você disse, imaginar o inimaginável.
4.
Carola: Tenho lido muito poesia, mais do que nunca. Sinto como se a pandemia, e tudo o que ela implica, arrancasse o significado das palavras, vejo uma série de palavras ocas sobre a mesa, na tela do meu computador, palavras sem alma. E sinto que de certa forma, a poesia a restitui, essa alma das palavras.
Leio A Sophia de Mello Brayner. Quando estive em Lisboa ano passado, levei a Victoria no Aquário, foi um fracasso porque ela queria ver um polvo gigante e descobrimos que não tinha polvo gigante, e diante da ausência do polvo gigante, nada mais importou. Paguei o ingresso para nada. Minto, não foi para nada. Daquele passeio trouxe as palavras mais bonitas da viagem (escritas numa das salas do aquário), um poema da Sophia de Mello Brayner:
Inscrição
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
Sinto falta do mar da minha infância, no Rio de Janeiro , e dos tatuís que desapareciam na areia depois de cada onda. E do balde com água cheio de tatuís, que a minha mãe não deixava levar pra casa e eu devolvia ao mar depois de muita reclamação. Talvez os instantes que não vivi junto do mar estejam ali, em algum lugar, esquecidos entre as lembranças.
Tatiana: Tão bonito, isso. Até as palavras ocas se tornam belas do jeito que você as descreve. Ficam logo repletas de significado. Vejo tanta coisa nessas palavras ocas. O desastre é o que já aconteceu e o que ainda não aconteceu, diria Blanchot. O instante em que passado e futuro convergem. Ou: a suspensão do presente.
Fui uma leitora voraz de poesia na adolescência. Depois me tornei uma leitora pouco habitual, mas a Sophia é, sem dúvida, uma das minhas paixões. Ano passado, escrevi uma peça infantil que terminava com esses versos que você encontrou no Oceanário. Esta semana, li “A menina do mar” para o Vicente. Foi a primeira vez que ele acompanhou com interesse uma história longa. Gosto tanto, tanto desse livro. Você já leu para a Victoria? Antes de começar, expliquei quem era Sophia e tentei explicar o que é poesia, mas acho que não deu certo. Talvez eu devesse ter dito apenas: poesia é o que você vê. Ou será a forma como você vê? Sophia dizia assim: “a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta.”
Na minha infância, eu e minha mãe nos apelidamos de “ratos de praia”. Posso ver ainda hoje: nós duas e minha irmã descendo no elevador com um balde na mão, entrando na garagem e, em seguida, na Brasília vermelha (alguns anos depois, no Gol cinza fumê). Saíamos de Laranjeiras para Ipanema, mais especificamente para o posto 9, na altura do pão com linguiça do uruguaio. Lembro da minha pele torrando sob o sol; eu ficava tão morena que hoje seria impensável. Lembro de me perder algumas vezes na praia, uma sensação de desespero, nunca mais iriam me encontrar… Invariavelmente, minha mãe nem tinha notado que eu havia desaparecido. Talvez fosse tudo rápido demais, talvez eu nem tivesse me perdido de fato, tudo se passando apenas na minha cabeça.
Tenho saudades do picolé Itália de tangerina. E tenho saudades da minha mãe, que me deixava comer um picolé atrás do outro, sem se preocupar com a quantidade de açúcar no meu sangue.
Você se lembra dos tatuís desaparecendo na areia, e eu sinto cócegas nos pés quando eles voltam. Eu enchia e esvaziava o balde várias vezes. Era raro, mas de vez em quando a minha mãe deixava a gente levá-lo pra casa, onde os tatuís eram lavados e jogados na frigideira. Eu adorava comer tatuís na minha infância. Que gosto mesmo tem um tatuí?
PS: O polvo gigante está lá. Às vezes se encolhe, se esconde na sua pequena gruta. Vicente também adora polvos. Aqui em Portugal, já vimos alguns na praia. Quando o fim do mundo acabar, esperamos vocês aqui.
Carola: Eu costumava me perder todas as vezes na praia, meus pais nunca se davam conta. Mas eu tinha um truque, o guarda-sol, me perdia e depois ia caminhando pela beira do mar em busca do guarda-sol. Talvez fosse uma espécie de exercício metafísico. Perder-se para encontrar o que sempre esteve perdido.
Tenho uma longa lista das coisas que eu quero fazer quando o fim do mundo acabar, visitar vocês e o polvo gigante é uma delas!
5.
Carola: Vista chinesa, teu livro mais recente (que será publicado ano que vem) me trouxe com mais força ainda o Rio de Janeiro, e os últimos parágrafos são na minha opinião a coisa mais linda que você já escreveu. Tuas palavras ficaram ressoando em mim…
Tatiana: Acho que nunca vou me esquecer do momento em que escrevi o fim desse livro. Eu não sabia direito como terminá-lo. Não queria um final que parecesse uma cura, que resolvesse o trauma da Júlia – afinal, ela diz logo no início que “há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer, porque acontecem todos os dias”. Eu queria que esse sentimento permanecesse de alguma forma. Não podia inventar um final que fosse uma solução.
Aí veio a imagem, e me pus a escrever com fúria. Em certo momento, resolvi procurar um detalhe geográfico na internet e descobri que o que eu estava inventando já tinha acontecido, alguns meses antes, na realidade. Eu estava prevendo o passado. Percebi então que as coisas estão conectadas, que as visões existem em outras camadas do tempo, e que a criação é sempre, em alguma medida, coletiva.
Carola: Sim, eu senti a mesma coisa quando escrevi a avó do Armas, um texto que surge pronto, e a sensação de que aquilo não é só seu, às vezes a gente escreve algo que sempre esteve ali.
6.
Carola: A gente se acompanha há tempos, quase desde o início na literatura. E tem também a trajetória acadêmica, e os filhos, quando penso na vida de uma escritora com filhos pequenos, sempre me vem à mente a foto da Clarice Lispector escrevendo aqueles livros incríveis com a máquina no colo, ela dizia que fazia isso porque enquanto escrevia cuidava dos filhos (sem falar que além de tudo estava sempre impecável), me sinto tão incapaz disso. Sou zero multitarefa, aliás, suspeito que essa história de mulher ser multitarefa não passa de uma armadilha.
Tatiana: Rindo aqui. Sou zero multitarefa. Zero multiartista. Zero multimãe. Só consigo fazer uma coisa de cada vez. Tento me organizar: uns dias, coluna para o Valor; outros, preparar aula para a faculdade; outros, só ler; outros, escrever ficção; outros, resolver questões domésticas; outros, não levar as crianças para a escola e dar uma volta pela cidade; outros, não fazer nada. Ah, como eu gosto de não fazer nada!
Carola: Lembrei agora, a palavra ócio em alemão, Muße, tem origem na ideia de oportunidade. Ócio como uma oportunidade.
7.
Carola: Um dia, descobri que a Marguerite Duras morreu no dia do meu aniversário. Desde então sempre leio uma página de um livro dela ao acaso, pouco antes dos parabéns.
Tatiana: Virginia Woolf nasceu um dia depois de mim, e até hoje penso que eu deveria ter permanecido mais algumas horas dentro da barriga da minha mãe. Passei anos acreditando que, de perfil, éramos iguais. Mas era apenas um desejo de me parecer com ela. O mesmo desejo de me parecer com a Clarice, tão bonita. Na verdade, o mesmo desejo de escrever como Virginia, Clarice, Duras. Mas agora gosto mais da ideia de escrever com elas. E com você.
Carola: Escrever com, sinto isso também, cada vez com mais força. A literatura como uma escrita coletiva.