O período mais agudo da pandemia de covid-19 foi determinante para que o poeta Alexei Bueno desse vida a um livro até então inédito na literatura brasileira. Trata-se de A escravidão na poesia brasileira, antologia que reúne mais de 200 poemas e 81 poetas que publicaram ao longo de três séculos e meio.
“Chega a ser estranho ninguém ter intentado esse livro antes”, diz Alexei sobre o tomo com mais de 700 páginas. Ele explica que a falta de um livro assim era “uma lacuna absurda, pois grande parte dos maiores poetas brasileiros tratou do tema, cobrindo todas as escolas literárias, barroco, arcadismo, romantismo, parnasianismo, simbolismo, modernismo e o que vem depois”.
Para evitar qualquer equívoco interpretativo, Alexei escreveu um longo ensaio que serve de prólogo da obra. Nele, diz logo de cara que não se trata de um livro sobre o negro na poesia, mas sobre a escravidão. E que, por motivos explicados no texto, a escravidão negra, diferente da indígena, foi a que mais deixou marcas em nossa poesia.
Mas onde há antologia, há polêmica — sempre. A presença do modernista — e polemista — Oswald de Andrade pode suscitar críticas. Afinal, ele é considerado racista por muitos pesquisadores da literatura brasileira. “Por que eu não o incluiria?”, pergunta Alexei ao ser questionado. “Não me interessam a vida privada ou características morais dos autores, mas os poemas que eles escreveram.”
Entre os nomes presentes no livro, os fundamentais Castro Alves (cuja obra é quase toda marcada pelo tema da escravidão) e Cruz e Sousa estão ao lado de autores hoje revalorizados, como Luiz Gama, chegando ao contemporâneo Edimilson de Almeida Pereira. Mas o livro também recupera nomes hoje completamente desconhecidos. E claro, alguns mais óbvios, como Machado de Assis, Drummond, Murilo Mendes e Augusto dos Anjos, também aparecem.
Com uma carreira longa como poeta, Alexei diz que está em “uma fase muito profícua”. Nos últimos três anos, lançou três livros: Cerração (2019), Decálogo indigno para os mortos de 2020 (2020) e O sono dos humildes (2021), além de obras editadas em Portugal e na França. “E já tenho outro livro”, diz.
• A escravidão na poesia brasileira abarca um número muito grande de poetas e poemas. São, para você, leituras de uma vida toda, imagino. Mas qual foi o start para que realmente começasse a compilar os textos da antologia?
Sim, leituras de vida toda, inclusive por minha proximidade com alguns poetas bastante ligados ao tema, como Castro Alves e Cruz e Sousa. Entre outras coisas, fui o curador da grande exposição do sesquicentenário de Castro Alves, em 1997, que foi inaugurada em Salvador e correu outras seis capitais. Quanto a Cruz e Sousa, em 1995 fiz uma vasta atualização da sua Obra completa, a partir da edição do centenário organizada pelo Andrade Muricy, e fui curador, em 1998, da exposição do centenário da sua morte, na Biblioteca Nacional, bem como organizei a sua primeira edição em Portugal, lançada ano passado, no Porto — uma antologia longa, que me parece de grande importância. Comecei a compilar os textos antes da pandemia, mas o tempo vago criado por ela foi o elemento definidor.
Meu livro trata do tema da escravidão na poesia do Brasil, o foco é o tema, não me interessam a vida privada ou características morais dos autores, mas os poemas que eles escreveram.
• E como foi, na prática, essa pesquisa e seleção? Onde e como você realizou o trabalho?
Basicamente na minha biblioteca, que é enorme, mais de 20 mil volumes, e utilizando muito a preciosa Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
• Por que reunir poemas sobre esse assunto agora? Era uma lacuna editorial em nossa literatura?
Exatamente, uma lacuna absurda, pois grande parte dos maiores poetas brasileiros tratou do tema, cobrindo um período de três séculos e meio e todas as escolas literárias, barroco, arcadismo, romantismo, parnasianismo, simbolismo, modernismo e o que vem depois. A “nefanda instituição” — para usar uma expressão bem da época — foi extinta há quase 140 anos, mas o tema sobrevive. Não conheço nada semelhante. Chega a ser estranho ninguém ter intentado esse livro antes.
• No texto de introdução ao livro, em que explica suas escolhas, você deixa claro que a escravidão é uma prática milenar e que não aconteceu apenas com os negros, mas também, por exemplo, com os indígenas. Por quê, em nossa literatura, a escravidão negra foi a que mais deixou registros?
A escravidão indígena foi muito importante nos dois primeiros séculos, depois sofreu um rápido declínio. No momento em que a poesia começa a se firmar entre nós, com a exceção de Gregório de Matos, a dominância total era da escravidão africana. Há registros da escravidão indígena em Gonçalves Dias e outros, que cito. Para falar de arte diversa, só como exemplo, uma ópera como Lo Schiavo, de Carlos Gomes, estreada em 1889, trata da escravidão indígena, de índios Tamoios, mas na poesia a sua presença é mínima.
• No seu ensaio, você separa, em alguns blocos temáticos, textos e autores — “a viagem ultramarina”, “a separação das famílias”, “os castigos físicos”, “revoltas e fugas”, etc. Mas há, para você, um sentimento comum que permeia essa vasta produção?
Claro, tudo funciona junto. Se em Alvarenga Peixoto encontramos uma inesperada apologia dos cativos, comparando-os aos heróis da mitologia grega, a visão crítica das atrocidades da escravidão começa a se delinear nas Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. Em pleno período abolicionista, que dura, grosso modo, cerca de quatro décadas, mas que é de uma riqueza espantosa, a percepção dessa espécie de Via Crúcis — é a expressão que utilizo — torna-se explícita e violenta. Esses dez tópicos formam essa espécie de Via Crúcis, e acompanham toda a poesia sobre a escravidão.
• Chama a atenção no livro que Machado de Assis tenha apenas um poema. Isso seria mais um indício de que realmente nosso maior escritor, mesmo sendo negro, não olhou com a devida atenção para assuntos relacionados à raça (preconceito, escravidão, etc.) ao longo de sua trajetória como escritor?
Não, de maneira nenhuma, pois na sua obra em prosa as referências à escravidão são numerosas, e nem poderia deixar de ser assim. Como retratar a sociedade na qual ele viveu até quase quinquagenário sem falar da escravidão? O homem Machado de Assis se considerava negro? O uso desse conceito racialista anglo-saxão não é um anacronismo no seu caso? Se ele era descendente de “pardos libertos” pelo lado paterno, sua mãe era portuguesa. Eu, por exemplo, sou, pelo lado materno, de família brasileira muito velha e, obviamente, muito misturada, com todas as raças imagináveis, mas com uma forte ascendência indígena — ou seja, tecnicamente, eu seria um mameluco. Creio que se eu me declarasse um poeta índio pareceria muito estranho. Um Luiz Gama, um Cruz e Sousa, um Solano Trindade, estes reivindicavam a classificação, o que nunca foi o caso de Machado, que era, aliás, um abolicionista não militante. Curiosamente, nunca ouvi alguém dizer que “Mário de Andrade, mesmo sendo negro,” escreveu ou deixou de escrever determinada coisa.
• Por outro lado, Oswald de Andrade é um autor que é visto como racista por muitos pesquisadores — ele chegou a se referir a Mário de Andrade como “boneca de piche”. Por que resolveu incluí-lo?
A pergunta é outra, por que eu não o incluiria, tenha sido ele racista ou não, se ele escreveu ao menos seis poemas, e muito interessantes, sobre a escravidão, do qual utilizei três? Racista não escreve poesia? Céline, um dos maiores escritores franceses do século 20, era um racista horroroso, e no entanto sua obra é genial. Meu livro trata do tema da escravidão na poesia do Brasil, o foco é o tema, não me interessam a vida privada ou características morais dos autores, mas os poemas que eles escreveram. Nunca encontrei — e comento o fato — um poema a favor da escravidão, um poema escravocrata, fazendo a sua apologia, mas se o encontrasse ele entraria na hora no livro, ainda mais por representar um aspecto desconhecido no tratamento do tema. Para lembrar um caso semelhante: o poeta Carlos Newton Júnior organizou um excelente livro intitulado O cangaço na poesia brasileira, e o cangaço, curiosamente, é outro tema que sobreviveu esteticamente à sua desaparição factual, em 1940, e sobreviveu na literatura, no cinema, nas artes plásticas, no teatro, em tudo. Se existissem poemas sobre o tema escritos por soldados volantes, cangaceiros, coiteiros, etc., ele deveria deixar de reproduzi-los por motivos extra-literários?
• Luiz Gama é exemplo de um autor negro que está tendo um resgate editorial no presente. No seu livro, há vários nomes hoje desconhecidos do público. Entre esses autores, quais você acha que poderiam — ou deveriam — ser resgatados, dada a relevância de suas obras?
Luiz Gama tem valor literário intrínseco para ser lembrado, especialmente como poeta satírico, sem entrar no mérito do grande homem que ele foi. Há outros que têm um valor basicamente histórico, mas um valor histórico muito grande, estes são autores para antologias, o que é um caso diverso. E há poetas perfeitamente desconhecidos como poetas, caso do Xavier da Silveira Júnior, que foi governador do Rio Grande do Norte e prefeito do Rio de 1901 a 1902, e que escreveu uma obra-prima sobre o tema, História de um escravo — poemeto publicado em 1888, numa tiragem de 100 exemplares, do qual ninguém ouviu falar. Esse poemeto é magnífico, e por muita sorte eu tinha o exemplar n. 2 da tiragem original e única. Após digitá-lo integralmente, encontrei outro exemplar com uma longa dedicatória do autor a Machado de Assis.
• Há relativamente poucos nomes contemporâneos na antologia. A escravidão não é um assunto que costuma aparecer entre os autores vivos?
Há vários autores vivos no livro, alguns mais novos do que eu. Claro que o tema permanece — repito isto ad nauseam —, mas não posso reproduzir poemas de um autor vivo sem a sua permissão, é uma obviedade que eu próprio comento no prefácio. Fora isso, autores muito jovens geralmente não atingiram um nível de notoriedade que me permita conhecê-los — o Brasil é o quinto território do mundo e tem mais de 210 milhões de habitantes. Finalmente, o livro já é muito grande, com mais de 700 páginas, eu não poderia ultrapassar tal extensão sem inviabilizá-lo, e não posso retirar dele poemas como Vozes d’África, Banzo ou Essa negra Fulô para abrir espaço a poetas que começam agora a sua vida literária.
• Seu livro surge em um momento em que a cena literária se abre para autores negros. Como tem visto esse cenário?
Com a maior satisfação, e isso não poderia deixar de acontecer. Uma imensa parcela da população brasileira não poderia ficar literariamente representada por apenas uns poucos nomes que conseguiram ultrapassar uma terrível barreira de secular injustiça social.
• Que tipo de reflexão sobre a escravidão o trabalho nesta antologia suscitou em você?
A perenidade do seu efeito nefasto e deletério na formação do Brasil, como Joaquim Nabuco muito bem analisou em O abolicionismo, e como reitero muitas vezes na parte ensaística do livro.