Há dias, como o de hoje, que só os amigos que me cercam, enfileirados nas estantes à minha volta, conseguem me dar respostas e me fazer respirar. Neles, busco o ar que pode oxigenar meu coração e meu cérebro para poder refletir, minimamente, e sobreviver, com luta e esperança ativa, neste território insano que se transformou o Brasil e sua necrótica política pública conduzida por exterminadores do presente.
O dia de hoje, em que escrevo esta coluna, já começa a se transformar em passado, mas será um dia tristemente histórico porque superamos no país, pela primeira vez desde que a Covid-19 surgiu, a horrível marca de mais de dois mil mortos diários. Foram ceifadas precisamente 2.349 vidas, número que precisa ser exato, justamente porque cada um deles significa seres humanos que se foram definitivamente, derrotados pela política pública baseada na necropolítica praticada pelo mais alto mandatário da República e seus consorciados.
Um dos meus amigos salta da estante e me lembra sua história sobre um elefante: “Seu andar perdido, pisando em dúvidas, parecia transportar o passado em suas costas. Não se desfaz da carga do passado. Ele sabia que o futuro é só matéria de fantasia”. (Bartolomeu Campos Queirós, Elefante, obra póstuma, Cosac Naify, 2013)
É o velho amigo Bartô, que escapou desta bestialidade do presente, mas nos deixou tantas palavras, essa coisa perigosa que nos faz pensar e ordenar pensamentos. A “carga do passado” que construímos desde 1º de janeiro de 2019, consolidando a destruição em marcha desde 2015 de políticas públicas inclusivas e acolhedoras dos desvalidos desta nação construída sobre a exclusão e o escravismo, não nos deixará jamais. O passado não é para ser esquecido, o ontem precisa fazer parte de nosso ser, do nosso coletivo, da comunidade de sujeitos que queremos construir, até porque, como nos diz Herbert Marcuse, “esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem”.
Se não nos desfazemos da carga do passado, é preciso saber o que fazer com ela, como tratá-la, como ela pode se tornar insumo de um futuro utópico, aquele que é “um projeto de futuro”, lembrando novamente Marilena Chauí e a possibilidade de transformar a realidade.
Navegando nesses pensamentos, o elefante de Bartô volta-se novamente para mim e me diz: “Busquei me proteger debaixo da asa da liberdade para não interromper a história que vivia sem escolher. É preciso se aninhar na liberdade para ganhar coragem e lutar”.
Muitos não conseguem fazer as inter-relações que faz o elefante do Bartô, porque acham que liberdade e democracia são firulas de “maricas”, desejos exóticos de intelectuais e artistas desocupados. Mas o elefante que sonha o sonho do nosso amigo escritor sabe que, sem liberdade, o nosso passado, que no dia de hoje também soma 270.917 mortes pela pandemia em 12 meses, jamais se transformará em um mundo melhor.
Se estamos fartos da necropolítica, se queremos sair deste poço de sarcasmos sanguinários, contínuos e grotescos, temos que manter a qualquer custo as nossas liberdades democráticas como cidadãos em um país onde prevaleça o estado de direito na política pública.
Será essa liberdade cidadã que poderá abrir caminhos e nos dará coragem para a luta voltada à construção da história que escolhermos viver no futuro.
Se a mantivermos, se resistirmos às cada vez maiores investidas autoritárias e proto-fascistas que nos ameaçam diariamente em declarações bombásticas e twitters amedrontadores, poderemos construir o futuro nas lutas do presente. Lutar pelas boas pautas antiregressivas que se apresentam fartamente nas propostas governamentais não é apenas um dever da cidadania, mas um ato de liberdade na construção do futuro antidistópico.
Em entrevista ao jornalista Leonardo Sakamoto (9 de março de 2021), o neurocientista Miguel Nicolelis declarou, ao se referir à política pública genocida de combate mambembe à Covid-19: “Vivemos uma guerra de extermínio, uma guerra biológica fora de controle”. Neste mesmo dia, recebi um abaixo assinado do Observatório do Conhecimento, da UNE e da Associação de Pós-graduandos denunciando o enorme corte orçamentário que o Governo Federal está praticando contra o “orçamento do conhecimento” destinado às universidades federais, ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, à Capes, aos institutos tecnológicos e aos centros de pesquisas.
Pela proposta orçamentária de 2021 (PLOA) do presidente da República e seu ministro da economia, teremos o menor “orçamento do conhecimento” desde 2007. Se somadas as perdas acumuladas desde 2015, início do aprofundamento da crise política-institucional brasileira, as perdas somam mais de R$ 80 bilhões. Dos R$ 34,1 bilhões de 2014, projeta-se para 2021 R$ 7,9 bilhões.
Como a história não perdoa, e ela acontece diariamente, o patético ser que ocupa o Ministério da Saúde, teve que admitir publicamente neste dia 10 de março de 2021, aos principais canais de TV e para todo o país, que as únicas vacinas contra a pandemia da morte que o Brasil terá no período próximo são aquelas fabricadas pelos institutos Fiocruz e Butantan. Os negacionistas e terraplanistas que cortam o orçamento da área acadêmica, que praticam o populismo barato e cruel, que boicotam o desenvolvimento científico, a educação e a cultura nacional, se socorrem agora nos institutos de pesquisa e na ciência forjada nas universidades e centros altamente tecnológicos públicos para responderem minimamente ao clamor popular por vacinas para todos.
O velho Darcy Ribeiro e sua célebre frase, “a crise de educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”, ecoam novamente. Precisamos de uma vez por todas barrar esse projeto que inviabiliza qualquer desenvolvimento sustentável do país.
Muitos de nós, literatos e artistas, promotores culturais e agentes educacionais, entre tantos que se afiliaram profissionalmente às humanidades, muitas vezes consideramos que a literatura e as lutas pelo livro e a leitura para todos são objetos distintos das demais lutas emancipatórias do povo brasileiro. Penso e afirmo que esta é uma atitude enganosa porque desdenha da política, elo das nossas ações na polis.
Compreender e lutar contra as medidas destrutivas das atuais políticas públicas em seu conjunto, como a degradação de investimentos em ciência, tecnologia e educação, só obterá resultados transformadores se raciocinada e praticada holisticamente com outras lutas reivindicatórias de outros setores. Isto significa que lutar pela implantação de um lockdown nacional e vacinas suficientes para todos, no combate à pandemia orientado pela ciência, deve ser considerado como obrigação de todos, similar à necessidade das nossas lutas históricas pela formação de leitores proficientes, pela preservação dos nossos escritores, editoras, livrarias e bibliotecas, temáticas que, sempre afirmamos, são tarefas de toda a sociedade brasileira e suas instituições.
Oscar Wilde nos dizia que “o Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo”. Caberá a nós, no exercício de nossa liberdade, fazer o futuro mais belo, reivindicando políticas públicas necessárias ao bem estar coletivo.
Já terminava essas leituras compartilhadas quando um outro amigo sai das prateleiras e me alerta para um possível estado que, sempre à espreita, só será evitado pela nossa resiliência irrestrita:
distopias
o lugar possível deixou de existir.
tornou-se nada,
um tristemente nada.
a televisão anuncia os próximos capítulos,
a rua,
seus cacos de vozes.
(Leonardo Tonus, Inquietações em tempos de insônia, Editora Nós, 2019)