Continuo e finalizo aqui o exame de um livro pioneiro sobre as questões patrimoniais comuns aos paĂses de lĂngua portuguesa, numa Ă©poca em que a crĂtica dos processos coloniais já nĂŁo pode ser ignorada. Trata-se de PatrimĂłnios de influĂŞncia portuguesa: modos de olhar, de 2015, coeditado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Editora da Universidade Federal Fluminense, organizado por Walter Rossa e Margarida C. Ribeiro, docentes ligados ao Centro de Estudos Sociais, da Faculdade de Letras da universidade coimbrĂŁ.
Nas trĂŞs colunas anteriores, descrevi sucintamente todos os ensaios que participam do livro, menos aquele que o fecha, de autoria do citado Walter Rossa, docente do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, que começa por reconhecer a relevância de, a partir de 1972, a Unesco ter incorporado uma vertente urbana Ă noção de “paisagem”. Isso teria dado um alento interdisciplinar à área do patrimĂ´nio, depois consolidado em 1992 com a inclusĂŁo da noção de “paisagem cultural”. Ultrapassava-se assim a antiga noção de “centro histĂłrico”, para representar tambĂ©m outros lugares articulados Ă vida presente, nĂŁo apenas a ruĂna arquitetĂ´nica. Para Rossa, porĂ©m, se houve um arejamento conceitual, ainda nĂŁo foi suficiente para conquistar o salto epistemolĂłgico que descolaria a noção de PatrimĂ´nio das teorias de conservação e restauro de bens artĂsticos autĂ´nomos, sem nexo com o territĂłrio e a cidade. O mais prĂłximo desse salto dar-se-ia, para ele, com o conceito de “paisagem urbana histĂłrica”, ou hul (historic urban landscape), cujo uso ainda nĂŁo Ă© consensual nos organismos patrimoniais oficiais.
Feita esta longa (e ao mesmo tempo sumária) apresentação dos trabalhos, deixo aqui alguns breves comentários pessoais, cujo intuito crĂtico Ă© apenas o de responder ao esforço desses ensaios pioneiros em lĂngua portuguesa, que buscam uma visĂŁo mais equilibrada, vale dizer, menos autoritária e menos eurocĂŞntrica, a propĂłsito do patrimĂ´nio cultural dos paĂses envolvidos.
A primeira questĂŁo que me ocorre apĂłs a leitura dos ensaios Ă© que nĂŁo Ă© tĂŁo fácil dar exemplos de obras ou processos culturais que corresponderiam adequadamente a esse novo conceito de patrimĂ´nio. Este tende, em certa medida, a se desmaterializar, passando a exigir menos referĂŞncia direta a obras, monumentos e objetos especĂficos do que a teorias capazes de englobá-los. DaĂ toda a primeira parte do livro ser dedicada a uma revisĂŁo conceitual da área do patrimĂ´nio.
Como mostra o texto de Rossa, nĂŁo se trata mais de permanecer cuidando de restaurar ou documentar obras com risco de desaparecimento, mas de reformular um campo teĂłrico —, doravante nĂŁo mais afeito exclusivamente Ă noção arquitetĂ´nica tradicional de patrimĂ´nio, mas sim associado a teorias sociolĂłgicas e polĂticas de viĂ©s pĂłs-colonial e decolonial. No nĂşcleo delas estĂŁo categorias como “pluralidade”, “diversidade”, “identidade” ou “identidade incompleta”, “sustentabilidade”, “nĂŁo homogeneidade”, “transdisciplinaridade”, “transcriação“, “entre-lugares” etc. É por meio delas que se tenta reinventar a noção de patrimĂ´nio.
Talvez por isso mesmo, as teorias deixam entrever uma perspectiva identitária, politicamente correta e usualmente edificante, que nasce sobretudo de posições liberais de esquerda, as quais mostram sensibilidade diante de diferenças e pluralidades no âmbito das diversas comunidades, especialmente daquelas representativas de minorias ou de grupos oprimidos. São teorias — entretanto ou portanto — que se interessam bem menos pelas contradições materiais que envolvem o terreno conflagrado da expansão capitalista globalizada.
Ocorre que o patrimĂ´nio, com as suas obras, cidades, culturas, existe dentro desse terreno minado da globalização capitalista, na qual toda a área da lĂngua portuguesa está em posição pouco influente, seja em termos teĂłricos ou quaisquer outros. Isso precisa ser considerado, a fim de que o PatrimĂ´nio nĂŁo critique o passado e se entregue a um presente que está longe de ser ideal ou progressista. Ou seja, se nĂŁo queremos mais que a questĂŁo do PatrimĂ´nio seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar atentos a uma crĂtica material do presente para nĂŁo fazer dos estudos pĂłs-coloniais uma Ă©pica da globalização.
Por fim, nĂŁo gostaria de encerrar essa apresentação dos problemas que afligem a integração do PatrimĂ´nio cultural nos paĂses de lĂngua portuguesa, sem aludir ao fato de que, em todos esses ensaios, há pouca discussĂŁo estĂ©tica. NĂŁo Ă© inesperado, mas nĂŁo deixa de ser decepcionante. Ainda que nĂŁo se acredite na autonomia dos objetos artĂsticos em relação Ă biografia dos autores, os seus contextos histĂłricos e as representatividades envolvidas, a noção de “valor artĂstico” está pouco prevista nos ensaios. Se Ă© verdade que cresce a atenção aos direitos e diferenças de cada comunidade, nĂŁo Ă© menos verdade que diminui, na mesma intensidade e proporção, a avaliação crĂtica dos prĂłprios objetos postulados como diferentes do padrĂŁo europeu.
Mas, afinal, pergunto, nĂŁo Ă© relevante saber que categorias seriam adequadas para um juĂzo estĂ©tico do patrimĂ´nio quando ele se associa Ă criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço atĂ© entĂŁo ocupado pelas culturas de um centro hegemĂ´nico? Será que as novas teorias de partilha do PatrimĂ´nio devem necessariamente implicar no sacrifĂcio da estĂ©tica, do objeto de arte, e, enfim, da tĂ©cnica e da qualidade final da obra? Dito de outra forma: ainda quando haja comunidades de direito, sociedades relativamente justas e que convivem bem — o que, porĂ©m, nem de perto está num horizonte realista de um paĂs como o Brasil, que mal consegue usar a cabeça para sair de um pesadelo perverso como o do bolsonarismo —, poderá haver patrimĂ´nio cultural que dispense o debate sobre a forma artĂstica?
Nesse sentido, acho relevante ecoar a consideração de Mirian Tavares, da Universidade do Algarve, um dos poucos autores a articular as noções de patrimĂ´nio e de crĂtica de arte, ao reivindicar para o cinema moçambicano nĂŁo a condição de objeto de etnografia, mas de verdadeira cinematografia; nĂŁo a admissĂŁo do cinema africano como testemunho de uma memĂłria coletiva em extinção, mas como construção de um cinema contemporâneo. Enquanto tal, nĂŁo deve ter o direito de receber um juĂzo crĂtico como qualquer outro cinema sĂ©rio? Se o julgarmos digno de ser proclamado mau nĂŁo será um gesto de reconhecimento maior do que julgá-lo bom por condescendĂŞncia, ou por amor ao folclore?
No meu tempo de menino, quando as crianças menores queriam entrar num jogo, as maiores combinavam entre si que elas eram “cafĂ© com leite” — referindo Ă ideia de que tomavam a bebida mais fraca — para anular o valor das jogadas que faziam. De minha parte, suspeito que, enquanto o juĂzo estĂ©tico entrar de maneira envergonhada na discussĂŁo pĂłs-colonial, o que se evidencia Ă© a face paternalista de todo bom-mocismo.