🔓 Patrimônio cultural em tempos pós-coloniais (4)

Para evitar que a questão do Patrimônio seja uma epopeia do colonialismo, é imprescindível uma crítica material do presente
Ilustração: Amy Maitland
01/04/2023

Continuo e finalizo aqui o exame de um livro pioneiro sobre as questões patrimoniais comuns aos países de língua portuguesa, numa época em que a crítica dos processos coloniais já não pode ser ignorada. Trata-se de Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar, de 2015, coeditado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Editora da Universidade Federal Fluminense, organizado por Walter Rossa e Margarida C. Ribeiro, docentes ligados ao Centro de Estudos Sociais, da Faculdade de Letras da universidade coimbrã.

Nas três colunas anteriores, descrevi sucintamente todos os ensaios que participam do livro, menos aquele que o fecha, de autoria do citado Walter Rossa, docente do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, que começa por reconhecer a relevância de, a partir de 1972, a Unesco ter incorporado uma vertente urbana à noção de “paisagem”. Isso teria dado um alento interdisciplinar à área do patrimônio, depois consolidado em 1992 com a inclusão da noção de “paisagem cultural”. Ultrapassava-se assim a antiga noção de “centro histórico”, para representar também outros lugares articulados à vida presente, não apenas a ruína arquitetônica. Para Rossa, porém, se houve um arejamento conceitual, ainda não foi suficiente para conquistar o salto epistemológico que descolaria a noção de Patrimônio das teorias de conservação e restauro de bens artísticos autônomos, sem nexo com o território e a cidade. O mais próximo desse salto dar-se-ia, para ele, com o conceito de “paisagem urbana histórica”, ou hul (historic urban landscape), cujo uso ainda não é consensual nos organismos patrimoniais oficiais.

Feita esta longa (e ao mesmo tempo sumária) apresentação dos trabalhos, deixo aqui alguns breves comentários pessoais, cujo intuito crítico é apenas o de responder ao esforço desses ensaios pioneiros em língua portuguesa, que buscam uma visão mais equilibrada, vale dizer, menos autoritária e menos eurocêntrica, a propósito do patrimônio cultural dos países envolvidos.

A primeira questão que me ocorre após a leitura dos ensaios é que não é tão fácil dar exemplos de obras ou processos culturais que corresponderiam adequadamente a esse novo conceito de patrimônio. Este tende, em certa medida, a se desmaterializar, passando a exigir menos referência direta a obras, monumentos e objetos específicos do que a teorias capazes de englobá-los. Daí toda a primeira parte do livro ser dedicada a uma revisão conceitual da área do patrimônio.

Como mostra o texto de Rossa, não se trata mais de permanecer cuidando de restaurar ou documentar obras com risco de desaparecimento, mas de reformular um campo teórico —, doravante não mais afeito exclusivamente à noção arquitetônica tradicional de patrimônio, mas sim associado a teorias sociológicas e políticas de viés pós-colonial e decolonial. No núcleo delas estão categorias como “pluralidade”, “diversidade”, “identidade” ou “identidade incompleta”, “sustentabilidade”, “não homogeneidade”, “transdisciplinaridade”, “transcriação“, “entre-lugares” etc. É por meio delas que se tenta reinventar a noção de patrimônio.

Talvez por isso mesmo, as teorias deixam entrever uma perspectiva identitária, politicamente correta e usualmente edificante, que nasce sobretudo de posições liberais de esquerda, as quais mostram sensibilidade diante de diferenças e pluralidades no âmbito das diversas comunidades, especialmente daquelas representativas de minorias ou de grupos oprimidos. São teorias — entretanto ou portanto — que se interessam bem menos pelas contradições materiais que envolvem o terreno conflagrado da expansão capitalista globalizada.

Ocorre que o patrimônio, com as suas obras, cidades, culturas, existe dentro desse terreno minado da globalização capitalista, na qual toda a área da língua portuguesa está em posição pouco influente, seja em termos teóricos ou quaisquer outros. Isso precisa ser considerado, a fim de que o Patrimônio não critique o passado e se entregue a um presente que está longe de ser ideal ou progressista. Ou seja, se não queremos mais que a questão do Patrimônio seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar atentos a uma crítica material do presente para não fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da globalização.

Por fim, não gostaria de encerrar essa apresentação dos problemas que afligem a integração do Patrimônio cultural nos países de língua portuguesa, sem aludir ao fato de que, em todos esses ensaios, há pouca discussão estética. Não é inesperado, mas não deixa de ser decepcionante. Ainda que não se acredite na autonomia dos objetos artísticos em relação à biografia dos autores, os seus contextos históricos e as representatividades envolvidas, a noção de “valor artístico” está pouco prevista nos ensaios. Se é verdade que cresce a atenção aos direitos e diferenças de cada comunidade, não é menos verdade que diminui, na mesma intensidade e proporção, a avaliação crítica dos próprios objetos postulados como diferentes do padrão europeu.

Mas, afinal, pergunto, não é relevante saber que categorias seriam adequadas para um juízo estético do patrimônio quando ele se associa à criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço até então ocupado pelas culturas de um centro hegemônico? Será que as novas teorias de partilha do Patrimônio devem necessariamente implicar no sacrifício da estética, do objeto de arte, e, enfim, da técnica e da qualidade final da obra? Dito de outra forma: ainda quando haja comunidades de direito, sociedades relativamente justas e que convivem bem — o que, porém, nem de perto está num horizonte realista de um país como o Brasil, que mal consegue usar a cabeça para sair de um pesadelo perverso como o do bolsonarismo —, poderá haver patrimônio cultural que dispense o debate sobre a forma artística?

Nesse sentido, acho relevante ecoar a consideração de Mirian Tavares, da Universidade do Algarve, um dos poucos autores a articular as noções de patrimônio e de crítica de arte, ao reivindicar para o cinema moçambicano não a condição de objeto de etnografia, mas de verdadeira cinematografia; não a admissão do cinema africano como testemunho de uma memória coletiva em extinção, mas como construção de um cinema contemporâneo. Enquanto tal, não deve ter o direito de receber um juízo crítico como qualquer outro cinema sério? Se o julgarmos digno de ser proclamado mau não será um gesto de reconhecimento maior do que julgá-lo bom por condescendência, ou por amor ao folclore?

No meu tempo de menino, quando as crianças menores queriam entrar num jogo, as maiores combinavam entre si que elas eram “café com leite” — referindo à ideia de que tomavam a bebida mais fraca — para anular o valor das jogadas que faziam. De minha parte, suspeito que, enquanto o juízo estético entrar de maneira envergonhada na discussão pós-colonial, o que se evidencia é a face paternalista de todo bom-mocismo.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho