🔓 Patrimônio cultural em tempos pós-coloniais (3)

O reposicionamento dos estudos culturais em países de língua portuguesa no âmbito dos debates pós-culturalistas e decoloniais
Ilustração: Miguel Rodrigues
01/03/2023

Prossigo com a apresentação de Patrimónios de influência portuguesa (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015), livro que serve de baliza histórica para o reposicionamento dos estudos culturais em países de língua portuguesa no âmbito dos debates pós-culturalistas e decoloniais.

O segundo autor brasileiro a participar do livro é a historiadora Maria Fernanda Bicalho, da UFF, que trata dos novos recortes da área originados dos estudos anglo-americanos a partir das décadas de 1980-90, cuja base historiográfica já não é a do “Estado-nação”. Ganham então relevo a história atlântica e a história global, com estudos de processos que transcendem regiões, Estados e nações. Para Bicalho, uma das consequências desse novo olhar foi a percepção de que as rotas imperiais eram, muitas vezes, controladas a partir de áreas periféricas, o que afetava a noção de “Império” pelo seu vínculo com famílias empresariais locais. Rompia-se, assim, o modelo de descrição historiográfica colonial baseado apenas na transferência da experiência europeia.

O ensaio de Luís Filipe Oliveira, da Universidade do Algarve, está também centrado em mudanças recentes sofridas pela historiografia, mas desta vez tendo em vista a crítica do valor instrumental dos documentos e do monopólio da investigação científica do passado. A partir delas, os documentos deixaram de ser vistos como “naturais”, que falavam por si mesmos, o que fez com que o núcleo da investigação histórica passasse a ser o caráter discursivo, construído, das representações. Com isso, o historiador passou a sofrer a concorrência não apenas de antropólogos e sociólogos, mas de críticos literários, arquivistas, jornalistas etc. Ou seja, com a mudança do estatuto dos documentos, estes deixaram de entregar o mundo ao historiador, para lhe fornecer apenas termos parciais, cuja verossimilhança precisava ser confrontada com outras informações, testemunhos, gestos, imagens e vestígios arqueológicos. Evidenciou-se também a dimensão monumental atribuída aos próprios documentos, o que Oliveira interpreta como disposição autoritária de criar leituras específicas do passado e de impô-las aos pósteros como universais.

O trabalho seguinte, de Sandra Xavier e Vera Marques Alves, ambas docentes de Coimbra, também refere críticas metodológicas recentes, mas desta vez em relação aos trabalhos antropológicos de campo, seja pela falta de polifonia dos dados, pelo parco questionamento de oposições como “nativo/ não nativo”, seja ainda pela falta de atenção dos pesquisadores para as relações de poder dentro do próprio processo investigativo. Admitindo a pertinência dessas críticas, mas sem abrir mão das exigências de pesquisa quotidiana e de envolvimento com as comunidades estudadas, as autoras referem o surgimento de novas práticas etnográficas, cujo propósito seria o de superar oposições esquemáticas, em favor de um olhar mais sutil para a dinâmica colonial, fazendo emergir vozes dissonantes, narrativas divergentes, conflitos de interesse, políticas incompletas etc.

O estudo seguinte é de Miriam Tavares, da Universidade do Algarve, e ocupa uma posição bem original no volume já que acentua menos a diversidade dos novos olhares do que a necessidade de tratamento igualitário para eles. Assim, após opor os filmes de modelo hollywoodiano a uma cinematografia africana divergente, pensada como lugar possível de poesia e, ao mesmo tempo, de revelação de uma história periférica, mantida invisível, Tavares constata que essa produção é tratada como world cinema, isto é, como se fosse etnografia e não cinematografia. Mesmo visões simpáticas a ela, tendem a reproduzir a visão da África como “paraíso da etnografia”, aprisionada à tradição. Ao fazê-lo, acabam por negar-lhe subjetividade real, dissolvida em traços comunitários a ser preservados como memória à beira da extinção. Vale dizer, a tendência predominante é a de não ver o cinema africano como lugar de criação e de pensamento de indivíduos independentes, com capacidade de abandonar o lugar de objeto para se tornar sujeitos do próprio presente. Para a autora, isso é efeito de uma ideia condescendente da cultura africana, a qual, no fundo, confirma o discurso hegemônico de defesa de uma cultura que não é capaz de sobreviver sozinha.

A historiadora brasileira Ana Maria Mauad, também da UFF, trata dos cuidados com a documentação fotográfica, cuja análise consequente teria de levar em conta o valor atribuído pela sociedade à imagem, bem como a sua capacidade de engendrar narrativas. No caso de fotografias públicas, Mauad acentua que é preciso considerar todo o processo de publicação, arquivamento e guarda, pois, enquanto registro de situações associadas ao Estado, elas têm implicação na redefinição de eventos históricos e na sua inscrição na memória, com ressonância no campo social. No âmbito do Patrimônio, portanto, as imagens não apenas recobrem informes sobre o passado, mas podem instaurar-se a si próprias como monumentos, enquanto esforço de construção de símbolos a ser lançados para o futuro.

Professora de História da Arte em Coimbra, Luísa Trindade considera, por sua vez, as características e propriedades da “imagem desenhada” como instrumento das áreas de Patrimônio arquitetônico e urbanístico. Centrando-se nos séculos 15 e 16 e nos territórios relativos à ação portuguesa, observa que o desenho era entendido como representação gráfica, com propriedade verossímil, feita na presença do objeto. No caso das imagens de cidade, a imagem poderia tanto estar centrada na sua materialidade física (urbs), como na sua comunidade humana (civitas). Nos dois casos, para a autora, há uma eloquência própria dos mapas a ser considerada, na qual a moldura técnica se funde à político-social. Assim, quando se trata de representação da civitas, apenas Lisboa é desenhada, o que revela o nexo entre a ideia de cidade e a de centro de poder.

O arquiteto José Pessôa, da UFF, observa que, desde o século 19, a arquitetura tem sido o principal objeto do Patrimônio histórico nacional, com suas igrejas, palácios, castelos etc. sendo considerados elementos privilegiados a fornecer identidade às nações. Por isso mesmo, são o principal objeto de restauro e de ações de conservação. Pessôa ressalta, entretanto, que desde a Carta de Veneza, de 1964, a noção de monumento histórico mudou bastante, abrangendo também a arquitetura de prédios mais modestos, urbanos e rurais. Nesse novo contexto, sugere que a forma mais adequada de se falar de um Patrimônio arquitetônico comum aos países de língua portuguesa, poderia partir das considerações do arquiteto brasileiro Lúcio Costa segundo a qual, pela ampla mistura de influência e de autonomia nos edifícios coloniais, os “modos de ser” portugueses ali encontrados “foram sempre brasileiros”. Trata-se, contudo, de uma fórmula conciliatória que, a meu ver, dificilmente chegaria a ser considerada satisfatória em termos contemporâneos. Disso, falo mais tarde.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho