🔓 Patrimônio cultural em tempos pós-coloniais (2)

Ensaios discutem e buscam entender o significado de patrimônio na relação de Portugal com suas ex-colônias
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2023

A categoria de “patrimônio”, entendida como suposto legado cultural “comum” entre as colônias e as antigas sedes europeias, já não pode ser aplicada sem várias distinções e atualizações conceituais que consideram a necessidade de maior equidade no tratamento do passado dos países envolvidos a fim de que possam ter algum futuro compartilhado por todos. Foi esse aggiornamento abrangente e pioneiro em língua portuguesa que pretendeu fazer o livro Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar (publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra/Fundação Calouste Gulbenkian/Editora da Universidade Federal Fluminense, em 2015), com curadoria de Walter Rossa e Margarida C. Ribeiro, do Centro de Estudos Sociais, de Coimbra.

A primeira parte do livro, mais conceitual, já comentei na coluna de janeiro (#273). Ocorre-me, agora, que ela ficou toda a cargo de estudiosos europeus, detalhe que não é especialmente auspicioso para os seus propósitos equânimes. E antes de passar à descrição dos estudos seguintes, cabe mencionar que, no miolo do livro, vem publicada uma entrevista dos organizadores com o pensador e crítico português Eduardo Lourenço, recentemente falecido. Grande intérprete de Fernando Pessoa, Lourenço viveu por anos no Brasil, deu aulas como professor visitante na Bahia, conviveu com Glauber Rocha, e, bem mais tarde, veio também lecionar por um semestre na Unicamp, onde pude conhecê-lo e desfrutar da sua inteligência.

Eduardo Lourenço pensou de maneira original o impacto da guerra das colônias em Portugal. Na sua entrevista, destoando um pouco dos demais estudos, ele não me pareceu exatamente interessado na discussão do pós-colonialismo, ao menos não da maneira como vinha sendo tratada ao longo do volume. A sua reflexão poderia ser entendida sobretudo como um esforço de caracterizar um grande paradoxo na maneira como Portugal e os portugueses pensam usualmente as suas relações com as ex-colônias africanas, cujo cerne estaria em imaginar que não está completamente perdido o que, entretanto, se perdeu — paradoxo, acrescento, de que não está isento este mesmo volume de estudos que pretende contribuir para a sua superação.

Falando especificamente do Brasil, Lourenço acha que ele se insere de maneira menos dramática nesse paradoxo, porque a ilusão portuguesa de não o ter perdido é mais ou menos sustentada pela ausência de uma insurreição bélica duradoura e abrangente contra a sede portuguesa, o que autorizaria alguma ideia de continuidade histórica com o passado colonial. Já em relação à África, Lourenço vê rigorosamente a consumação de uma tragédia cujo traço inapagável é a promoção do Reino às custas da escravidão dos povos em contato. O fato lhe parece ainda agravado pela ausência de qualquer cultura humanística por parte dos agentes portugueses da intervenção africana, a qual permitisse aos pósteros sequer sublimar a brutalidade dela ou a superficialidade das suas trocas por uma interpelação intelectual crítica das próprias contradições imperiais.

Em seguida à entrevista de Eduardo Lourenço, abre-se a segunda parte do livro dedicada a monografias e estudos de casos.

A primeira intervenção cabe a uma das curadoras do volume, Margarida C. Ribeiro, cuja investigação busca verificar como uma lei emanada do poder colonial admite ainda, de alguma maneira, a inscrição de diferenças ou mesmo a sua reversão em instrumento de emancipação. Na carta de Caminha, por exemplo, a autora observa não um desejo de inferiorização do outro, mas certo espanto e dificuldade diante da diferença. Haveria ali uma hesitação entre o comprometimento religioso com a velha Europa e uma visão idílica do novo mundo, de modo que o poder vinculado à língua imperial é também o testemunho de um “encontro” que o transcende. Um projeto renovado do patrimônio de influência portuguesa teria justamente de investir nesse encontro e resgatar discursos nas margens do discurso colonial, buscar identidades rasuradas, histórias silenciadas, revelar inscrições de diferenças na língua portuguesa que rompessem com uma história autoritária de mão única.

O primeiro autor não europeu escreve a seguir. Trata-se de Francisco Noa, professor de literatura moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo. O núcleo de sua intervenção é o de que a literatura oficial portuguesa tendeu sempre a produzir um imaginário colonial vinculado ao rebaixamento dos povos dos territórios conquistados. Insurgir-se contra esse imaginário é, para ele, a principal tarefa dos criadores moçambicanos que escrevem em português, revelando pluralidades, configurando-as como ensaios de gestação de novos poderes, que tanto podem tomar a forma de denúncia e de confrontação, como a de um novo projeto fundacional. Em termos gerais, Noa entende que um projeto literário anticolonial está sobretudo ligado à obrigação de não esquecer as misérias da colonização e de narrar a catástrofe coletiva que culminou nas guerras da África.

Segue-se o primeiro estudioso brasileiro a participar do volume, Sílvio Renato Jorge, da Universidade Federal Fluminense, que retoma a sério a fórmula de Oswald de Andrade segundo a qual “só a Antropofagia nos une”, o que não deixa de ter parentesco com o que têm feito outros estudiosos cariocas atuais ao reler as ideias de “antropofagia” do modernismo paulista dos anos 20 do século passado. A ideia destacada por Renato Jorge é a de que a constituição do “diferente” depende primordialmente da deglutição do estrangeiro. Articulando Derrida com a releitura de Oswald empreendida pelos concretos a partir da década de 1950, reafirma um princípio de tradução e de “transcriação” a operar entre as culturas, o qual deve reconhecer tanto as multiplicidades irredutíveis entre si como as equivalências sem identidade. A violência seria um componente inerente da cena político-literária das traduções, pois o privilégio de qualquer aspecto necessariamente implica na redução de outro. O autor concede, entretanto, que o gesto interpretativo admite espaços de negociação, “entre-lugares” favoráveis a processos de cisão e hibridização que forneceriam uma base renovada para o entendimento de um “patrimônio de influência portuguesa”.

Graça dos Santos, docente de História Cultural na Universidade de Paris Ouest Nanterre, trata a seguir dos patrimônios especificamente vinculados à emigração. Em seu estudo, a autora considera haver uma imaginação própria de cada língua, o que é explorado pela companhia teatral que cofundou, a Cá e Lá (Compagnie bilingue français/portugais), composta de imigrantes portugueses na França. Os temas da dupla cultura, da dupla pertença, dos diversos tipos de comportamentos dos portugueses considerados “defasados” em relação ao modelo francês, constituem o núcleo das representações do grupo. Nestas, o instrumento fundamental de criação é o humor, entendido por Santos como estratégia tanto para rir de si, como para levar a sério a questão de uma “cultura bastarda” no âmbito de outra dominante.

(Continua na próxima edição)

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho