🔓 Patrimônio cultural em tempos pós-coloniais (1)

A noção de “patrimônio”, enquanto representação relevante do legado cultural de um povo, precisa ser repensada em novas bases teóricas
Ilustração: Miguel Rodrigues
01/01/2023

Entre os lugares-comuns dos estudos acadêmicos hoje, poucos são tão dominantes como os de pós-colonialismo e decolonialismo, que dizem respeito ao redimensionamento crítico dos processos de colonização europeia dos demais continentes, o que inclui a crítica da bibliografia utilizada para pensá-los. Nesse contexto conceitual, a noção de “patrimônio”, enquanto representação relevante do legado cultural de um povo, precisa ser repensada em novas bases teóricas. É o que pretende fazer o volume Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de olhar (Imprensa da Universidade de Coimbra/Fundação Calouste Gulbenkian/Editora da Universidade Federal Fluminense, 2015), organizado por Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro, pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra.

Preocupado em evidenciar as assimetrias do processo colonial, os trabalhos aí reunidos se propõem como um gesto em favor da integração do patrimônio das diferentes culturas, países e territórios envolvidos — notadamente em Portugal, Brasil e áreas dos continentes africano e asiático —, mas, ao mesmo tempo, com uma clara disposição de recusa de fantasias nostálgicas e autoritárias associadas à pressuposição de identidade “fraternal” desses povos. Além disso, os autores incluídos no volume pretendem integrar à noção de patrimônio a de “sustentabilidade cultural”, isto é, concebê-la como plataforma de interação entre as áreas de preservação e de ação político-cultural, num contexto de cooperação entre os povos e de reconhecimento da cultura do outro.

Trata-se, portanto, de um esforço interdisciplinar análogo ao dos critical heritage studies [estudos críticos do patrimônio], presentes nas Universidades anglo-americanas desde meados dos anos 80, o que proporciona ao conjunto dos trabalhos uma visada crítica do eurocentrismo e uma disposição para compreender a noção de “patrimônio” por meio de uma pluralidade de olhares distintos. Daí o alerta que os organizadores fazem no sentido de que uma concepção renovada de “patrimônio” deve ser entendida como um “operador histórico”, estruturado pela língua que vem de Portugal, mas dinamizado por diferentes tempos e geografias, que mais celebram as diferenças existentes numa determinada rede de territórios do que qualquer essência comum entre eles.

O veterano crítico português Helder Macedo abre os trabalhos ocupando-se das noções de “língua”, “comunidade” e “conhecimento” a fim de destacar o fato de que o contato com a língua de poder tende à manipulação das outras culturas e conhecimentos em favor próprio, reduzindo-os a um lugar periférico, quando não condenando-os à desaparição. Nesse processo, chamado por Macedo de “solipsismo de centro”, o papel-chave é atribuído à língua, pensada sobretudo como instrumento do imperialismo nacionalista da matriz.

O trabalho seguinte, da pesquisadora Renata Araújo, da Universidade do Algarve, discute os conceitos de “influência”, “origem” e “matriz”. Dos três, ela supõe no primeiro, que dá título do volume, menor investimento hierárquico e, portanto, maior possibilidade de incorporar noções de reciprocidade, assim como de postular para o patrimônio um futuro que dê menos margem a mistificações nacionalistas. Na sua perspectiva, uma geografia de difusão “influente” deveria ser mais centrífuga que centrípeta, considerando resistências e hibridações encontradas nas antigas colônias em contraste com os aspectos mais coercitivos da matriz. Nesse novo registro, as expectativas seriam as de superação do mito étnico da origem em favor do reconhecimento de processos de contaminação recíprocos, que dariam margem a uma verdadeira partilha das heranças.

Segue-se o trabalho do pesquisador italiano Roberto Vecchi, da Universidade de Bologna, que trata dos conceitos de “identidade”, “herança” e “pertença”, ressignificando-os em termos de relação com o “outro”. A partir daí, o patrimônio dos diferentes povos envolvidos no processo colonial seria pensado não mais como “igual”, mas “em-comum”. A mesma fórmula seria aplicada na redefinição da ideia de “comunidade”, de modo que a noção de “identidade” — integral, plena, nostálgica — desse lugar a uma nova ideia predominante, a de comunidade incompleta, não homogênea e constituída pela falta.

Antonio Sousa Ribeiro, da Universidade de Coimbra, trata a seguir da questão da “memória”, tomando a mesma direção contra-hegemônica dos trabalhos anteriores. Para ele, os estudos da memória devem abrigar uma visão “transdisciplinar”, atenta aos quadros sociais implicados aí, o que valorizaria, por sua vez, uma memória pública consciente das catástrofes históricas, e, portanto, mais capaz de valorizar o reverso das histórias triunfais dominantes. Nessa perspectiva, o pesquisador julga que ganham força os estudos da violência e também os estudos pós-coloniais, nos quais se é obrigado a considerar patrimônios que foram silenciados, e que existem hoje em formas praticamente imateriais.

Miguel Bandeira Jerónimo, outro pesquisador da Universidade de Coimbra, trata em particular da justificativa usual do colonialismo moderno como “missão civilizadora” e, portanto, como empresa de “elevação moral dos povos atrasados”. Contudo, Jerónimo demonstra como as leis imperiais evidenciavam um inequívoco “racismo institucionalizado” a operar como legalização do trabalho forçado. A finalidade última de tais leis, nada civilizada, seria a sua autoperpetuação, vale dizer, a preservação do Império, ainda que as ideologias imperiais se recobrissem de uma plasticidade que lhes permitia tomar a forma de eventuais ações benevolentes, como as de supressão da escravatura, do tráfico negreiro, e enfim de incorporar nelas motivações religiosas e humanitárias.

Fecha essa primeira parte dos estudos, reservada àqueles de natureza conceitual, o historiador português Francisco Bethencourt, do King’s College. Tematizando as noções de “colonização” e de “pós-colonização”, o autor destaca nelas dois processos concomitantes: o de coisificação do colonizado pelo colonizador, em que cada um deles habita mundos excludentes, e o de interiorização da repressão pelo próprio oprimido. Compreendendo a crítica “pós-colonial” como análise de teor marxista de sociedades não europeias, Bethencourt ressalta ainda a difícil emancipação dos povos colonizados da mentalidade de oprimido, bem como as contradições existentes dentro das próprias perspectivas anti-colonialistas, como a desigualdade na esfera de poder nos países independentes, a apropriação do aparelho do estado por pequenos grupos, a irrupção de neopatrimonialismos e clientelismos etc.

Isto posto, o autor considera que o termo “influência” não está dissociado da ideia de submissão a alguém que exerce algum direito de domínio, de modo que o propósito de pensar o patrimônio em termos mais igualitários teria de ser o resultado de uma luta pela “memória coletiva” no bojo de lutas sociais e de projetos políticos divergentes.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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