🔓 Patrícia Lavelle

Ensaio fotográfico de Patrícia Lavelle
Foto: Ozias Filho
01/04/2023

Um recorte da realidade que julgamos interpretar segundo os nossos olhos ávidos de certezas. Um recorte de um texto que aproveitamos do fruto para plantarmos uma outra árvore. No entanto, quem vê recortes, pedaços de enredos, consegue ver o filme em toda a sua plenitude de nuances? Ou um retalho, parte do todo, cabe como parte de um todo na realidade de outrem que também constrói os seus edifícios?

Nesta imensa Babel que pulsa por todos os lados, Patrícia Lavelle não se coíbe de utilizar um material já previamente usado, recortando de outro jeito, e a partir daí construir um outro tecido, o seu próprio retalho, ou o seu todo poético. Para Lavelle, esta também é uma forma de conversar com outras vozes da escrita, que porventura também beberam em outras fontes e edificaram os seus textos, tecido com recortes de outros textos. “É um modo de pensar a historicidade dos textos”, sublinha a poeta, que diz num dos seus poemas:

Escrevo com restos e ruínas
(e nisso essa primeira pessoa
nem é muito singular).
Coleciono metáforas antigas,
faço mitologias micrológicas,
reciclo toponímias usadas,
e falo disto para dizer aquilo
e digo aquilo para falar disto.

Assumo o retalho acima, restos de um edifício construído, um excerto do poema Poética em retalhos, que é uma parte de um todo maior, um livro chamado Bye bye Babel, e em certa medida, o utilizo nas realidades que me questionam, textos que são escritos cotidianamente à frente dos olhos.

Somos um e também somos outro, parte e completude, recortes em trânsito pelo dia afora. Que máscaras sou hoje quando acordo, que caras e bocas assumo quando peço um café na padaria da esquina, quem é este que está na rotina do trabalho, que amante beija a namorada no encontro ao final do dia? Sou o mesmo que se deitou ontem, ou no sono ensaio uma metamorfose qualquer, e renasço na manhã seguinte, camaleão do estado de espírito? Qual o fragmento da realidade que roubo e acrescento à minha personalidade neste dia? Somos a um só tempo o retalho e o todo, ou simplesmente a aparência perfeita de um todo, que só existe no desejo?

Com os meus olhos crus só consigo ver, só consigo ser, a parte e o todo desta ínfima peça de puzzle de um jogo maior. Com os meus olhos de incertezas, só consigo sentir este grande quebra-cabeças que é o viver.

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

 

Patrícia Lavelle
Em poesia, publicou Sombras longas (Relicário) e Bye bye Babel (7Letras), menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte e cuja reescrita autoral está no prelo. Contribuiu com poemas e traduções de poesia para revistas como Po&sie e Place de La Sorbonne e foi traduzida em espanhol, francês e inglês. Participou das antologias Um Brasil ainda em chamas, Brésil: poésie intraitable, Poetas contemporâneas do Brasil. Professora da PUC-Rio, é doutora em filosofia e também autora de ensaios, entre os quais Walter Benjamin metacrítico.
Ozias Filho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1962. É poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do dilúvioPáginas despidas, O relógio avariado de DeusInsularesOs cavalos adoram maçãs e Insanos, estes dois últimos, em 2023). Como fotógrafo tem vários livros publicados e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017. Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil, Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991.

Rascunho