Um recorte da realidade que julgamos interpretar segundo os nossos olhos ávidos de certezas. Um recorte de um texto que aproveitamos do fruto para plantarmos uma outra árvore. No entanto, quem vĂŞ recortes, pedaços de enredos, consegue ver o filme em toda a sua plenitude de nuances? Ou um retalho, parte do todo, cabe como parte de um todo na realidade de outrem que tambĂ©m constrĂłi os seus edifĂcios?
Nesta imensa Babel que pulsa por todos os lados, PatrĂcia Lavelle nĂŁo se coĂbe de utilizar um material já previamente usado, recortando de outro jeito, e a partir daĂ construir um outro tecido, o seu prĂłprio retalho, ou o seu todo poĂ©tico. Para Lavelle, esta tambĂ©m Ă© uma forma de conversar com outras vozes da escrita, que porventura tambĂ©m beberam em outras fontes e edificaram os seus textos, tecido com recortes de outros textos. “É um modo de pensar a historicidade dos textos”, sublinha a poeta, que diz num dos seus poemas:
Escrevo com restos e ruĂnas
(e nisso essa primeira pessoa
nem Ă© muito singular).
Coleciono metáforas antigas,
faço mitologias micrológicas,
reciclo toponĂmias usadas,
e falo disto para dizer aquilo
e digo aquilo para falar disto.
Assumo o retalho acima, restos de um edifĂcio construĂdo, um excerto do poema PoĂ©tica em retalhos, que Ă© uma parte de um todo maior, um livro chamado Bye bye Babel, e em certa medida, o utilizo nas realidades que me questionam, textos que sĂŁo escritos cotidianamente Ă frente dos olhos.
Somos um e tambĂ©m somos outro, parte e completude, recortes em trânsito pelo dia afora. Que máscaras sou hoje quando acordo, que caras e bocas assumo quando peço um cafĂ© na padaria da esquina, quem Ă© este que está na rotina do trabalho, que amante beija a namorada no encontro ao final do dia? Sou o mesmo que se deitou ontem, ou no sono ensaio uma metamorfose qualquer, e renasço na manhĂŁ seguinte, camaleĂŁo do estado de espĂrito? Qual o fragmento da realidade que roubo e acrescento Ă minha personalidade neste dia? Somos a um sĂł tempo o retalho e o todo, ou simplesmente a aparĂŞncia perfeita de um todo, que sĂł existe no desejo?
Com os meus olhos crus sĂł consigo ver, sĂł consigo ser, a parte e o todo desta Ănfima peça de puzzle de um jogo maior. Com os meus olhos de incertezas, sĂł consigo sentir este grande quebra-cabeças que Ă© o viver.

…

…

…

…

…

…

…

…
