🔓 Para onde vamos?

A partir da inspiradora trajetória intelectual de Antonio Candido, o autor reflete sobre as ações que podem levar a novos caminhos na formação do cidadão
Ilustração: Taise Dourado
01/09/2021

A ideia de uma sociedade letrada vem de longe, seria ocioso relembrar aqui esse percurso que se perde nos séculos da história e da filosofia. O que mais me importa hoje é como continuamos a persegui-la. Nem todos, é verdade, mas um bom punhado de gente continua a construí-la, voltando suas vidas a cumprir antigos desejos de uma humanidade emancipada pela razão, pelo entendimento, pela ajuda mútua raciocinada na resolução dos seus incontáveis problemas para viver em comunidade. Foi da reflexão sobre essa enorme dificuldade em vivermos comunitariamente que surgiram utopias tão transformadoras e necessárias como a ideia da democracia e de suas políticas públicas voltadas para eleger o interesse coletivo, e não os individualismos limitadores, como ponto central de convergência quando tratamos de ações do Estado voltadas para a maioria da população.

A tragédia sanitária mundial que nos aflige mostrou, ao lado de tantos horrores e descalabros de dirigentes políticos, um número imenso de seres humanos com enormes conhecimentos e habilidades para fazer valer a vida sobre a morte estúpida, causada pela pandemia desconhecida até poucos meses atrás. Milhares de textos já louvam os infectologistas, os virologistas, os médicos, os químicos e bioquímicos e cientistas que, formados no conhecimento, souberam ler o novo vírus e produzir, em consequência, as vacinas que pouco a pouco o estão contendo. Mais do que isso, antes dela surgir, foram repartindo conosco orientações sanitárias fundamentais de prevenção, proporcionando proteção à vida além das crendices, sandices e terraplanices.

Seria fascinante se pudéssemos conhecê-los todos, buscar como se construíram como indivíduos pensantes que se constroem pela busca do conhecimento, como sabemos de alguns na história da ciência, à exemplo de Marie e Pierre Curie. O que será que pensam, enquanto intelectuais atuantes em seus vários campos de atividade, dessa utópica sociedade do conhecimento a partir de sua própria ação propositiva a favor dos outros seres humanos e pela vida?

Fiz essa leitura, aqui compartilhada, quando li a biografia de um gigante que já cumpriu este percurso de vida, agora retratado no magnífico A formação de Antonio Candido — Uma biografia ilustrada, escrito e editado por Ana Luísa Escorel, da primorosa e elegante Editora Ouro sobre Azul (2020). Ao percorrer a vida deste grande mestre, narrada pelo próprio Antonio Candido ou por sua filha Ana Luísa, encontramos algo como um fio de conhecimento sendo tecido, emaranhado pela sua origem familiar e pelas relações que construiu em todo o seu percurso, instigando nossas próprias leituras já feitas da obra de Candido.

Como não voltar a ler Os parceiros do Rio Bonito com olhos ainda mais aguçados? Ao revisitar este livro referencial, que desnudou as relações no campo de um Brasil estruturalmente desigual também nas cidades, pensei na infância e juventude de Candido na pequena Cássia, onde seu avô era o chefe político e dono de terras, retrato de uma época. O que levaria aquele menino, nascido em 1918, a elaborar um conhecimento tão contundentemente crítico que dialogava objetivamente com sua própria história familiar e nos dava a conhecer o Brasil? E como projetava magistralmente, na sua crítica rigorosa e impessoal de uma sociedade rural marcada pela desigualdade, e sem nenhuma palavra panfletária, a utopia de uma sociedade mais equânime, justa no reconhecimento do direito de todos à vida digna? O socialismo que defendia foi uma posição conquistada por um percurso onde a leitura do mundo se aprofundou de maneira notável com a leitura da palavra, dos conceitos, dos tratados do pensamento originados nos métodos científicos e na elaboração criteriosa das ideias. Nele, é certo e notório, juntava-se uma fortaleza moral e um olhar para os outros seres humanos marcado pelo que há de melhor na humanidade que são o acolhimento do outro e a generosidade do compartilhamento, mas suas contribuições teóricas não prescindiram de sua leitura social do universo brasileiro e do mundo construído no duro século 20, impossíveis de serem realizadas sem o sólido conhecimento que conquistou.

É inevitável pensar na angústia da dificuldade e na absoluta necessidade e evidência de formarmos novos seres humanos que tenham essa capacidade crítica que louvamos em Antonio Candido e nos nossos cientistas contemporâneos. No Brasil com 12% de leitores proficientes, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional de 2018, como acelerar essa construção senão por políticas públicas generosas, de Estado, voltadas para a construção do bem comum e de um projeto político de um país que pratique o desenvolvimento sustentável?

A angústia gerada pela atual conjuntura política proto-fascista é superlativa e perturba o conceito freireano de “esperançar” em Pedagogia da esperança, mas procuro colocá-la na história e nos seus avanços tímidos, titubeantes, às vezes com um passo à frente, dois atrás, outros dando saltos de conquistas, conseguindo produzir além dos caminhos intelectuais individuais como o de Antonio Candido ou de muitos cientistas que ainda desconhecemos.

O escritor e médico, saudoso amigo Moacyr Scliar, me ajudou a reforçar esse modo de encarar a angústia do nosso atraso com uma reflexão quando caminhávamos ao final da tarde na orla carioca, anos atrás, do início virtuoso do Plano Nacional do Livro e Leitura — PNLL. Me dizia: “Sou médico sanitarista e quando me iniciei na profissão a mortalidade infantil era estratosférica porque não havia nenhuma política pública para atender às famílias. É claro que hoje uma única morte por ausência de saneamento é injustificável, mas é preciso constatar que decorridos 50 anos desde minha estreia na saúde, a situação melhorou muito”. E completava: assim será em todas as coisas se continuarmos a insistir. E daí começamos a lembrar dos milhares de projetos de formação de leitores que existiam (e ainda existem) no país e de como esse esforço coletivo vai construindo, embora sem escala de política pública, um país com pessoas mais bem formadas para tomar parte e voz ativa na sociedade do conhecimento.

Observemos o recente Mapeamento dos Planos Estaduais e Municipais de Leitura, realizado pela Rede LEQT/GIFE e coordenado por mim e por Renata Costa. Nele, em plena pandemia, e com o PNLL soterrado pela barbárie bolsonarista, identificamos 12 estados com Planos Estaduais de Livro e Leitura e 153 municípios com Planos Municipais construídos ou em construção. Os Planos de Leitura, em todos os níveis, são indícios de políticas públicas que reforçam a imensa maioria de ações pró-leitura e escrita da sociedade civil e são um índice importante de resistência que reacendem o nosso esperançar. Com todas as dificuldades, e graus diferentes de desenvolvimento, essas cidades e estados seguem buscando os múltiplos caminhos da leitura, sem espaço para o desânimo e a paralisia do medo.

É preciso lembrar: toda ação é fundamental, toda ação pela leitura que nos forneça caminhos novos, entendimento e livre arbítrio é crucial na formação do cidadão e um direito da cidadania.

Se cada biblioteca pública, se cada escola pública do país, se cada praça pública das pequenas, médias e grandes cidades se abrir para uma atividade sistemática e formadora de leitores, realizando saraus, leituras e aulas públicas, interlocução e feiras de seus escritores locais, festas literárias, enfim, um rol diverso de atividades abertas e de baixo custo, com objetivos de valorizar o seu território e seus criadores e leitores, muito podemos avançar e resistir até que o poder público federal volte a ter alguma racionalidade que não seja a da destruição que serve à morte e volte a fomentar o livro, a leitura, a literatura e a biblioteca.

Esperançar é a palavra que acompanha o nosso bom dia nos tempos da desesperança.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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