Como encarar o ano que começa, se o que terminou deixou sufocada a utópica esperança de que insistimos em reiterar a cada 12 meses? 2021 ao herdar a brutalidade da pandemia, e um mundo ameaçado pelas irracionalidades e incivilidades de um cotidiano igualmente brutal, certamente reafirmará uma das nossas muitas dualidades, aquela que nos faz olhar exclusivamente para a nossa individualidade, em contraposição ao coletivo, a polis, a inescapável convivência entre os seres humanos.
Espero que neste 2021 reflitamos sobre o que os Ăşltimos anos nos ensinaram, principalmente nas derrotas da polĂtica que se quer democrática. Essa leitura compartilhada Ă© para os que carregam o mesmo anseio que me conduz como cidadĂŁo. Dentre os milhões de concidadĂŁos que compartilham este meu anseio, há milhares que tĂŞm no livro, na leitura, na literatura e nas bibliotecas o seu norte, e sua profissĂŁo. Para eles, principalmente, compartilho esta coluna.
Na tensĂŁo dos nossos casulos familiares, buscamos saĂdas. A persistĂŞncia dos isolamentos sociais impostos pela pandemia criou, pelo menos para as classes privilegiadas da pirâmide social, um falso mundo de relações virtuais que está longe de ser algo social e emocionalmente saudável para a contĂnua construção de comunidades de sujeitos e de sociedades democráticas.
Em paĂses como o Brasil, com uma cultura polĂtica fraca, que se contenta com explicações simplĂłrias de questões complexas, a ampliação das conexões virtuais pode trazer a falsa impressĂŁo de que o chamado “militante de Facebook” conseguirá mudanças substantivas das barbáries polĂticas dos mandatários. Se absorvermos de vez este grito passivo, correremos o risco de prolongarmos o estado destrutivo da atual polĂtica brasileira.
O espaço de opiniĂŁo aberta, ou de desabafo, nas redes, utilizada individualmente, nĂŁo Ă© suficiente para mudar o que Ă© substantivo. O que resultaram os inĂşmeros insultos ao casal presidencial que, em meio a 180 mil mortos pela pandemia em dezembro, montaram e se refestelaram com uma exposição fashionista brega de seus trajes de posse no Palácio do Planalto, centro do poder executivo? Ou o que resultaram os apupos virtuais ao Secretário Especial de Cultura, que posou fortemente armado em estande de tiros ao mesmo tempo em que alveja por atos e omissões a tradição cultural rica e diversa do paĂs?
NĂŁo nos faltam exemplos do combate e da reação das redes contra as barbáries cotidianas da polĂtica pĂşblica. E igualmente nĂŁo nos faltam resultados pĂfios, aparentes ou nulos para todo esse esforço militante na virtualidade individualista.
A pandemia que nos força ao isolamento nĂŁo deveria obscurecer o principal: estamos caminhando na disputa polĂtica virtual com os mesmos equĂvocos polĂticos que caminhamos nas ruas e nos parlamentos. Alguns desses equĂvocos sĂŁo visĂveis.
O mais evidente Ă© a desarticulação polĂtica das instituições que atĂ© há poucos anos conseguiam catalisar as reações Ă s medidas antipopulares e antidemocráticas de qualquer governo. A dispersĂŁo dos Ăşltimos anos, a compartimentalização de movimentos sociais, somados Ă rejeição da ideia e atuação de partidos polĂticos, Ă© a face mais visĂvel de lideranças que nĂŁo conseguem se articular para a representação polĂtica das várias expressões da sociedade. Cada vez mais os movimentos se organizam em torno de questões especĂficas, setoriais e imediatas, e nĂŁo conseguem construir uma diretriz de atuação que tenha densidade para aglutinar, com argumentos sĂłlidos, uma massa cada vez maior de cidadĂŁos que se organizem e ajam em conjunto. DaĂ vem a efemeridade das manifestações populares nos Ăşltimos anos. Em um dia temos milhares tomando as ruas e as redes sociais em protestos e nas semanas e meses seguintes o vácuo dos silĂŞncios nos meios virtuais e nas ruas. A explosĂŁo efĂŞmera obterá, no máximo, a contenção parcial e limitada da barbárie, jamais irá impedi-la de continuar solapando direitos e a democracia.
Outra evidĂŞncia da nossa debilidade polĂtica Ă© a incapacidade de construção de pautas e reivindicações comuns, que podem ser construĂdas alĂ©m de suspeitos pactos de frentes polĂticas, mais afeitas a situações eleitorais e que ainda carregam a desconfiança mĂştua entre seus membros, como bomba relĂłgio de sua explosĂŁo futura. Os atuais partidos de centro, centro-esquerda e esquerda, tĂŞm pontos programáticos em comum face ao retrocesso democrático, mas se mostram incapazes de reunir esses programas mĂnimos de atuação para trabalharem em conjunto com temas que sejam necessários, compreendidas e apoiadas pela maioria da população. Se partido Ă© parte, como a prĂłpria palavra expressa, as polĂticas centrais que o paĂs necessita podem ter uma dimensĂŁo unitária, suprapartidária sem prescindir dos partidos, nesses momentos de emergĂŞncia nacional. Encontrar um norte, escutar a população, organizá-la para reivindicações unitárias, isto Ă© o que me parece urgente na polĂtica em todos os nĂveis.
Urge que as lideranças populares consigam proximidade e diálogo com a maioria da população, hoje assediada por falsos religiosos domesticadores, por profetas neoliberais pregadores da meritocracia enganosa, por populismos de todas as ordens e, cada vez mais, por ações de todos esses grupos visando a manutenção de um povo iletrado, sem acesso Ă informação, Ă leitura, Ă educação. Com essas ações combinadas, os artifĂcios revestidos de argumentos moralizantes sĂŁo constantemente apresentados Ă população, principalmente pelas redes virtuais, e todos servem para o mesmo objetivo de despolitização do debate pĂşblico. Como afirma o filĂłsofo basco Daniel Innerarity, “aquilo que põe em risco a polĂtica nĂŁo Ă© (apenas) a imoralidade, e sim a má polĂtica”. (in: A polĂtica em tempos de indignação, Ed. Leya, 2017)
A renovação das relações polĂticas entre a população e suas lideranças pela reaproximação, escuta e troca, deve vir acompanhada da oxigenação do debate, o enfrentamento qualificado dos problemas, entendendo que o mundo contemporâneo Ă© complexo e teve significativas mudanças nos Ăşltimos anos, mudanças que ainda estĂŁo em curso acelerado. Muito que se perdeu da capacidade de credibilidade na polĂtica, alĂ©m da pouca empatia com a sociedade, Ă© a incapacidade de compreender, total ou parcialmente, o mundo que acontece nas ruas. O mesmo Innerarity, neste livro que recomendo, diz explicitamente:
A atual perda de credibilidade dos polĂticos deve-se menos Ă corrupção que atenta contra as regras da moral privada do que aos procedimentos polĂticos arcaicos em cenários que dependem de tarefas histĂłricas novas. O problema nĂŁo Ă© a carĂŞncia de virtudes, mas o saber escasso, a pobreza de iniciativa e de imaginação, a indecisĂŁo e a rotina, a falta de consciĂŞncia das novas responsabilidades que as mudanças sociais e polĂticas acarretam consigo.
Mas, afinal, o que faz essa leitura compartilhada num jornal de literatura? AlĂ©m do vĂnculo entre literatura e polĂtica, cabe dizer que tudo que reflito e questiono para a chamada grande polĂtica, volta-se para as polĂticas setoriais do livro e da leitura. Quais sĂŁo as pautas comuns que nos unem em novas e crescentes responsabilidades? O quanto as lideranças escutam os que estĂŁo nas pontas da cadeia do livro, da leitura e das bibliotecas? O quanto estamos estudando e compreendendo para propormos caminhos inovadores Ă realidade brasileira? O quanto temos de firmeza contra as iniciativas governamentais que estĂŁo sufocando a atividade cultural e educacional? O quanto estamos deixando de avançar por nĂŁo nos unirmos em torno de conquistas importantes como a Lei 13.696/2018, a que impõe ao governo uma PolĂtica de Estado para a leitura?
Se o mundo está mudando celeremente, e a pandemia está mostrando Ă s claras o pior que há em nĂłs, nĂŁo será a hora de tambĂ©m mudarmos para melhor e de maneira inovadora a polĂtica do paĂs e de nossos setores de interesse e trabalho? Que 2021 nos traga saĂşde e coragem, combustĂvel de toda mudança.