🔓 Os patriotas que odeiam a pátria

Nos forjamos como o povo mais simpático e tolerante da face da Terra – afinal, moramos no país abençoado por Deus. E por isso o destruímos com volúpia...
Ilustração: FP Rodrigues
23/07/2021

Patriota leitor (a), não sou nacionalista. Historicamente, o nacionalismo sempre redundou em manifestações fascistas, seja à direita, seja à esquerda, mas tenho amor à terra onde nasci, esse lugar estranho chamado Brasil. Há muito venho matutando sobre nossos problemas e cheguei à conclusão, provisória, claro, de que temos uma questão psicanalítica que, não resolvida, impede que caminhemos para a frente.

Acompanhe meu raciocĂ­nio. VocĂŞ já notou a dificuldade que temos, nĂłs, os brasileiros, de discutir – ou seja, conversar civilizadamente – sobre o passado? NĂŁo Ă© Ă  toa que evocamos, em situações-limite, frases feitas como “deixa isso pra lá”, “bola pra frente”, “nĂŁo vamos falar sobre isso” – todas imperativas e movediças, que tratam de evitar reflexões que poderiam nos colocar em zonas de desconforto. É assim com nosso vergonhoso passado escravagista, Ă© assim com nossa vergonhosa ditadura militar – Ă© assim como nossa equivocada autoimagem, fabricada para nos dar a sensação de que realmente moramos em um paĂ­s abençoado por Deus.

Somos o povo mais feliz da Terra, proclamamos, e segundo o World Happiness Report ocupamos o 41º lugar no ranking mundial da felicidade. Aliás, para observar isso, basta entrarmos nos ônibus ou metrô lotados de trabalhadores em qualquer metrópole e notaremos o rosto triste de quem trabalha o mês inteiro em troca de salário-mínimo (R$ 1.100,00, leitor (a), caso não tenha ideia do valor).

Somos o povo mais tolerante do mundo, proclamamos, e somos o paĂ­s com o maior nĂşmero absoluto de homicĂ­dios do mundo e o dĂ©cimo em termos relativos – 44 mil assassinatos em 2020. E estamos entre os lĂ­deres tambĂ©m de feminicĂ­dio (cerca de 1,4 mil em 2019), de assassinatos por homotransfobia (297 casos, em 2019) e de violĂŞncia no trânsito (32 mil pessoas perderam a vida em 2019). Sem falar na discriminação racial contra as populações negra e indĂ­gena…

Somos o paĂ­s mais bonito do mundo… “Nosso cĂ©u tem mais estrelas, / nossas várzeas tĂŞm mais flores, / nossos bosques tĂŞm mais vida”, cantou Gonçalves Dias, numa Canção do exĂ­lio… Mas fazemos questĂŁo de destruir todas essas belezas… Matamos os rios com esgoto domĂ©stico e industrial, destruĂ­mos as praias e as cachoeiras, colocamos abaixo as florestas, sujamos o ar com a fumaça das indĂşstrias e dos carros, e a violĂŞncia urbana (que se espraia por todos os cantos do paĂ­s) impede que usufruamos o que ainda resta de natureza…

Curioso caso, nĂŁo Ă© nĂŁo, leitor (a)?, de um povo que alardeia aos quatro ventos o amor a um paĂ­s que trata de devastar com uma volĂşpia quase sexual…

Acho que o Brasil deveria começar, com urgĂŞncia, a frequentar um divĂŁ psicanalĂ­tico…

Luz na escuridĂŁo
Constança Guimarães, poeta, contista:

“Mandei pra editora a famosa versão não mexo mais de meu livro mais recente Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro (Urutau) no começo de março de 2020, quase ao mesmo tempo em que se inicia meu período de confinamento – sim, não estou isolada ou fazendo um distanciamento social apenas – estou totalmente confinada em casa, com a filha e o cachorro, em razão da ausência total de políticas sanitárias de enfrentamento à pandemia, irresponsabilidade desse governo federal ainda mais corrupto que genocida, se fosse possível. Agora tenho em mãos um grupo grande de poemas reunidos ainda intuitivamente que, à minha revelia ou pouca consciência, foram escritos nesse período de confinamento e de alguma maneira trazem esse encerramento e seu cotidiano. Eles têm como fio o tempo e sua ainda maior não concretude pra além da folhinha de geladeira, uma regulação que já me parece obsoleta, e do céu claro ou escuro que vejo da janela há quase um ano e meio. Sigo no trabalho duro que é entender um livro em construção e dar a ele espaço e forma, à sua revelia dessa vez, às vezes. Por sorte, ainda celebro leituras generosas do livro citado acima, lançado, enfim, no final do ano passado e que tem chegado às pessoas com um abraço à distância, mas muito afetuoso”.

Parachoque de caminhĂŁo
“A morte nĂŁo nos entrega somente aos vermes, mas tambĂ©m aos homens; eles roem as lembranças e as decompõem.”
François Mauriac (1885-1970)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Castro Alves
(Muritiba, BA, 1847 – Salvador, BA, 1871)

Ăšltima fantasma

Quem Ă©s tu, quem Ă©s tu, vulto gracioso
que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada…
Sobre as nĂ©voas te libras vaporoso…

Baixas do cĂ©u num voo harmonioso!…
Quem Ă©s tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
cerca-te a fronte, Ăł ser misterioso!…

Onde nos vimos nós? És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte…
Por quem meu peito em sonhos desespera?…

Quem Ă©s tu? Quem Ă©s tu? – És minha sorte!
És talvez o ideal que est’alma espera!
És a glĂłria talvez! Talvez a morte!…

(Espumas flutuantes, 1870)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho