Patriota leitor (a), nĂŁo sou nacionalista. Historicamente, o nacionalismo sempre redundou em manifestações fascistas, seja Ă direita, seja Ă esquerda, mas tenho amor Ă terra onde nasci, esse lugar estranho chamado Brasil. Há muito venho matutando sobre nossos problemas e cheguei Ă conclusĂŁo, provisĂłria, claro, de que temos uma questĂŁo psicanalĂtica que, nĂŁo resolvida, impede que caminhemos para a frente.
Acompanhe meu raciocĂnio. VocĂŞ já notou a dificuldade que temos, nĂłs, os brasileiros, de discutir – ou seja, conversar civilizadamente – sobre o passado? NĂŁo Ă© Ă toa que evocamos, em situações-limite, frases feitas como “deixa isso pra lá”, “bola pra frente”, “nĂŁo vamos falar sobre isso” – todas imperativas e movediças, que tratam de evitar reflexões que poderiam nos colocar em zonas de desconforto. É assim com nosso vergonhoso passado escravagista, Ă© assim com nossa vergonhosa ditadura militar – Ă© assim como nossa equivocada autoimagem, fabricada para nos dar a sensação de que realmente moramos em um paĂs abençoado por Deus.
Somos o povo mais feliz da Terra, proclamamos, e segundo o World Happiness Report ocupamos o 41Âş lugar no ranking mundial da felicidade. Aliás, para observar isso, basta entrarmos nos Ă´nibus ou metrĂ´ lotados de trabalhadores em qualquer metrĂłpole e notaremos o rosto triste de quem trabalha o mĂŞs inteiro em troca de salário-mĂnimo (R$ 1.100,00, leitor (a), caso nĂŁo tenha ideia do valor).
Somos o povo mais tolerante do mundo, proclamamos, e somos o paĂs com o maior nĂşmero absoluto de homicĂdios do mundo e o dĂ©cimo em termos relativos – 44 mil assassinatos em 2020. E estamos entre os lĂderes tambĂ©m de feminicĂdio (cerca de 1,4 mil em 2019), de assassinatos por homotransfobia (297 casos, em 2019) e de violĂŞncia no trânsito (32 mil pessoas perderam a vida em 2019). Sem falar na discriminação racial contra as populações negra e indĂgena…
Somos o paĂs mais bonito do mundo… “Nosso cĂ©u tem mais estrelas, / nossas várzeas tĂŞm mais flores, / nossos bosques tĂŞm mais vida”, cantou Gonçalves Dias, numa Canção do exĂlio… Mas fazemos questĂŁo de destruir todas essas belezas… Matamos os rios com esgoto domĂ©stico e industrial, destruĂmos as praias e as cachoeiras, colocamos abaixo as florestas, sujamos o ar com a fumaça das indĂşstrias e dos carros, e a violĂŞncia urbana (que se espraia por todos os cantos do paĂs) impede que usufruamos o que ainda resta de natureza…
Curioso caso, nĂŁo Ă© nĂŁo, leitor (a)?, de um povo que alardeia aos quatro ventos o amor a um paĂs que trata de devastar com uma volĂşpia quase sexual…
Acho que o Brasil deveria começar, com urgĂŞncia, a frequentar um divĂŁ psicanalĂtico…
Luz na escuridĂŁo
Constança Guimarães, poeta, contista:
“Mandei pra editora a famosa versĂŁo nĂŁo mexo mais de meu livro mais recente Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro (Urutau) no começo de março de 2020, quase ao mesmo tempo em que se inicia meu perĂodo de confinamento – sim, nĂŁo estou isolada ou fazendo um distanciamento social apenas – estou totalmente confinada em casa, com a filha e o cachorro, em razĂŁo da ausĂŞncia total de polĂticas sanitárias de enfrentamento Ă pandemia, irresponsabilidade desse governo federal ainda mais corrupto que genocida, se fosse possĂvel. Agora tenho em mĂŁos um grupo grande de poemas reunidos ainda intuitivamente que, Ă minha revelia ou pouca consciĂŞncia, foram escritos nesse perĂodo de confinamento e de alguma maneira trazem esse encerramento e seu cotidiano. Eles tĂŞm como fio o tempo e sua ainda maior nĂŁo concretude pra alĂ©m da folhinha de geladeira, uma regulação que já me parece obsoleta, e do cĂ©u claro ou escuro que vejo da janela há quase um ano e meio. Sigo no trabalho duro que Ă© entender um livro em construção e dar a ele espaço e forma, Ă sua revelia dessa vez, Ă s vezes. Por sorte, ainda celebro leituras generosas do livro citado acima, lançado, enfim, no final do ano passado e que tem chegado Ă s pessoas com um abraço Ă distância, mas muito afetuoso”.
Parachoque de caminhĂŁo
“A morte nĂŁo nos entrega somente aos vermes, mas tambĂ©m aos homens; eles roem as lembranças e as decompõem.”
François Mauriac (1885-1970)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Castro Alves
(Muritiba, BA, 1847 – Salvador, BA, 1871)
Ăšltima fantasma
Quem Ă©s tu, quem Ă©s tu, vulto gracioso
que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada…
Sobre as nĂ©voas te libras vaporoso…
Baixas do cĂ©u num voo harmonioso!…
Quem Ă©s tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
cerca-te a fronte, Ăł ser misterioso!…
Onde nos vimos nós? És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte…
Por quem meu peito em sonhos desespera?…
Quem Ă©s tu? Quem Ă©s tu? – És minha sorte!
És talvez o ideal que est’alma espera!
És a glĂłria talvez! Talvez a morte!…
(Espumas flutuantes, 1870)